"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



14/06/2023

Jurisprudência 2022 (204)


Litigância de má fé;
simulação processual*


I. O sumário de RG 3/11/2022 (1188/19.2T8FAF.G1) é o seguinte:

1. Litigam de má fé os autores que, combinados com o réu, propuseram uma acção alegando falsamente terem mutuado àquele e esposa, da qual estava a divorciar-se, a quantia de 50.000€, pedindo a condenação de ambos no respectivo pagamento, com o intuito de a prejudicar a ela na partilha, omitindo a sua verdadeira morada comum em França, indicando, para citação e sob falso pretexto de que proximamente eles se deslocariam a Portugal (o que não aconteceu), um domicílio cá na casa da mãe e sogra, e que, quando ouvidos, face à investigação encetada oficiosamente pelo Tribunal perante a citação ali efectuada e a descoberta do verdadeiro domicílio no estrangeiro, porfiaram em alegar que a citação fora correcta, que não foi deduzida oposição e em pedir, por isso, a condenação de preceito, acabando o próprio réu por, munindo-se de documento identificativo por ele subtraído à ré, levantar a carta de citação desta remetida para França e não lhe dar conhecimento da mesma.

2. Continuaram a litigar de má fé quando, na fase final do julgamento, juntaram um documento de transferência bancária da referida quantia do réu para o autor, pedindo a extinção da instância com base na sua alegada inutilidade, com isso tentando conseguir que não fosse apreciada aquela questão.

3. Ajusta-se a tal conduta, face à moldura abstracta prevista na lei (2 a 100 UC´s), à gravidade objectiva e subjetiva dos factos (dolo), às consequências e às necessidades preventivas, a condenação na multa de 50 UC´s e, bem assim, em indemnização de 2.000,00€.


II. Na fundamentação do acórdão afirmou-se o seguinte:

"Os recorrentes, estribaram o seu recurso nas seguintes alegações:

“Pugnam os recorrentes pela apreciação da questão da litigância de má-fé, defendendo que não se mostram preenchidos os requisitos contemplados no n.º 2 do artigo 542.º do Código de Processo Civil.

Os autores não agiram, nunca por nunca, norteados por qualquer fim ou estado de espírito reprovável.

Afigura-se que a condenação dos autores como litigantes de má-fé se ficou a dever, grosso modo, ao modo em que o Tribunal “a quo” valorou a prova produzida em sede de julgamento, com a qual os autores não concordam, conforme supra se evidenciou, o que por sua vez conduziu a uma errada aplicação direito e prejudicou a boa decisão da causa.

Na verdade, os AA., vendo INTEGRALMENTE satisfeita a sua pretensão de serem ressarcidos da quantia mutuada, prescindiram da produção de qualquer outra prova – testemunhal ou documental – conquanto, insistir na produção da mesma violaria, outrossim, os Princípios da Colaboração, celeridade e economia processual e conduziria à prática de actos inúteis.

Não se podendo confundir a não produção de prova de certos factos com o comportamento típico de quem recorre aos meios processuais para obter um fim avesso ao direito e à justiça.

Os autores apenas se limitaram a peticionar a condenação dos RR. no reconhecimento da dívida para com os mesmos e no seu pagamento!

Lograram alcançar os seus intentos, recuperar os cinquenta mil euros emprestados.

Acresce que, a forma empregue pela o Tribunal que elaborou a sentença se revelou manifestamente tendenciosa. Apelidando e adjetivando negativamente o comportamento dos autores ao mesmo tempo que passava “um manto branco de impunidade” sobre o comportamento da R. quando esta se recusou a reconhecer a dívida que o seu ex-cônjuge não teve coragem de negar.

Ademais: “Não basta, pois, o erro grosseiro ou culpa grave; é necessário que as circunstâncias induzam o tribunal a concluir que o litigante deduziu pretensão ou oposição conscientemente infundada», de tal modo que a «simples proposição da acção ou contestação, embora sem fundamento, não constitui dolo, porque a incerteza da lei, a dificuldade de apurar os factos e de os interpretar, podem levar as consciências mais honestas a afirmarem um direito que não possuem ou a impugnar uma obrigação que devessem cumprir; é preciso que o autor faça um pedido a que conscientemente sabe não ter direito; e que o réu contradiga uma obrigação que conscientemente sabe que deve cumprir.” - Alberto dos Reis, in Código do Processo Civil Anotado, 2.ª edição, pág. 263.

Salienta-se, ainda, o que doutamente foi sufragado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no processo n.º 03B3893, com data de 11-12-2003 e disponível para consulta in www.dgsi.pt: “I – A verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assente em provas, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecimento dado psico-sociológico. II – Por outro lado, a ousadia de uma construção jurídica julgada manifestamente errada não revela, por si só, que o seu autor a apresentou como simples cortina de fumo da inanidade da sua posição processual, de autor ou réu. III – Há que ser, pois, muito prudente no juízo sobre a má fé processual.”.

Reitera-se, os AA. consideram que não agiram norteados por qualquer fim ou estado de espírito reprovável, tendo-se limitado a peticionar a condenação dos réus decorrente das obrigações violadas pelos réus.

Consideram os autores que o Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, não seguiu a regra da prudência. Os autores desde o primeiro momento e impulso processual estiveram, como ainda estão, convencidos da justiça da sua pretensão!

E por isso vêm requerer a reapreciação da sentença proferida pugnando pela sua revogação e prolação de outra que faça a necessária justiça ao caso. Por tudo quanto vem supra apontado, não se indicia nos autos a má-fé dos autores, pelo que deve a douta sentença recorrida ser revogada.”.

Os autores depositaram, evidentemente, a sua maior esperança na impugnação da matéria de facto.

Como se viu, não lograram reverter a respectiva decisão. Logo por aí cai por terra uma parte dos seus argumentos.

No mais, é clara a sua falta de razão, em face de tudo quanto emerge dos autos e em especial dos factos dados como provados.

Recorde-se o que na sentença foi dito:

“Nestes autos, conforme se considerou demonstrado supra, os Autores invocaram uma dívida dos Réus para consigo que sabiam não existir e, conluiados com o Réu, tentaram obstar ao efetivo conhecimento, por esta, da pendência da ação e alcançar uma condenação da mesma, por ausência de contestação, cientes de que também o Réu não contestaria, como não contestou.

Aquando da prestação de declarações, confirmaram a alegação inicial e insistiram na veracidade da concessão do empréstimo, nas entregas de dinheiro e na existência da dívida, no conhecimento e vontade da Ré de contrair tal empréstimo junto dos Autores.

Juntando um comprovativo de transferência por parte do Réu, requereram a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide e prescindiram da prova testemunhal indicada.
Os Autores deduziram, em suma, pretensão a que sabiam não ter direito e alteraram a verdade dos factos na sua petição inicial, omitiram gravemente o seu dever de cooperação, indicando e reiterando a morada, errada, para citação da Ré, pedindo a sua condenação por falta de contestação, assim fazendo um uso manifestamente reprovável do processo, procurando um objetivo ilegal e uma decisão injusta.

Por ser facto pessoal a inverdade das entregas de dinheiro, não podiam deixar de a conhecer, e por saberem residir a Ré em França e não ter qualquer fundamento a sua citação na morada que indicaram, em Portugal, não pode deixar de se considerar que omitiram de forma grave o seu dever de cooperação com o Tribunal.

Assim, constata-se que o comportamento dos Autores nestes autos é muitíssimo censurável e preenche, nas suas diversas modalidades, a litigância de má-fé, por violar todos os parâmetros de seriedade, lealdade e probidade processuais.

É, pois, de sancionar esta conduta de violação das mais elementares regras processuais, através da aplicação da multa prevista no artigo 27.º, n.º 3, RCP, variável entre 2 UC’s e 100 UC’s.

Dentro daquilo que são as condutas suscetíveis de integrar o conceito, a conduta dos Autores, porque dolosa e destinada a obter condenação de outrem, sem fundamento, no pagamento de quantia avultada, sustentada numa petição inicial com factos falsos, na tentativa de subtrair à visada o conhecimento da ação e com a reiteração da posição ao longo do processo e até à fase de julgamento, é das mais graves e subsume-se, como se disse, às diversas hipóteses previstas no art. 542º, nº2, CPC.

A conduta dos Autores comportou uma instrumentalização da Justiça e dos Tribunais, fazendo correr um processo durante mais de três anos (ainda que tal delonga não lhes seja, em parte, imputável), obrigando à realização de diversas despesas e atos processuais, à realização de uma audiência de julgamento em várias sessões e diligências por meios de comunicação à distância para o estrangeiro, tudo sem qualquer fundamento ou pretensão justa subjacente.

A condenação de uma parte como litigante de má-fé consubstancia um verdadeiro juízo de censura sobre a sua atitude processual e tem o marcado intuito de moralizar a atividade judiciária e visa assegurar não só a eficácia como “a moralidade processual”, reforçar a soberania dos tribunais, o respeito pelas suas decisões e prestígio da justiça.

Por tudo quanto ficou dito, impõe-se a condenação dos Autores como litigantes de má-fé e a aplicação de uma multa, que se entende adequada, em face da censurabilidade da conduta e dos comportamentos processuais adotados e suas consequências, na mediana da moldura legalmente prevista, no montante de 50 UC’s (€ 5.100,00).”.

Estão, assim, preenchidos, efectivamente, os pressupostos objectivos e subjectivos da litigância de má fé.

Eles agiram dolosamente, na medida em que conscientes da inveracidade da sua tese vertida na petição, do domicílio indicado para a citação, persistiram nessa conduta até quase ao fim da audiência de julgamento e só na sua parte final engendraram um pretenso pagamento do mútuo inexistente para justificarem a inutilidade superveniente da lide.

Não só, portanto, deduziram pretensão de cuja falta de fundamento tinham conhecimento e, para tanto, alteraram a verdade dos factos fundamentais, como conscientemente manipularam os meios processuais, maxime os elementos indicativos e o pedido de citação com o fim de obstarem a que a ré tivesse conhecimento efectivo da acção, nela se defendesse e assim conseguirem que fosse proferida sentença condenatória dela, de modo a prejudicá-la no contexto do processo de divórcio então em curso – alíneas a), b) e d).

Só da sua conduta podem queixar-se, não tendo qualquer sentido atribuírem o resultado ao “modo” com que o Tribunal investigou os factos, apreciou a prova e julgou, muito menos à alegada “forma tendenciosa” como dizem ter sido elaborada a sentença ou a qualquer “imprudência” da Mª Juíza dela autora.

Não se trata, no caso, de conduta meramente negligente. Bastaria, aliás, ao contrário do que dizem, que ela fosse grosseira ou grave.

Não podem escudar-se no relativismo da verdade judicial. Toda a decisão o comporta e, aliás, pressupõe. A não ser assim, nunca a mentira poderia afirmar-se e sancionar-se, pois que sempre tem de haver um juízo sobre ela.

No caso, os factos são absolutamente claros e patentes. Não se tratou de mera “ousadia”, de imprevista falha da prova nem de risco da actividade judiciária.

Deve, pois, manter-se a condenação."


*III. [Comentário] Perante os elementos fornecidos pelo acórdão, a decisão dele constante não merece nenhuma censura.

Tendo presente que a acção foi proposta por um casal contra um réu e uma ré (um casal em vias de divórcio) e que, como se afirma no acórdão, os autores actuaram em conluio com o réu marido, apenas não se percebe muito bem por que razão a condenação como litigante de má fé não abrangeu igualmente este último. Segundo se pode perceber, houve uma verdadeira simulação processual entre os autores e o réu marido com o intuito de prejudicar a ré mulher.

Esta condenação teria de ter sido proferida pelo tribunal de 1.ª instância, não podendo a RG proferi-la no recurso interposto pelos autores. Situação diferente se verificaria se a ré mulher tivesse impugnado essa falta de condenação por aquele tribunal.

MTS