"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



28/03/2024

Jurisprudência europeia (TJ) (301)


Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Competência judiciária, reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e comercial — Regulamento (CE) n.º 1215/2012 — Artigo 45.º — Recusa de reconhecimento de uma decisão — Artigo 71.º — Relação deste regulamento com as convenções relativas a uma matéria especial — Convenção relativa ao contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada (CMR) — Artigo 31.º n.º 3 — Litispendência — Pacto atributivo de jurisdição — Conceito de “ordem pública”


1. TJ 21/3/2024 (C‑90/22, «Gjensidige» / Rhenus Logistics et al.) concluiu o seguinte:

O artigo 45.o, n.o 1, alínea a), e alínea e), ii), do Regulamento (UE) n.o 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial,

deve ser interpretado no sentido de que:

não permite a um tribunal de um Estado‑Membro recusar o reconhecimento da decisão de um tribunal de outro Estado‑Membro com o fundamento de que este último tribunal se declarou competente para julgar uma ação intentada ao abrigo de um contrato de transporte internacional, em violação de um pacto atributivo de jurisdição, na aceção do artigo 25.o deste regulamento, que faz parte desse contrato.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"49  Com as suas questões segunda e terceira, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 45.o, n.o 1, alínea a), e alínea e), ii), do Regulamento n.o 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que permite a um tribunal de um Estado‑Membro recusar o reconhecimento da decisão de um tribunal de outro Estado‑Membro com o fundamento de que este último tribunal se declarou competente para julgar uma ação intentada ao abrigo de um contrato de transporte internacional, em violação de um pacto atributivo de jurisdição, na aceção do artigo 25.o deste regulamento, que faz parte desse contrato.

50  Importa começar por recordar que a interpretação de uma disposição do direito da União exige que se tenha em conta não só os seus termos mas também o contexto em que se insere e os objetivos e a finalidade prosseguidos pelo ato de que faz parte (Acórdão de 22 de junho de 2023, Pankki S, C‑579/21, EU:C:2023:501, n.o 38 e jurisprudência referida).

51 No que respeita, por um lado, ao artigo 45.o, n.o 1, alínea a), do Regulamento n.o 1215/2012, resulta dos termos desta disposição que, a pedido de qualquer interessado, o reconhecimento de uma decisão é recusado se esse reconhecimento for manifestamente contrário à ordem pública do Estado‑Membro requerido.

52  Ora, o artigo 45.o, n.o 3, segundo período, do Regulamento n.o 1215/2012 precisa, neste contexto, que o critério da ordem pública referido no artigo 45.o, n.o 1, alínea a), não pode ser aplicado às regras de competência.

53  Resulta, portanto, da leitura conjugada do n.o 1, alínea a), e do n.o 3, segundo período, do artigo 45.o do Regulamento n.o 1215/2012 que este artigo 45.o, n.o 1, alínea a), não permite a um tribunal de um Estado‑Membro recusar reconhecer uma decisão de um tribunal de outro Estado‑Membro pelo facto de este último tribunal se ter declarado competente apesar da existência de um pacto atributivo de jurisdição a favor dos tribunais de um Estado‑Membro diferente daquele a que pertence.

54  No que respeita, por outro lado, ao artigo 45.o, n.o 1, alínea e), ii), do Regulamento n.o 1215/2012, esta disposição prevê que, a pedido de qualquer interessado, o reconhecimento de uma decisão é recusado se esta decisão violar o disposto no capítulo II, secção 6, relativa às competências exclusivas.

55  Esta secção 6 é composta unicamente pelo artigo 24.o do Regulamento n.o 1215/2012, que designa os tribunais com competência exclusiva para conhecer dos litígios nas matérias que enumera, independentemente do domicílio das partes.

56  É neste contexto que o órgão jurisdicional de reenvio se interroga sobre se não há que interpretar de forma mais ampla o artigo 45.o, n.o 1, alínea e), ii), do Regulamento n.o 1215/2012, no sentido de que o reconhecimento de uma decisão pode igualmente ser recusado se esta violar as disposições da secção 7 do capítulo II deste regulamento, da qual faz parte, nomeadamente, o seu artigo 25.o, relativo à extensão de competência por um pacto atributivo de jurisdição.

57  A este respeito, a redação clara e inequívoca do artigo 45.o, n.o 1, alínea e), ii), do Regulamento n.o 1215/2012 permite, por si só, concluir que está excluída uma interpretação ampla desta disposição, sob pena de conduzir a uma interpretação contra legem da mesma.

58  Segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a interpretação de uma disposição do direito da União não pode ter por resultado privar de qualquer efeito útil a letra clara e precisa dessa disposição. Assim, quando o sentido de uma disposição do direito da União resulta inequivocamente da sua própria redação, o Tribunal de Justiça não se pode afastar desta interpretação (Acórdão de 23 de novembro de 2023, Ministarstvo financija, C‑682/22, EU:C:2023:920, n.o 31 e jurisprudência referida).

59  Em todo o caso, a interpretação literal do artigo 45.o, n.o 1, alínea a), e alínea e), ii), do Regulamento n.o 1215/2012, no sentido de que estas disposições não permitem a um tribunal de um Estado‑Membro recusar reconhecer a decisão de um tribunal de outro Estado‑Membro pelo facto de este se ter declarado competente em violação de um pacto atributivo de jurisdição, é corroborada pelo contexto em que se inserem as referidas disposições, bem como pelos objetivos e finalidade que este regulamento prossegue.

60  Com efeito, importa salientar que, em conformidade com o princípio do reconhecimento mútuo das decisões judiciais e extrajudiciais em matéria civil referido no considerando 3 do Regulamento n.o 1215/2012, o artigo 36.o, n.o 1, deste regulamento prevê que as decisões proferidas num Estado‑Membro são reconhecidas nos outros Estados‑Membros sem quaisquer formalidades. Este regulamento tem por objetivo garantir o reconhecimento e a execução rápidos e simples das decisões proferidas num dado Estado‑Membro.

61  Em contrapartida, como sublinhado no considerando 30 do Regulamento n.o 1215/2012, o reconhecimento de uma decisão só deverá ser recusado se se verificarem um ou mais fundamentos de recusa previstos neste regulamento. Neste contexto, o artigo 45.o, n.o 1, do referido regulamento enumera exaustivamente os fundamentos pelos quais o reconhecimento de uma decisão pode ser recusado (v., neste sentido, Acórdão de 7 de abril de 2022, H Limited, C‑568/20, EU:C:2022:264, n.o 31).

62  Por conseguinte, por um lado, no que respeita à exceção de ordem pública, prevista no artigo 45.o, n.o 1, alínea a), do Regulamento n.o 1215/2012, esta deve ser objeto de interpretação estrita, na medida em que constitui um obstáculo à realização de um dos objetivos fundamentais deste regulamento, pelo que um fundamento de não reconhecimento de uma decisão relativo à violação da ordem pública do Estado‑Membro requerido só pode ser utilmente invocado em casos excecionais (v., por analogia, Acórdão de 7 de setembro de 2023, Charles Taylor Adjusting, C‑590/21, EU:C:2023:633, n.o 32 e jurisprudência referida).

63  Embora os Estados‑Membros sejam, em princípio, livres de determinar, ao abrigo da reserva constante do artigo 45.o, n.o 1, alínea a), do Regulamento n.o 1215/2012, em conformidade com as suas conceções nacionais, as exigências da sua ordem pública, os limites desse conceito decorrem da interpretação desse regulamento (v., por analogia, Acórdão de 7 de setembro de 2023, Charles Taylor Adjusting, C‑590/21, EU:C:2023:633, n.o 33 e jurisprudência referida).

64  Assim, embora não caiba ao Tribunal de Justiça definir o conteúdo da ordem pública de um Estado‑Membro, incumbe‑lhe controlar os limites dentro dos quais o juiz de um Estado‑Membro pode recorrer a este conceito para não reconhecer uma decisão emanada de outro Estado‑Membro (Acórdão de 7 de setembro de 2023, Charles Taylor Adjusting, C‑590/21, EU:C:2023:633, n.o 34 e jurisprudência referida).

65  A este respeito, é jurisprudência constante que o juiz do Estado‑Membro requerido não pode recusar o reconhecimento ou a execução dessa decisão com base apenas no facto de haver uma divergência entre a norma jurídica aplicada pelo juiz do Estado‑Membro de origem e a que seria aplicada pelo juiz do Estado‑Membro requerido se fosse ele a decidir o litígio. Do mesmo modo, o juiz do Estado‑Membro requerido não pode controlar a exatidão das apreciações jurídicas ou da matéria de facto levadas a cabo pelo juiz do Estado‑Membro de origem (Acórdão de 25 de maio de 2016, Meroni, C‑559/14, EU:C:2016:349, n.o 41 e jurisprudência referida).

66  Por conseguinte, o recurso à exceção de ordem pública, prevista no artigo 45.o, n.o 1, alínea a), do Regulamento n.o 1215/2012, só é concebível quando o reconhecimento ou a execução da decisão proferida noutro Estado‑Membro contrarie de forma inaceitável a ordem jurídica do Estado‑Membro requerido, por infringir um princípio fundamental. Para respeitar a proibição da revisão do mérito da decisão proferida no Estado‑Membro de origem, essa contradição deve constituir uma violação manifesta de uma norma considerada essencial na ordem jurídica do Estado‑Membro requerido ou de um direito reconhecido como fundamental nessa ordem jurídica (v., por analogia, Acórdão de 7 de setembro de 2023, Charles Taylor Adjusting, C‑590/21, EU:C:2023:633, n.o 35 e jurisprudência referida).

67  Por outro lado, no que respeita às regras de competência previstas no Regulamento n.o 1215/2012, o seu artigo 45.o só permite recusar o reconhecimento de uma decisão com fundamento na violação dessas regras nos casos previstos no n.o 1, alínea e), deste artigo.

68  Assim, além da possibilidade, prevista no artigo 45.o, n.o 1, alínea e), ii), do Regulamento n.o 1215/2012, de recusar o reconhecimento de uma decisão se esta última violar o disposto no capítulo II, secção 6, deste regulamento, o reconhecimento de uma decisão só pode ser recusado, em conformidade com o artigo 45.o, n.o 1, alínea e), i), do referido regulamento, em caso de violação do disposto no capítulo II, secções 3, 4 ou 5, do mesmo regulamento, caso o requerido seja o tomador do seguro, o segurado, um beneficiário do contrato de seguro, o lesado, um consumidor ou um trabalhador. Isto é confirmado pelo artigo 45.o, n.o 3, do Regulamento n.o 1215/2012, que precisa que, sem prejuízo do disposto no artigo 45.o, n.o 1, alínea e), deste regulamento, não pode proceder‑se à revisão da competência do tribunal de origem no âmbito da apreciação de uma eventual recusa do reconhecimento da decisão adotada por esse tribunal.

69  No caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio observa, em primeiro lugar, que, como resulta do seu considerando 22, o Regulamento n.o 1215/2012 visa reforçar a eficácia dos acordos de eleição do foro. Por conseguinte, parece paradoxal que a violação da regra de litispendência, no caso de tal acordo ter sido celebrado, não tenha consequências quanto ao reconhecimento da decisão proferida.

70  Em segundo lugar, o órgão jurisdicional de reenvio refere que o incumprimento de um pacto atributivo de jurisdição pode ter por efeito tornar aplicável uma lei diferente da que seria aplicada se esse pacto tivesse sido respeitado. Assim, no caso de um tribunal não designado se declarar competente, o requerido é apanhado desprevenido, tanto em relação ao foro escolhido como, eventualmente, em relação à lei aplicável ao mérito da causa.

71   Mais concretamente, no caso em apreço, o facto de o rechtbank Zeeland‑West‑Brabant (Tribunal de Primeira Instância da Zelândia e do Brabante Ocidental) se ter declarado competente para julgar a ação nele intentada em 3 de fevereiro de 2017 teve como consequência que esta ação tenha sido julgada segundo o direito neerlandês. Daí resultou para a Gjensidige, enquanto demandada nesse processo, um resultado menos favorável do que se a ação tivesse sido julgada segundo o direito lituano, ou seja, segundo o direito do Estado cujos tribunais foram designados como competentes no pacto atributivo de jurisdição constante do contrato de transporte internacional em causa.

72  A este respeito, importa, no entanto, recordar que, como foi salientado nos n.os 60 e 61 do presente acórdão, no sistema instituído pelo Regulamento n.o 1215/2012, o reconhecimento mútuo constitui a regra, ao passo que o artigo 45.o, n.o 1, deste regulamento enumera, exaustivamente, os fundamentos pelos quais o reconhecimento de uma decisão pode ser recusado.

73  Ora, impõe‑se observar que o legislador da União optou por não incluir a violação do disposto na secção 7 do capítulo II do Regulamento n.o 1215/2012, relativa à extensão de competência, entre os fundamentos que permitem recusar o reconhecimento de uma decisão. Assim, a proteção dos pactos atributivos de jurisdição, prevista neste regulamento, não tem como consequência que a sua violação constitua, enquanto tal, um fundamento para a recusa de reconhecimento.

74  Além disso, como salientou, em substância, o advogado‑geral no n.o 117 das suas conclusões, no que respeita às consequências concretas do reconhecimento da decisão do rechtbank Zeeland‑West‑Brabant (Tribunal de Primeira Instância da Zelândia e do Brabante Ocidental), de 25 de setembro de 2019, nada nos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça permite concluir que esse reconhecimento violaria de forma inaceitável a ordem jurídica lituana por violar um princípio fundamental, como exige a jurisprudência recordada no n.o 66 do presente acórdão.

75  Em especial, a mera circunstância de uma ação não ser julgada pelo tribunal designado no pacto atributivo de jurisdição e de, por conseguinte, não ser julgada segundo o direito do Estado‑Membro a que pertence esse tribunal não pode ser considerada uma violação do direito a um processo equitativo com uma gravidade tal que o reconhecimento da decisão na referida ação seja manifestamente contrário à ordem pública do Estado‑Membro requerido.

76  Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder à segunda e terceira questões que o artigo 45.o, n.o 1, alínea a), e alínea e), ii), do Regulamento n.o 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que não permite a um tribunal de um Estado‑Membro recusar o reconhecimento da decisão de um tribunal de outro Estado‑Membro com o fundamento de que este último tribunal se declarou competente para julgar uma ação intentada ao abrigo de um contrato de transporte internacional, em violação de um pacto atributivo de jurisdição, na aceção do artigo 25.o deste regulamento, que faz parte desse contrato."

[MTS]

Bibliografia (1117)


-- Ignacio Sancho Gargallo (Coord.),  La incidencia de los sesgos cognitivos en el enjuiciamiento (Tirant lo Blanch: Valencia 2024)


27/03/2024

Legislação (231)


Tribunais;
comunicações electrónicas


-- P 117/2024/1, de 27/3

Regulamenta as comunicações eletrónicas realizadas entre os tribunais e o Ministério Público e os serviços de registo comercial e predial.

 

Nota: a razão para a nova identificação da P 117/2024/1 encontra-se no disposto no n.º 10.º, n.º 5, DN 16/2022, de 30/12.


Jurisprudência 2023 (139)


Acção de simples apreciação;
interesse processual


1. O sumário de RC 27/6/2023 (55/21.4T8LSA.C1) é o seguinte:

I - O interesse em agir consiste, em termos gerais, na necessidade de fazer uso do processo, de instaurar ou fazer prosseguir uma determinada acção com vista a obter uma decisão sobre um direito que se afigura controvertido ou duvidoso.

II - Nas acções de simples apreciação que se destinam, conforme resulta do disposto no artº 10, nº3, al. a) do C.P.C., a obter unicamente a declaração da existência ou inexistência dum direito ou dum facto, o interesse em agir afere-se não só pela necessidade de tutela jurídica desse direito, como pela adequação da providência solicitada à tutela do direito invocado.

III - A inscrição de prédios rústicos omissos na matriz é da competência dos serviços de Finanças e efectua-se mediante processo submetido ao Balcão Único do Prédio ou ao serviço de Finanças da área, de acordo com a Lei nº 78/2017, de 17 de Agosto, e da Lei nº 65/2019, de 23 de Agosto, sem que desse processo resulte qualquer prévia obrigação de obtenção de sentença judicial de reconhecimento do direito de propriedade dos AA.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A questão a decidir consiste unicamente em apurar se os AA. têm interesse processual em agir nos presentes autos.

A este respeito considerou a decisão recorrida que os AA. não tinham interesse no uso do processo por inexistir qualquer conflito de interesses entre AA. e R., e o uso deste meio processual não tutelar o direito invocado, que consiste na pretensão de inscrição do imóvel na matriz e na sua descrição predial, constituindo o primeiro pedido condição prévia desta pretensão. O tribunal recorrido fundamentou a sua posição considerando que “o pressuposto processual inominado de interesse em agir traduz-se, por um lado, na necessidade do autor de recorrer a juízo para obter a tutela do direito a que se arroga e concretamente de usar a acção escolhida para esse efeito, sendo um pressuposto processual autónomo, que sendo distinto da legitimidade, tem em comum com ela o dever ser aferido objectivamente pela posição alegada pelo autor, e por outro lado, esta necessidade de “usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção” não tem de ser uma necessidade absoluta, muito embora também não possa limitar-se a um qualquer interesse por vago e remoto. Terá antes de ser um ponto intermédio entre aquelas duas situações.

Ou seja, uma necessidade justificada, razoável e fundada de lançar mão do processo e de fazer prosseguir aquela acção em concreto A este propósito refere-se que o interesse em agir pressupõe a idoneidade da providência requerida para a reintegração ou tanto quanto possível integral satisfação do direito invocado pelo autor”.

Os AA. contrapõem que sendo esta uma acção de simples apreciação positiva, “não pressupõe qualquer lesão ou violação de um direito, são meios de tutela de direitos em que não é posta em causa a sua violação, quer efectiva, quer receada.” e, por outro lado, que necessitam “da declaração judicial da existência do seu direito, sem a qual, não lhe é possível registar o prédio”, pelo que ao abrigo do princípio da tutela jurisdicional efectiva consagrado no artº 20 nº5 da Constituição, deve ser proferida decisão que declare que os AA. são proprietários deste imóvel.

Apreciando a questão colocada em recurso, o interesse em agir consiste, em termos gerais, na necessidade de fazer uso do processo, de instaurar ou fazer prosseguir uma determinada acção com vista a obter uma decisão sobre um direito que se afigura controvertido ou duvidoso [Antunes Varela, Manual do Processo Civil, 2ª edição revista e ampliada, Coimbra Editora, pág. 179 e Abrantes Geraldes, Temas da Reforma de Processo Civil, Almedina 1997, pág. 230.], uma vez que nos termos do disposto no artº 2 do C.P.C. (em obediência ao princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva), a todo o direito deve corresponder uma dada acção.

Nas acções de simples apreciação que se destinam, conforme resulta do disposto no artº 10, nº3, al. a) do C.P.C., a “obter unicamente a declaração da existência ou inexistência dum direito ou dum facto”, refere ANTUNES VARELA [Ob. cit., págs. 186/187.], “que não basta qualquer situação subjectiva de dúvida ou incerteza acerca da existência do direito ou do facto, para que haja interesse processual na acção.” Nesta medida, a “a incerteza contra a qual o autor pretende reagir deve ser objectiva e grave”, decorrente de factores exteriores ao agente, geradores de incerteza quanto ao seu direito. Entre estes factos indica ANTUNES VARELA, a “a firmação ou negação de um facto, o acto material de contestação de um direito, a existência de um documento falso” entre outros. Já a gravidade terá de resultar do prejuízo que a situação de incerteza cause no autor.

As acções em que se visa a declaração e o reconhecimento de um direito de propriedade por usucapião assumem, ao mesmo tempo, natureza declarativa e constitutiva. Neste tipo de acções, cabe à parte que faz uso do processo, o ónus de alegar factos constitutivos do seu direito, a necessidade de tutela jurídica desse direito e a adequação da providência solicitada à tutela do direito invocado. Ou seja, alegar factos de onde resulte não só o interesse no objecto do processo, mas também no uso do processo.

Assim sendo, existe interesse processual em agir de um determinado autor quando dos factos alegados decorra, no confronto daquele demandado, uma necessidade justificada não só no objecto do processo, mas no processo em si. Como assinala CASTRO MENDES [CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, II Vol., AFDL, 1987, págs. 232 e segs.] o requerente tem de invocar um direito, ou interesse juridicamente protegido; mas teria de invocar ainda achar-se o seu direito em situação tal, que necessita do processo para a sua tutela”.

Quer isto dizer, que os AA. teriam de alegar factos de onde resultasse uma situação objectiva e grave de incerteza do direito que se arrogam, um conflito de interesses com esta R., justificativa da necessidade de tutela realizada por meio desta acção e a que corresponderia equivalente interesse em contradizer por parte da demandada. Não é o caso. Os AA. não invocam um único facto do qual resulte que a R. impugna ou coloca em dúvida por qualquer meio, o direito de propriedade dos AA.

A necessidade de obtenção de tutela jurídica resulta não da dúvida ou incerteza do direito de propriedade dos AA., mas da invocada necessidade de obtenção de título (sentença judicial que declare o direito de propriedade dos AA.) para obter a sua inscrição na matriz e no registo predial.

No entanto, os procedimentos com vista à inscrição de imóveis na matriz predial, são da competência da Administração Tributária, alheios a esta R. e não se inserem na esfera de competência material dos tribunais cíveis, conforme bem elucida a sentença recorrida. 

Nesta medida, nem os AA. têm interesse em agir, nem a R. tem qualquer interesse em contradizer. A sua posição como R. nesta acção é meramente aparente, pela inexistência de alegação de qualquer facto que indique um conflito de interesses. É assim forçoso concluir, como a primeira instância que “visto o pedido e a respectiva causa de pedir concreta nos termos explanados atrás, é inegável que os autores justificam a instauração da acção tão somente apenas na circunstância de os autores serem os únicos e legítimos proprietários e possuidores do imóvel descrito atrás, por via da sua aquisição originária, por usucapião, e ao mesmo tempo, na circunstância de não possuírem um título que lhes permita legalizar a sua propriedade nas Finanças e na Conservatória do Registo Predial, em virtude de o prédio ter ficado omisso na matriz predial, na avaliações gerais de prédios rústicos ocorrida no concelho ... no ano de 1990, com a agravante de o Serviço de Finanças não estabelecer correspondências com artigos da anterior matriz (e em relação a cuja acção de mera apreciação positiva a ré não ofereceu contestação). Disto resulta que os autores não aduzem aí, de todo, na petição inicial corrigida qualquer motivo sério/conflito de interesses existente entre eles e a ré que justifique que recorram aos meios judiciais (ou seja, instaure a presente acção de apreciação positiva) de modo a obter a tutela judicial”.

Acresce que, ao contrário do que invocam os AA. que diga-se, apenas recorrem da decisão quanto ao primeiro pedido formulado e já não quanto ao pedido para que este tribunal ordenasse “ao Serviço de Finanças e à Conservatória do Registo Predial que actuem em conformidade com o doutamente decidido, designadamente, proceder à inscrição na respectiva matriz e descrição no registo”, esta pretensão é inócua quanto à pretensão contida nessa alínea e que é afinal invocada como constituindo a causa da necessidade de tutela dos AA.  

Conforme referido, a inscrição de prédios rústicos omissos na matriz é da competência dos serviços de Finanças e efectua-se mediante processo submetido ao Balcão Único do Prédio ou ao serviço de Finanças da área, de acordo com a Lei nº 78/2017, de 17 de Agosto, e da Lei nº 65/2019, de 23 de Agosto, sem que desse processo resulte qualquer prévia obrigação de obtenção de sentença judicial de reconhecimento do direito de propriedade dos AA.

Nestes termos e conforme consta dos artºs 13 e segs da Lei 78/2017 de 17 de Agosto e dos artºs 58, 59 da Lei Geral Tributária (LGT) e 48 do Código do Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e 13 do Código Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), deve ser entregue pelo requerente para inscrição de prédio omisso na matriz os seguintes elementos:

a) Representação gráfica georreferenciada (RGG) elaborada por técnico habilitado, que substitui o levantamento topográfico (conforme documentos de instrução do pedido no BUPi que constam do anexo I);

b) Declaração de participação de inscrição de prédio rústico omisso, com aceitação dos limites do prédio de, pelo menos, um confinante, devidamente identificado com o NIF e a indicação do artigo matricial do seu prédio, a fim de que seja assegurada a existência do prédio a inscrever (conforme modelo do anexo II).

(…) para a inscrição matricial de prédios rústicos omissos situados em concelhos em que já vigore o Sistema de Informação Cadastral Simplificado, a declaração do sujeito passivo deve ser acompanhada da RGG do prédio a inscrever, que substituirá o levantamento topográfico, e de declaração de aceitação de, pelo menos, um dos proprietários confinantes.

Só se dispensará a declaração de, pelo menos, um dos confinantes se a RGG tiver sido validada (conforme art.º 7.º da Lei n.º 65/2019, de 23 de agosto, e do art.º 10.º do Decreto Regulamentar n.º 9-A/2017, de 3 de novembro, na sua atual redação), o que significa que todas as estremas devam estar desenhadas e confirmadas pelos proprietários confinantes sem qualquer sobreposição. Se a RGG estiver validada com reservas o interessado deve juntar ao processo a declaração de, pelo menos, um confinante, não se dispensando neste caso esta formalidade. A declaração para inscrição de prédio rústico omisso, acompanhada dos referidos elementos instrutórios, terá como resultado a inscrição do prédio, com a atribuição do correspondente artigo matricial, ainda que condicionado à fixação do valor patrimonial tributário, nos termos dos artigos 31º e seguintes do CIMI, e à conclusão dos procedimentos especiais consagrados no SICS, aplicando-se para o efeito o previsto no n.º 2 do artigo 24.º da Lei n.º 78/2017, de 23 de agosto.” [Orientação Técnica nº 1/BUPi [AT-eBUPi] | INSCRIÇÃO DE PRÉDIOS RÚSTICOS OMISSOS, Autoridade Tributária Aduaneira.]

Decorre do exposto que não existindo qualquer litigiosidade em relação ao direito de propriedade invocado pelos AA. e não sendo esta a providência adequada à tutela do seu direito (que consiste afinal na inscrição do imóvel na matriz predial e posterior descrição no Registo Predial, a obter posteriormente à inscrição, mediante o processo de justificação previsto no artº 116 e segs do C.R.Predial), cumpre declarar improcedente o recurso e confirmar a sentença proferida."

[MTS]


26/03/2024

Jurisprudência 2023 (138)


Processo de inventário;
avaliação de bens; prova pericial*


1. O sumário de RC 27/6/2023 (127/20.2T8FIG-A.C1) é o seguinte:

Com a reforma do processo de inventário, constante da Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro, as alterações introduzidas ao regime da “avaliação” de bens, previsto no artigo 1114.º do CPC, estabelecendo uma disciplina específica e eliminando a anterior remissão que, quanto a esta matéria, era feita para a parte geral do código, leva-nos a negar a admissibilidade de realização de uma segunda “perícia”, nos termos previstos nos artigos 487.º a 489.º do CPC.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"1. Se no atual processo de inventário é facultada a realização de uma segunda perícia nos termos gerais dos artigos 487º a 489º do CPC.

A única questão a decidir no âmbito da presente Apelação reside em determinar se o disposto no artigo 1114º do Código de Processo Civil – norma introduzida pela Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro, através da qual o inventário voltou a ser regulado no Código de Processo Civil, com um regime inovatório relativamente ao consagrado no anterior código – consente a realização de uma 2ª perícia, tal como se encontra prevista na parte geral do código (arts. 487º e ss.).

A decisão recorrida veio a negar a possibilidade de realização de uma 2ª perícia, sustentando ser o que resulta da lei e do seu espírito, com base nos seguintes elementos interpretativos:

- A letra do art.º 1114º do CPC, ao excluir a remissão para o "preceituado na parte geral do Código" ou para o "disposto no Código de Processo Civil quanto à prova pericial", deve ser interpretada no sentido restritivo de aplicação exclusivo do regime de uma única avaliação.

- Ademais, o facto de se prever que a avaliação deve ocorrer, em regra, num prazo limitado de 30 dias, constitui um elemento que converge para a ideia de que só existe uma única avaliação no processo de inventário.

Insurge-se a Apelante contra o decidido, sustentando que a avaliação no processo de inventário se encontra sujeita às regras gerais do código de processo, nomeadamente ao que nele se prevê nos arts. 487º e ss. do CPC:

- a interpretação jurídica defendida na decisão recorrida é uma interpretação inversa à natural, pois que o princípio básico será o de aplicar a parte geral do CPC, só não se aplicando se o corpo do norma legal assim dispuser, o que não é o caso.

- tal decisão foi suportada na posição assumida, pelo Relação de Coimbra, no Acórdão tirado em 05.05.2022, segundo o qual “De harmonia com a letra da lei como do seu espírito, entendemos que não é admitida uma segunda avaliação no processo de inventário." Ora, o que o cabeça de casal conseguiu apurar, esta é a única decisão jurisprudencial sobre a questão de saber se o regime de provo pericial previsto no porte geral do CPC se aplica ou não ao inventário, pelo que, salvo o devido respeito, não pode ser usada como jurisprudência norteadora ou dominante, numa matéria tão jovem do nosso CPC, como a que aqui se discute.

Não é de dar razão ao Apelante pelas razões que passamos a explicitar.

No regime do inventário constante do Código de Processo Civil de 1961, havia lugar àquilo a que, então, se chamava primeira avaliação, a realizar após decisão das eventuais reclamações à relação de bens – avaliação por um louvado dos bens cujo valor não devesse ser indicado pelo cabeça de casal ou determinado pela secretaria (artigo 1347º, nº1) – e em operação prévia à descrição de bens por parte da secretaria.

Facultando as regras gerais o recurso a uma segunda avaliação (art. 609º), e face à sugestão de se alargar tal sistema ao processo de inventário, a opção do legislador foi clara no sentido de que “hoje como ontem, não há em regra, segunda avaliação em inventário. Parte-se do princípio de que os valores da primeira ficarão suficientemente corrigidos em virtude da reclamação contra o excesso da avaliação, quando avaliados em valor superior, ou pelas licitações no caso contrário [João António Lopes Cardoso, “Partilhas Judiciais”, Volume II, Livraria Almedina – 1990, p.204.]”.

Contudo, tal regra comportava várias exceções, prevendo expressamente a a possibilidade de uma segunda avaliação relativamente a bens indivisos (artigo 1364), a bem doados (1365º), bem legados (1366º), e nos casos dos arts. 1389º e 1408º (art. 1369º, nº1).

“Na segunda avaliação, observam-se as mesmas formalidades e adotam-se as fases da primeira avaliação, regendo-se pelas disposições a esta aplicáveis, nos termos do artigo 610º do Cód. Proc. Civil. Há simplesmente que considerar que o louvado que interveio na primeira avaliação não pode ter interferência na segunda”.

Ou seja, a doutrina equiparava esta “segunda avaliação” ao segundo arbitramento previsto nas regras gerais do código sobre a avaliação de bens (art. 610º).

Considerava-se então que a segunda avaliação era definitiva, por não ser admissível terceira avaliação [Acórdão do TRC de 31-03-1981, Colectânea de Jurisprudência, Ano VI, T2, p.29.].

A reforma do processo de inventário introduzida pelo Dec. Lei nº 227/94, de 08 de setembro, eliminou a pretérita “primeira avaliação”, impondo ao cabeça de casal a obrigação de atribuir o valor a ada um dos bens da herança (artigo 1346º, nº1).

Passou a prever-se, assim, tão só, o que anteriormente se denominava de 2ª avaliação, alargando a possibilidade deem momento prévio à composição dos quinhões ou sorteio, a mesma ser requerida pelos interessados ou oficiosamente determinada pelo juiz, destinado a possibilitar a repartição igualitária e equitativa dos bens pelos vários interessados (artigo 1353º, nº2).

A avaliação de bens da herança, fosse na sequência de reclamação contra o valor atribuído pelo cabeça de casal (nº4 do artigo 1362º), fosse por se tratar de bens indivisos (artigo 1364º, nº3) ou de bens doados ou legados em que se suscitasse a questão da inoficiosidade (artigos 1365º, nº1, e 1366º, nº1), passou a estar prevista nos seguintes termos:

Artigo 1369º
Realização da Avaliação

A avaliação dos bens que integram cada uma das verbas da relação é efetuada por um único perito, nomeado pelo tribunal, aplicando-se o preceituado na parte Geral do Código, com as necessárias adaptações.

A remissão para o regime geral contida no artigo 1369º, do CPC, relativo à realização da avaliação de bens em processo de inventário, levou a doutrina e a jurisprudência a pronunciarem-se no sentido da admissibilidade de uma “segunda avaliação” nos termos previstos no artigo 589º, nº1 do CPC [Cfr., Embora do teor do respetivo preâmbulo não houvesse qualquer referencia à possibilidade de recurso a uma segunda perícia – “No que respeita às avaliações, prevê-se a sua realização, em regra, por um único perito, designado pelo tribunal, já que a estrutura do processo de inventário torna particularmente complexa a designação de peritos pelas partes - uma vez que no inventário não existem, com frequência, partes em directo contraditório - e sendo certo que as possibilidades de contraditório face aos resultados da avaliação pelo perito judicialmente designado serão suficientes para assegurar os legítimos direitos dos interessados na partilha.” entre outros, o Acórdão de 26.04.2016, relatado pela aqui relatora, e acórdãos do TRC de 31.01.2012, relatado por Teles Pereira, de 12-06-2012, relatado por Fonte Ramos e 20.06.2012, relatado por Sílvia Pires, disponíveis in www.dgsi.pt.]

Remetendo o artigo 1369º do CPC para a parte geral do código, ter-se-iam de aplicar às eventuais reclamações o disposto no artigo 587º do CPC (reclamações contra o relatório pericial) e bem assim o disposto no artigo 589º do CPC relativo à realização de segunda perícia, sendo esta admissível e a realizar nos termos do artigo 590º.

Com a reforma do regime do processo de inventário, introduzida com a Lei nº 23/2013, de 15 de março – efetuando uma desjudicialização parcial de tal processo e retirando o seu regime do Código de Processo Civil –, tendo sido impugnado o valor dos bens, igualmente se previa que “a respetiva avaliação é efetuada por um único perito, nomeado pelo notário, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no Código de Processo Civil quanto à prova pericial.” (artigo 33º, nº 2).

Assim se entendia que o resultado da perícia era expresso em relatório, podendo as partes dele reclamar, nos termos do artigo 485º, podendo ainda haver lugar a uma segunda perícia nos termos gerias previstos no artigo 487º do CPC [Neste sentido, Eduardo Sousa Paiva e Helena Cabrita, “Manual do Processo de Inventário, à Luz do Novo Regime aprovado pela Lei nº 23/2013, de 5 de março e regulamentado pela Portaria nº 278/2013 de 26 de agosto”, Coimbra Editora, p. 102.]

Chegados ao atual regime do processo de inventário, que a Lei nº 117/2019, de 13 de setembro veio de novo integrar no Código de Processo Civil, dispõe agora o artigo 1114º do CPC:

 Artigo 1114.º
Avaliação

1 - Até à abertura das licitações, qualquer interessado pode requerer a avaliação de bens, devendo indicar aqueles sobre os quais pretende que recaia a avaliação e as razões da não aceitação do valor que lhes é atribuído.
2 - O deferimento do requerimento de avaliação suspende as licitações até à fixação definitiva do valor dos bens.
3 - A avaliação dos bens é, em regra, realizada por um único perito, nomeado pelo tribunal, salvo se:
a) O juiz entender necessário, face à complexidade da diligência, a realização de perícia colegial;
b) Os interessados requererem perícia colegial e indicarem, por unanimidade, os outros dois peritos que vão realizar a avaliação dos bens.
4 - A avaliação dos bens deve ser realizada no prazo de 30 dias, salvo se o juiz considerar adequada a fixação de prazo diverso.

Tendo o novo regime do processo de inventário sido publicado sem qualquer preâmbulo explicativo para as suas opções, a atividade de interpretação da norma deverá iniciar-se pela análise do anteriormente estipulado quanto à realização da avaliação em processo de inventário, com as alterações que ao mesmo foram sendo introduzidas desde a reforma de 1994, da qual ressaltam as seguintes alterações:

- até à atual reforma, as especificidades da avaliação a efetuar no processo de inventário limitavam-se a determinar que a mesma era efetuada “por um único perito”, a nomear pelo tribunal (ou pelo notário), remetendo, quanto ao mais ao disposto na lei geral do processo quanto à prova pericial;

- no atual regime, prevendo que a avaliação é, em regra, realizada por um único perito, admite a realização de perícia colegial, nas seguintes situações: a) o juiz entender necessário, face à complexidade da diligência, a realização de perícia colegial; b) os interessados requererem perícia colegial e indicarem, por unanimidade, os outros dois peritos que vão realizar a avaliação dos bens (afastando-se, não só do regime anterior de perito único, com do regime geral relativamente às hipóteses em que é admissível a perícia colegial);

- é eliminada a anterior remissão geral para a parte geral do código, alteração que os dois únicos acórdãos [Acórdão do TRC de 13-12-2022, relatado por Luís Cravo, no qual se afirma que “tendo deixado de existir a remissão legal para a parte geral do código respeitante à prova perícia, tal significa que se quis disciplinar a temática de forma autónoma e específica, mormente quanto ao aspeto de nela só ter lugar uma única avaliação”; em igual sentido já se havia pronunciado o Acórdão do TRC de 10-05-2022, relatado por Mário Rodrigues da Silva, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.] até agora publicados sobre qual questão, vêm interpretando no sentido de a possibilidade de realização de uma 2ª perícia se encontrar afastada da avaliação em processo de inventário;

- é fixado um prazo geral de 30 dias para a realização da “avaliação”, o que também aponta no sentido da inviabilidade de realização de uma 2ª perícia, cuja realização se mostraria completamente incompatível com a observância de tal prazo.

Como já afirmava Armando Simões Pereira, quanto à forma de proceder à avaliação em processo de inventário, “dizer que o valor dos bens se determina por avaliação não tem como inevitável consequência a aplicação dos preceitos sobre avaliação, dado que o sentido comum da palavra não pressupõe necessariamente essa aplicação. Por outra forma: dizer que o valor dos bens se determina por avaliação não significa necessariamente que ela tenha de fazer-se nos termos da subsecção que tem esse título (a subsecção III, da secção V, do capítulo III, do subtítulo II, título II, do Livro III – arts. 607º a 612º), visto que se pode bem conceber uma avaliação em moldes diferentes. Há pois que fazer referência, direta ou indireta a esses preceitos [Processo de Inventário e Partilhas, Esboço de um Anteprojecto”, Lisboa 1962, pp.]”.

Ora, o legislador de 2019, relativamente a tal matéria, optou por eliminar a remissão, anteriormente adotada, para a parte geral do código. E se, relativamente ao que não se encontra aqui especificadamente prescrito, se terá, ainda assim, de recorrer às regras gerais (nomeadamente quanto aos impedimentos dos peritos, possibilidade de reclamação contra o relatório, pedido de comparência dos peritos em tribunal), devidamente adaptadas – arts. 478º a 486º, CPC –, não podemos sem mais aplicar as regras previstas na Secção V do capítulo IV, relativamente à realização de uma 2ª perícia.

Quanto à previsão de um prazo de 30 dias para a realização da avaliação, a redação desta norma inculca a ideia de que, ao contrário do que se acha disposto no artigo 483 º1, a propósito da realização da 1ª perícia – quando a perícia não possa logo encerrar-se com a imediata apresentação do relatório pericial, o juiz fixa prazo dentro do qual a diligencia  há de ficar concluída –, não se trata do prazo concedido ao perito para concluir a perícia no caso de não puder de imediato apresentar o relatório pericial, mas de um prazo para a realização da avaliação.

Por outro lado, a interpretação de tal norma haverá de ser efetuada à luz do novo paradigma do processo de inventário, em que se pretende evitar o carater arrastado, sinuoso e labiríntico da anterior tramitação, que sempre produziu resultados insatisfatórios [Carlos Lopes do Rego, “A recapitulação do inventário”, Julgar Online, dezembro de 2019, p. 9. Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, “O Novo Regime do Processo de Inventário e outras Alterações na Legislação Processual Civil”, Almedina, p. 8.]”, modelo dominado pelos princípios da concentração (assente na definição de fases perfeitamente estanques) e da preclusão.

E a esta luz, sai reforçada a interpretação que aqui atribuímos à fixação de tal prazo, embora de natureza meramente ordinatória, bem como a assunção de inexistência de uma 2ª perícia.
E se a integração do processo de inventário no código de processo torna aplicáveis a este processo especial os princípios gerais do processo civil (art. 549º, nº1), só na ausência de regulamentação própria serão aplicáveis as disposições comuns.

Por outro lado, haverá que ter em conta a natureza desta avaliação, sendo que, enquanto a realização da perícia na parte geral do código é vista como um meio de prova, a apreciar juntamente com os demais elementos de prova existentes nos autos, prevendo-se aí a possibilidade de uma 2ª segunda perícia, esta “segunda perícia não invalida a primeira, sendo uma e outras apreciadas livremente pelo tribunal” (artigo 498º) [já no âmbito do regime antecedente, José António Lopes Cardoso chamava a atenção para o facto de que a perícia não é aqui usada como um meio de prova pois não se inscreve no objeto de qualquer contenda para que tal meio seja preciso. “Pelo contrário, é a própria avaliação que é fiada de um perito que sabe o suficiente para a fazer e fixar o valor. Por essa mesma razão seria absurdo aplicar aqui velho princípio, segundo o qual a “segunda perícia não invalida a primeira, sendo, uma e outra livremente apreciadas pelo tribunal” – “Partilhas Judiciais, Vol. II, 6ª ed., Almedina, ppp.238-239.], o que, a ser aplicável em processo de inventário, nos deixaria um novo problema em mãos: assim sendo, qual o valor a atender pelo tribunal, quando a tal avaliação não se seguirá qualquer fase de julgamento para fixação do valor do bem objeto de avaliação?

Quanto à doutrina, a única obra [Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, “O Novo Regime do Processo de Inventário e outras Alterações (…), Almedina, pp. 114-115.que, por ora, encontrámos a referir-se a tal questão, embora sem qualquer explicação quanto a tal opção, foi no sentido oposto ao aqui defendido:

À diligência de avaliação de bens é aplicável o regime estabelecido no processo declarativo comum acerca da prova pericial (arts. 467º e ss), pelo que os ns. 3 e 4 se limitam a definir algumas especificidades no domínio do inventário:

a) Mantém-se a regra segundo a qual a avaliação é realizada por um único perito nomeado pelo juiz (art. 1369º CPC/61; art. 33ºRJPI), ressalvando-se todavia a possibilidade de realização de perícia colegial, seja, perante a complexidade da diligência, por determinação do juiz, seja por deliberação unanime dos interessados, desde que também acordem nos outros dois peritos.

b) O prazo normal para a realização da avaliação dos bens pelo perito é de 30 dias (nº4)”.

Os respetivos autores fazem uma leitura de tal prazo como tendo uma natureza semelhante ao disposto no artigo 483º, ou seja, como sendo um prazo concedido ao perito para apresentar o seu relatório, sendo que, a ser assim, não se vê a necessidade de aqui prescrever o que já resultaria do regime geral.

Por outro lado, desvalorizam a alteração respeitante à possibilidade de realização da avaliação por perícia colegial, a nosso ver, como meio garantir uma justa e correta avaliação dos bens, e de compensar os interessados da eliminação da possibilidade de uma segunda perícia.

Veremos, assim, como evolui a doutrina e a jurisprudência após reflexão mais aturada sobre a questão em apreço, sendo que, por ora, entendemos ser de confirmar a decisão recorrida."


*3. [Comentário] No acórdão afirma-se o seguinte:

"E se a integração do processo de inventário no código de processo torna aplicáveis a este processo especial os princípios gerais do processo civil (art. 549º, nº 1), só na ausência de regulamentação própria serão aplicáveis as disposições comuns."

Perante o disposto no art. 549.º, n.º 1, CPC, só há que regular nos processos especiais a "regulamentação própria", ou seja, a regulamentação que se afasta das "disposições gerais e comuns". Em tudo o que não contrarie a aplicação das "disposições gerais e comuns", não é preciso nada regulamentar nesses processos especiais (e até é inconveniente que tal aconteça). Portanto, as "disposições gerais e comuns" são aplicáveis sempre que a "regulamentação própria" não seja exaustiva. 

Salvo o devido respeito, não se encontra no disposto no art. 1114.º CPC nada que leve a concluir que o preceito contém todo o regime sobre a avaliação de bens no processo de inventário e que afaste, no que nele não se encontra regulado, a aplicação do regime geral da perícia (art. 467.º ss. CPC).

MTS

25/03/2024

Jurisprudência 2023 (137)


Procedimento cautelar;
inutilidade superveniente da lide


1. O sumário de RL 13/7/2023 (2809/22.5T8CSC.L1-8) é o seguinte: 

I - O procedimento cautelar comum visa a tutela provisória de um direito ameaçado, através da adopção de medidas adequadas a evitar o risco do perecimento desse direito, decorrente da demora no processamento da acção principal;

II - Se os comportamentos que se pretendem inibir com as providências requeridas já tiveram lugar e são de execução imediata (e não continuada ou repetida), terá de concluir-se que já ocorreram os danos irreparáveis ou de difícil reparação que justificavam o pedido, estando consumada a lesão;

III - Nesta situação, deixa de existir o fundamento da providência e fica frustrada a utilidade do procedimento cautelar, extinguindo-se a instância por inutilidade superveniente da lide;

IV – Fora dos casos de inversão do contencioso (art.º 369.º do CPC), não é viável nem admissível, por contrariar a finalidade própria das providências cautelares, a instauração de um procedimento cautelar com o qual não se visa, apenas, dar utilidade ou eficácia à decisão a proferir na acção principal, mas antes obter uma decisão definitiva do litígio, alcançando um efeito que é, precisamente, aquele que se pretende na acção principal.


2. No relatório e na fundamentação do acórdão (que tem um voto de vencido) afirma-se o seguinte:

"I – RELATÓRIO

1.1. A recorrente J, LDA.. instaurou procedimento cautelar comum contra C e B, formulando os seguintes pedidos:

«I – A condenação das requeridas no reconhecimento da ineficácia da solicitação do pagamento do valor corporizado na garantia bancária reproduzida sob doc. n.º 2;
II - A suspensão do pagamento à requerida B do indicado valor, até trânsito em julgado da ação principal de que o presente procedimento cautelar comum é incidente preliminar e que a requerente vai instaurar oportunamente no qual peticionará a declaração de incumprimento do Contrato-Promessa e correspondente pedido de indemnização por danos causados;
III – A ordem, dirigida à C, primeira requerida, de não pagamento da garantia bancária reproduzida sob doc. n.º 2.
IV – Subsidiariamente, e sem prescindir, que seja decretada a proibição de exercício de direito de regresso por parte da requerida C sobre a requerente por prestação da garantia executada em abuso de direito ou face à ineficácia da prestação da mesma, considerada a ilicitude de tal solicitação». [...]

IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1. Comecemos por analisar se a instância se tornou supervenientemente inútil, uma vez que de tal depende a pertinência da apreciação das demais questões supra enunciadas.

A questão foi tratada, no recente acórdão desta Relação de 25.05.2023, proferido no âmbito do Proc. n.º 2810/22.9T8CSC.L1, em que foi relator o aqui, também, relator, em situação em tudo similar à dos presentes autos, não se vislumbrando razões para que deva merecer entendimento diverso.

Desta forma, limitamo-nos a reproduzir a argumentação já expendia no referido acórdão.

A inutilidade superveniente da lide é uma causa de extinção da instância (art. 277.º, al. e) do CPC), que ocorre quando o efeito pretendido é alcançado por via diversa, sendo o caso mais típico o do pagamento da quantia peticionada na pendência da causa ou, em geral, o cumprimento espontâneo da obrigação.

É este o sentido que a doutrina e a jurisprudência têm dado ao conceito em análise.

Assim, por exemplo, Lebre de Freitas, Rui Pinto e João Rendinha, in Código de Processo Civil Anotado, I, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2008, p. 555, referem que «(…) a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida. Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por já ter sido atingido por outro meio».

O acórdão do STA, de 30.07.2014, in www.dgsi.pt., considerou que «A inutilidade superveniente da lide (que constitui causa de extinção da instância - al. e) do art.º 277º do CPC) verifica-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a solução do litígio deixe de interessar, por o resultado que a parte visava obter ter sido atingido por outro meio».
O acórdão da RC de 05.12.2012, in www.dgsi.pt, decidiu que «I – A instância extingue-se sempre que se torne supervenientemente inútil, i.e., sempre que por facto ocorrido na pendência da instância, a continuação da lide não tenha qualquer utilidade (artº 287 e) do CPC). II - A instância extingue-se ou finda de forma anormal todas as vezes que, ou por motivo atinente ao sujeito, ou por motivo atinente ao objecto, ou por motivo atinente à causa, a respectiva relação jurídica substancial se torne inútil, i.e., deixe de interessar a sua apreciação».

A inutilidade da lide é, portanto, simples reflexo, no plano processual, da inutilidade da relação jurídica substancial, quer esta inutilidade diga respeito ao sujeito, ao objecto ou à causa.

Sempre que o efeito jurídico que se pretendia obter com a acção se mostre supervenientemente inútil, o processo não deve continuar, mas sim cessar. Neste caso, o tribunal não conhece do mérito da causa, limitando-se a declarar aquela extinção.

Ora, através do presente procedimento cautelar, a Requerente formulou os seguintes pedidos:

«I – A condenação das requeridas no reconhecimento da ineficácia da solicitação do pagamento do valor corporizado na garantia bancária reproduzida sob doc. n.º 2;
II - A suspensão do pagamento à requerida B do indicado valor, até trânsito em julgado da ação principal de que o presente procedimento cautelar comum é incidente preliminar e que a requerente vai instaurar oportunamente no qual peticionará a declaração de incumprimento do Contrato-Promessa e correspondente pedido de indemnização por danos causados;
III – A ordem, dirigida à C, primeira requerida, de não pagamento da garantia bancária reproduzida sob doc. n.º 2.
IV – Subsidiariamente, e sem prescindir, que seja decretada a proibição de exercício de direito de regresso por parte da requerida C sobre a requerente por prestação da garantia executada em abuso de direito ou face à ineficácia da prestação da mesma, considerada a ilicitude de tal solicitação».

Sucede que, após a prolação da decisão recorrida, mas ainda antes do seu trânsito em julgado, a Requerida C pagou à Requerida B a quantia €1.634.331,80, no âmbito da garantia bancária n.º 2019.1436.036.

Tal pagamento tornou, inequivocamente, inútil a lide quanto às providências requeridas nos pontos II e III.

Com efeito, o procedimento cautelar visa, como se sabe, a tutela provisória de um direito ameaçado, através da adopção de medidas adequadas a evitar o risco do perecimento desse direito, decorrente da demora no processamento da acção principal.

A função das providências cautelares é preventiva, pois que visam evitar que se consuma uma lesão grave e dificilmente reparável.

periculum in mora, pressuposto essencial para o decretamento de providências cautelares não especificadas (cfr. art. 362.º, n.º 1 do CPC), como as requeridas in casu, traduz-se no perigo de ocorrência de lesão ou dano para o Requerente resultante da demora da tutela do seu direito na acção principal e constitui o fundamento que legitima a concessão de uma medida cautelar.

Com as providências requeridas (pontos II e III), pretendia a Requerente garantir que, até à decisão final a proferir na acção principal, não se concretizasse o pagamento da garantia bancária em causa.

Ora, se o comportamento que se pretendia inibir teve lugar e é de execução imediata (e não continuada ou repetida), terá de concluir-se que já ocorreram os danos irreparáveis ou de difícil reparação que justificavam o pedido, estando consumada a lesão.

Estando concretizado esse pagamento e consumada a lesão, as referidas providências não têm razão de ser.

E se é certo que os efeitos do evento danoso já consumado podem prolongar-se no tempo, não menos certo é que não são as providências concretamente requeridas que evitarão que esses efeitos continuem a produzir-se, não sendo adequadas a evitá-lo.

Conforme escreve Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, III, Almedina, 1998, p. 89 «estão, pois, de fora da protecção concedida pelo procedimento cautelar comum as lesões de direitos já inteiramente consumadas, ainda que se trate de lesões graves», sendo que, só relativamente a lesões continuadas ou repetidas, é possível uma decisão que previna a continuação ou repetição de actos lesivos.

Enfim, visando a providência cautelar acautelar lesões futuras, não deverá ser decretada nos casos em que, no decurso do procedimento cautelar, venha a ocorrer a lesão que se visava evitar. Nestas situações, deixa de existir o fundamento da providência e fica frustrada a utilidade do procedimento cautelar, extinguindo-se a instância por inutilidade superveniente da lide.

Neste sentido, veja-se o acórdão desta Relação de 16.06.2015, in www.dgsi.pt., onde se decidiu que «a inutilidade superveniente da lide ocorre quando no processo da providência intentada, a finalidade que se preconizava salvaguardar venha a ficar vazia de conteúdo, por se ter perdido o seu efeito útil».

De resto, refira-se, tal entendimento não é negado pela Requerente, que, no requerimento a que se aludiu no ponto 1.7., se limita defender a utilidade da lide quanto às providências requeridas no ponto I e IV.

Vejamos, então, se quanto a estas a instância mantém utilidade.

Sob o ponto I do petitório, pretende a Requerente: «I – A condenação das requeridas no reconhecimento da ineficácia da solicitação do pagamento do valor corporizado na garantia bancária reproduzida sob doc. n.º 2».

A Requerente, considera que, quanto a este primeiro pedido, a instância mantém interesse porque «o primeiro pedido implica o reconhecimento de ambas as requeridas da ineficácia da solicitação de pagamento – o que tem efeitos jurídicos para qualquer uma das requeridas imediato, independentemente de actos de pagamento, e que pode ser decidido em recurso».
Não tem, contudo, razão.

É que o entendimento da Requerente assenta no pressuposto - errado - de que, sob o ponto I, é requerida uma verdadeira providência «conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado», isto é, uma medida provisória destinada a acautelar prejuízos irreparáveis ou de difícil reparação.

Sucede que, na verdade, sob o referido ponto I, a Requerente limita-se a transpor para o petitório o pressuposto ou a causa justificativa das medidas inibitórias que requerer sob os pontos II e III: reconhecer a “ineficácia da solicitação do pagamento” do valor garantido não constitui uma medida cautelar no sentido mencionado, pois que tal reconhecimento não visa, por si só, acautelar  o efeito útil da decisão (este seria alcançado pelas medidas requerida sob os pontos II e III), antes sendo o mero pressuposto da requerida suspensão de pagamento e/ou ordem de não pagamento.

Ora, como se viu supra, o evento que se traduzia na invocada lesão grave e dificilmente reparável do direito acabou por se verificar (pagamento da garantia), o que esvazia de conteúdo a finalidade preconizada pela Requerente com o pedido deduzido no ponto I.

De que serve condenar as requeridas no reconhecimento da ineficácia da solicitação do pagamento (como peticiona a Requerente), se esse pagamento já ocorreu e se era este pagamento que constituía o dano que a Requerente pretendia prevenir? Tal “condenação” não teria qualquer efeito prático, em face do “periculum in mora” invocado e que constitui o fundamento da providencia, pelo que qualquer decisão nesse sentido (ainda que provisória) seria meramente “platónica”.

O alegado interesse da Recorrente na apreciação da “ineficácia da solicitação do pagamento” não se alcança através da presente providência cautelar, que visa evitar uma lesão grave do direito, mas, quanto muito, através da acção definitiva a instaurar, onde se discutirá se o accionamento da garantia  e o seu pagamento foram fundados, válidos ou eficazes.

Enfim, a necessidade da tutela através da suposta providência requerida no ponto I do petitório já não se justifica, em face do pagamento concretizado, pelo que a decisão a proferir no procedimento cautelar, necessariamente provisória, não teria qualquer efeito útil.

Por outras palavras, tendo a garantia sido satisfeita, deixou, pois, de interessar a apreciação da ineficácia da solicitação e, por conseguinte, a continuação da lide nessa parte.

Não podemos olvidar que a inutilidade superveniente da lide, como causa de extinção da instância, constitui uma emanação da proibição da prática de actos inúteis que, por sua vez, está relacionada com o princípio da economia processual. É proibida a prática de actos que, não tendo utilidade para a realização da função processual, o único efeito que teriam seria o de complicar o processo, impedindo-o de rapidamente atingir o seu termo.

Veja-se, neste sentido, por exemplo, o acórdão da RG de 16.11.2017, in ww.dgsi.pt, onde se escreveu que «II- Emanação da proibição da prática de actos inúteis que, por sua vez, está relacionada com o princípio da economia processual, a inutilidade superveniente visa obstar a prática de actos absolutamente inúteis, ou seja, sem qualquer utilidade processual».

Ora, resulta com linear evidência que, a partir do momento em que a garantia foi satisfeita, tornou-se inútil apreciar se o pedido de pagamento era ou não eficaz e se devia ou não ser paralisado.

A instância tornou-se, pois, inútil, também no que concerne ao ponto I do petitório, em virtude do pagamento, o que se impõe declarar.

Já quanto à providência requerida sob o ponto IV, cremos não poder extrair-se idêntica conclusão.

É que, aqui a Requerente pretende, subsidiariamente, que «seja decretada a proibição de exercício de direito de regresso por parte da requerida C sobre a requerente por prestação da garantia executada em abuso de direito ou face à ineficácia da prestação da mesma, considerada a ilicitude de tal solicitação».

Defende a Requerente que a Requerida C não lhe exigiu, ainda, o pagamento da quantia que pagou à B, pelo que a lide mantém interesse nesta parte, porquanto ainda poderá a Requerente não sofrer o prejuízo que ainda não sofreu e que é o de pagar à C a garantia indevidamente paga à B.

Sendo o pedido formulado, precisamente, para o caso de se verificar o evento danoso (o pagamento da garantia), não se pode entender que a ocorrência dele tornou, supervenientemente, inútil a lide.

A improcedência deste pedido decorrerá de outros factores, como se verá infra, mas não por o efeito jurídico que com ele se pretendia obter se ter tornado inútil.

E, assim sendo, importará, apenas, prosseguir na apreciação do mérito do recurso quanto a este pedido (ponto IV).

Aqui chegados, concluímos que a instância se tornou, supervenientemente, inútil no que concerne às providências requeridas sob os pontos I, II e II do petitório, o que determina a sua extinção (art.º 277.º al. e) do CPC), ficando, por decorrência, prejudicado o conhecimento do mérito do recurso interposto pela Recorrente.

Como é consabido, a instância de recurso ou a lide recursória pode extinguir-se por inutilidade quando, por facto ocorrido na sua pendência, desapareceu o objecto do recurso, delimitado pelas respectivas conclusões, caso em que não existe qualquer efeito útil na decisão a proferir por já não ser possível o fim visado ou este ter sido atingido por outro meio.

É o que ocorre no caso dos autos, quanto aos pontos I, II e III, conclusão que retira fundamento à imputada litigância de má-fé da Requerida B (cfr. art. 9.º do requerimento apresentado pela Requerente em 03.05.2023)."

[MTS]



23/03/2024

Informação (303)


Regras Modelo Europeias de Processo Civil


A versão portuguesa das Regras Modelo Europeias de Processo Civil pode ser encontrada aqui (ou directamente aqui).

A tradução foi realizada pela Prof.ª Paula Costa e Silva, pelo Prof. Edilson Vitorelli e ainda pelo Prof. João Marques Martins.


Bibliografia (1116)


-- Remédio Marques, J. P., O (Novo) Tribunal Unificado de Patentes (Almedina: Coimbra 2024)


22/03/2024

Bibliografia (1115)


-- Berg, Lena, Systembildung im Europäischen Zivilprozess / Möglichkeiten und Grenzen einer Konsolidierung der Kernverordnungen des Europäischen Zivilverfahrensrechts (Duncker & Humblot: Berlin 2024)

-- Kiehne, Wenzel, Tatsachendisposition im Zivilprozess / Eine Untersuchung über die prozessuale Umgehung zwingenden materiellen Rechts (Duncker & Humblot: Berlin 2024)


Jurisprudência 2023 (136)


Contrato administrativo;
competência material


1. O sumário de RP 29/6/2023 (937/21.3T8ETR.P1) é o seguinte:

I - Tendo o litígio dos autos como objeto um contrato administrativo – que se invoca como causa de pedir, pedindo-se que a ré seja condenada a pagar a retribuição devida pela execução do contrato – estamos perante uma relação jurídica de natureza administrativa.

II - A competência para apreciar litígios emergentes de contratos desta natureza pertence aos tribunais da jurisdição administrativa.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A competência específica do foro administrativo está fixada, em particular, no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei 13/02, de 19.02.

Reproduzindo a norma do n.º 3 do artigo 212.º da CRP, acima citada, diz o artigo 1.º, n.º 1 do ETAF que os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.

Nesse quadro, compete aos tribunais da jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto as questões enunciadas nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF.

Entre elas situam-se as questões relativas à validade de actos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas colectivas de direito público ou outras entidades adjudicantes (al. e).

Como se escreveu no Acórdão desta Relação de 15.11.11 [---], “A reforma do contencioso administrativo alargou o âmbito da jurisdição administrativa. E, pese embora nas diversas alíneas do ETAF (…) não se faça nenhuma alusão a actos de gestão pública, tal não significa que já não haja que ponderar se as situações ali previstas são, ou não, regidas por um regime de direito público ou de direito privado. 

É verdade que o legislador, nas diversas alíneas do artigo 4º do ETAF, e no que concerne às pretensões jurídicas a formular perante a jurisdição administrativa, fez prevalecer, em algumas situações, critérios objectivos ou materiais, atendendo, em outras situações, a um critério subjectivo ou orgânico.”. 

Por isso e apesar de, como dissemos, a competência dever ser apreciada nos termos em que a acção é proposta, atendendo ao pedido formulado e à respectiva causa de pedir, também importa “…ponderar sobre os elementos objectivos e subjectivos da acção, ou seja, em relação aos primeiros, a natureza da providência solicitada, natureza do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde resulta o invocado direito; e, em relação aos segundos, a identidade e a natureza das partes.” [Citado Acórdão de 15.11.11.].

O que distingue o contrato administrativo do contrato de direito privado é a presença de um contraente público e a ligação do objecto do contrato às finalidades de interesse público que esse ente prossiga, bem como as marcas de administratividade e os traços reveladores de uma ambiência de direito público existentes nas relações que neles se estabelecem [Neste sentido, ver os Acórdãos do STA de 10.03.05 e do Tribunal de Conflitos de 09.06.10, ambos em www.dgsi.pt.].

Por outro lado, relação jurídica de direito administrativo é a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas [ Acórdão do TCA Norte de 22.04.10, www.dgsi.pt.].

A propósito, a doutrina destaca o critério substantivo para aferir a competência da jurisdição administrativa referindo que foi intenção do novo ETAF abandonar o critério da entidade contratante, e definir as competências dos Tribunais Administrativos apenas em função da natureza e do regime legal específico de cada contrato. Isto porque é perfeitamente possível perceber que um litígio sobre um determinado contrato seja da competência material da jurisdição administrativa, e que o mesmo contrato tenha sido celebrado por pessoas colectivas de direito publico, por entidades publicas sob a forma privada ou por entidades privadas de mão publica. O que mais releva é a sujeição do contrato a normas de direito publico, o que sempre acarreta um esforço do interprete ou do aplicador do Direito na procura desse regime, na certeza, porém, de que estão hoje bem melhor definidas as competências, em matéria contratual, entre a jurisdição administrativa e jurisdição comum (…).” [Ac. do TCA Sul de 16.06.11, com apoio na doutrina nele citada.].

Essa procura do regime a que o contrato está submetido tem de ser feita através da análise das respectivas cláusulas [Ac. desta Relação de 06.05.10.].

Segundo o artigo 1.º do DL 171/01, de 25.05, o sistema para captação, tratamento e distribuição de água, para recolha, tratamento e rejeição de efluentes e para recolha, tratamento e destino final de resíduos sólidos, constituído por imóveis, infra-estruturas e equipamentos, que serve, parcialmente, os municípios de Santiago do Cacém e Sines, passou a ter a designação de sistema de abastecimento de água, de saneamento e de resíduos sólidos de ... (adiante designado por sistema).

No mesmo preceito refere-se que a propriedade dos imóveis, infra-estruturas e equipamentos ali indicados havia sido transmitida para o Estado pelo DL 115/89, de 14.04, tendo a administração dos mesmos sido cometida à delegação da DGRN em ..., que transitou para o Instituto da Água (INAG) por força do disposto no artigo 18.º-A do DL 191/93, de 24.05, acrescentado a este último diploma pelo DL 110/97, de 08.05.

O artigo 2.º do DL 171/01 prevê o alargamento do sistema a outras áreas, mediante reconhecimento de interesse público justificativo, que será reconhecido por despacho do Ministro do Ambiente e do Ordenamento do Território, sob proposta da sociedade concessionária do sistema, e ouvidos os municípios abrangidos.

Por aquele DL 171/01, foi constituída a sociedade ré, a qual se rege por aquele Diploma, pelos seus estatutos e pela lei comercial (artigo 3.º, n.ºs 1 e 2), sendo os estatutos aprovados e figurando por anexo ao mesmo Diploma (artigo 4.º, n.º 1).

É titular originária das acções da ré a C..., SGPS, SA (artigo 5.º, n.º 1 do DL 171/01).

O exclusivo da exploração e gestão do sistema é adjudicado à ré, em regime de concessão, por um prazo de 30 anos, mediante outorga do contrato de concessão referido no artigo 8.º do DL 181/01 (artigo 6.º, n.ºs 1 e 2).

A exploração e a gestão referidas no n.º 1 daquele preceito abrangem a concepção, a construção das obras e equipamentos, bem como a sua exploração, reparação, renovação e manutenção (n.º 3 do mesmo preceito).

Segundo o artigo 7.º, n.º 1 do DL 171/01, a ré instalará os equipamentos que se revelem necessários para o bom funcionamento do sistema e que decorram do contrato de concessão.

Marcello Caetano [Manual de Direito Administrativo, I, 10ª ed., pág. 184.] considera “(…) pessoas colectivas de direito público, além do Estado, aquelas que, sendo criadas por acto do Poder público, existem para a prossecução necessária de interesse públicos e exercem em nome próprio poderes de autoridade.”.

Tendo em conta aquela definição, concluímos que a ré, atenta a forma da sua criação e os interesses públicos que persegue (que resultam das normas do DL 171/01, acima citadas) é uma pessoa colectiva de direito público.

Mas daí não se infere, sem mais, que as relações jurídicas estabelecidas pela ré hajam de ser geridas exclusivamente por normas de direito público e que, consequentemente, os tribunais competentes para dirimir os conflitos emergentes de tais relações jurídicas sejam sempre os tribunais administrativos.

O que nos reconduz à questão da aplicabilidade ao caso concreto da norma da al. e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF.

Relembramos que naquela alínea estão previstas as questões relativas à validade de actos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de:

- contratos administrativos;
- contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública.

Tal como a autora a configurou no requerimento inicial, a causa de pedir da presente acção é o incumprimento, por parte da ré, de um contrato que celebrou com a autora, tendo por objecto a realização de trabalhos de intervenção/substituição de uma junta de dilatação numa conduta.

Tal contrato poderá ser qualificado como contrato de prestação de serviço, tal como o define o artigo 1154.º do CC.

Segundo o artigo 1.º, n.º 2 do Código dos Contratos Públicos, aprovado pelo DL 18/08 de 29.01, na redacção do DL 11-B/17, de 31.08 [aplicável ao caso dos autos, atenta a data da celebração do contrato invocado pela autora] o regime da contratação pública estabelecido na parte II do CCP é aplicável à formação dos contratos públicos que, independentemente da sua designação e natureza, sejam celebrados pelas entidades adjudicantes referidas no CCP e desde que tais contratos públicos não sejam excluídos do âmbito de aplicação do CCP.

De acordo com o artigo 2.º do CCP, são “Entidades adjudicantes”, além das pessoas colectivas, os “organismos públicos” – entidades criadas especificamente para satisfazerem necessidades de interesse geral, sem carácter industrial ou comercial, desde que financiadas (maioritariamente) por pessoas colectivas públicas ou sujeitas ao seu controlo ou à sua influência dominante (n.º 2 do artigo 2.º), bem como, no âmbito dos sectores especiais (água, energia, transportes e serviços postais), quaisquer entidades, incluindo as empresariais, que exerçam essas actividades, quando estejam sujeitas a controlo ou influência dominante de entidades adjudicantes (artigo 7.º do CCP).

Resulta do exposto que a ré, enquanto concessionária de um serviço público e pessoa colectiva (sociedade anónima) de capitais exclusivamente públicos, conforme ao DL 171/01 que a constituiu, é uma entidade adjudicante e um contraente público (cfr. artigo 3.º do CCP).
Sendo assim, salvo os contratos excluídos (artigo 4.º do CCP) e a contratação excluída (artigo 5.º do CCP), todos os contratos por si celebrados estão sujeitos ao regime da contratação pública estabelecido na parte II do CCP.

O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 5/22, de 26.04.22 [DRE 118/22, 1ª Série, de 21.06.22.], tirado a propósito de um contrato de mandato forense celebrado com uma pessoa colectiva de direito público, com objecto idêntico ao da ré (Águas do Norte, SA), uniformizou a jurisprudência nos seguintes termos:

Compete à jurisdição administrativa a apreciação dos litígios emergentes de contrato de mandato forense celebrado entre um advogado e um contraente público.”.

Embora a situação dos autos não esteja abrangida pelo segmento uniformizador daquele AUJ – por o contrato celebrado entre a autora e a ré ser um contrato de prestação de serviço e o contrato sobre que versou o AUJ ser um contrato de mandato forense – entendemos que a fundamentação daquele aresto tem aplicação ao caso dos autos.

Efectivamente, o contrato de mandato forense é um contrato de mandato oneroso, sendo este uma das modalidades do contrato de prestação de serviço (artigo 1155.º do CC), regendo-se o próprio contrato de prestação de serviço pelas disposições do contrato de mandato (artigo 1156.º do mesmo Diploma).

Assim, passamos a seguir de perto a fundamentação daquele AUJ, devidamente adaptada ao contrato de prestação de serviço:

O contrato de prestação de serviço não é um contrato excluído pelo artigo 4.º do CCP e não pode a sua contratação considerar-se excluída pelo artigo 5.º do mesmo Código (segundo o qual o regime da contratação pública não é aplicável aos “contratos cujo objecto abranja prestações que não estão nem sejam susceptíveis de estar submetidas à concorrência de mercado, designadamente em razão da sua natureza ou das suas características, bem como da posição relativa das partes no contrato ou do contexto da sua formação” – n.º 1 do preceito).

O que, aliás, resulta do artigo 16.º, n.º 2 do CCP, que considera submetidas à concorrência de mercado, designadamente, as prestações típicas abrangidas pelo objecto dos contratos a seguir indicados, independentemente da sua designação ou natureza; sendo um desses contratos o contrato de aquisição de serviços (al. e).

Havendo aqui que ter presente que a tipificação como contratos administrativos dos contratos de aquisição de bens móveis e serviços, por parte de entes públicos a contraentes particulares, assenta na ideia, transmitida por sucessivas directivas comunitárias, de “uma economia aberta e de livre concorrência” e visa “assegurar a efectiva eliminação das chamadas barreiras «invisíveis» ao mercado interno da contratação pública, bem como condições fundamentais de igualdade dos agentes económicos na participação nos diversos procedimentos de formação dos contratos públicos”; ou seja, visa assegurar a transparência dos processos e a igualdade de tratamento dos operadores económicos, impondo que um número mínimo de candidatos seja convidado a participar nos processos, quer se trate de concursos públicos, concursos limitados, processos por negociação ou diálogos concorrenciais.

Pelo que, sendo aplicável ao contrato de prestação de serviço (celebrado com uma pessoa colectiva pública), o regime da contratação pública, é o mesmo um contrato administrativo.

Pois que, segundo o artigo 280.º, n.º 1, al. a) CCP, reveste a natureza de contrato administrativo todo o acordo de vontades, independentemente da sua forma ou designação, em que pelo menos uma das partes seja um contraente público e que assim seja qualificado, como contrato administrativo, no título II da parte III do CCP.

Tal é o caso dos autos, em que, como já referimos, a ré é um contraente público e o contrato de prestação de serviço é um dos contratos administrativos típicos previstos no CCP.

Contrato a que, em tudo quanto não estiver regulado no presente Código, na demais legislação administrativa ou em lei especial, e não seja suficientemente disciplinado por aplicação dos princípios gerais de direito administrativo, é subsidiariamente aplicável às relações jurídicas contratuais administrativas, com as necessárias adaptações, o direito civil (artigo 280.º, n.º 4 do CCP.

Ou seja, não é por o conteúdo substantivo dum contrato de prestação de serviço estar regulado essencialmente nas disposições do CC que o mesmo não pode configurar uma relação jurídica de natureza administrativa.

Uma coisa é o conteúdo substantivo do contrato de prestação de serviço e outra coisa, diversa, é saber/dizer onde a apreciação dos litígios emergentes de tal contrato (ou seja, dos litígios que tenham por objecto questões relativas à validade dos respectivos actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução do contrato) é feita.

Tendo o litígio dos presentes autos como objecto um contrato administrativo – que se invoca como causa de pedir, pedindo-se que a ré seja condenada a pagar a retribuição devida pela execução do contrato – estamos perante uma relação jurídica de natureza administrativa, que se inscreve no tipo de relações jurídicas abrangidas pelo artigo 4.º, n.º 1, al. e) do ETAF.

Face ao disposto naquela norma do ETAF e no artigo 212.º, n.º 3 da CRP, compete aos tribunais da jurisdição administrativa a apreciação de tais litígios."

[MTS]