"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/03/2025

Jurisprudência 2024 (117)


Depoimento de parte;
livre apreciação*


1. O sumário de RP 7/5/2024 (7755/22.0T8PRT.P1) é o seguinte:

I - O depoimento de parte é o meio de prova tendente à aquisição de prova por confissão. Ocorrendo a confissão sobre determinada factualidade, em audiência, é isso transposto para a acta, pela operação normalmente designada por “assentada”, em ordem a que assim se dote de força probatória plena essa confissão.

II - Qualquer das partes pode contribuir para o apuramento da verdade dos factos com as suas próprias declarações, mesmo quanto a factos que lhe sejam favoráveis. Se é certo que pode ser a parte a requerer esse meio de prova, o princípio do inquisitório permite ao tribunal avaliar essas mesmas declarações, ainda que produzidas em audiência por outro motivo que não o requerimento da própria parte, como é o caso de elas surgirem no contexto de um depoimento de parte.

III - O valor da prova de factos feita por declarações da parte a quem eles aproveitam é livremente determinado pelo juiz, mas o tribunal deve ser particularmente cauteloso nessa avaliação, dado o natural interesse do declarante. Porém, conceptualmente, esse meio de prova não está imbuído de uma qualquer menor valia, face a outras modalidades de prova não vinculada.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Não oferece dúvida a qualificação do contrato celebrado entre as partes – um típico contrato de seguro automóvel com cobertura de danos próprios, incluindo a cobertura de furto ou roubo - nem tão pouco o objecto da controvérsia que se mantém nesta fase do processo: a ocorrência, ou não, do furto do BMW do autor, desde o local onde ele alega tê-lo estacionado, no dia 10/10/2020, tal como descrito nos pontos 10 e 11 dos factos provados: nesse dia, entre as 21,00 e as 21,30, o autor estacionou o carro no Largo ..., porque foi jantar a um restaurante nas proximidades, e quando regressou ao local, entre a 1 horas/1 hora e 30 minutos, do dia 11/10/2020, o veículo havia sido subtraído desse local por desconhecidos e em circunstâncias desconhecidas.

Nos termos do contrato, a demonstração dessa factualidade consubstancia a concretização do risco contratual previsto, impondo à ré a indemnização do autor pelo valor do veículo, descontado de 15% por desvalorização, num total que também não é já questionado, de 10.428,01 euros (12.268,24 euros – 15%).

Entende, todavia, a ré que não se deve ter demonstrado que o autor estacionou o veículo como descreve, na data indicada, bem como que dali lho subtraíram. E, por isso, pretende que se deem por não provados os factos descritos nos referidos pontos 10º e 11º.

A impugnação da decisão sobre a matéria de facto está sujeita ao regime processual estabelecido no art. 640º do CPC, o qual, no caso, se mostra claramente respeitado, quer quanto à especificação dos factos a rever, ao sentido da revisão pretendida e aos meios de prova que conduzem a tal decisão.

Cumpre, pois apreciar tal impugnação.

É útil recordar que o tribunal justificou a sua convicção sobre a ocorrência do furto do BMW nos seguintes termos: “Por último e quanto ao desaparecimento do RI. Da conjugação do depoimento de parte do autor, com os depoimentos das testemunhas por este arroladas e o depoimento da testemunha BB, o perito averiguador, concluímos que o autor estacionou o RI no local alegado na petição inicial, no dia 10/10/2020, entre as 21h/21h30m, chegou sozinho e dirigiu-se sozinho ao restaurante B... onde jantou com os amigos que arrolou como testemunhas. Findo o jantar dirigiu-se ao RI para ir embora, na companhia do primo a quem ia dar boleia para casa, a testemunha CC, e de um outro amigo, e este já não estava no local. Após o que telefonou aos restantes amigos que vieram ter consigo, tendo sob conselho da testemunha DD, ido à esquadra da PSP, no ..., onde apresentou queixa. [...]

Ademais todos os factos alegados pela ré para infirmar o desaparecimento involuntário do RI não resultaram provados e/ou não conduzem à conclusão por esta pretendida.

Senão vejamos:

Não se pode afirmar que a temperatura exterior registada na memória da chave do RI que foi utilizada pela última vez no dia do seu desaparecimento, por volta das 21horas e 30 minutos não correspondesse à temperatura real, desde logo porque o documento apresentado pela ré para infirmar esse dado corresponde à temperatura sentida na estação meteorológica de ..., a qual dista mais de 10km do local onde o RI foi estacionado.

Efetivamente nenhuma das testemunhas indicadas pelo autor à seguradora e ouvidas em julgamento viram o RI, só tendo tomado conhecimento após.

Não ficou demonstrado que o Largo ... fosse um local com muito movimento durante a noite, sendo um local quase que “de passagem” obrigatória para acesso à baixa da cidade onde se localiza um maior número de restaurantes e de bares e as casas de habitação ali existentes não estão no ... mas nas suas imediações, sendo natural que as pessoas ali habitantes não tivessem conhecimento da existência de um furto, o mesmo sucedendo com os funcionários do restaurante e, ainda, que estes não se recordassem do autor, nem que o autor, constatando que o RI tinha desaparecido tivesse retornado ao restaurante, pois porque o que faria?; que auxílio poderia ser prestado ou interesse teria informar o restaurante do desaparecimento do veículo?

Não se pode afirmar, como o fez a ré, que a tecnologia CAS4 fosse um sistema “extremamente eficaz na prevenção de situações de furto”, primeiro porque uma simples busca na internet permita a aquisição de uma chave para um veículo igual ao RI (https://www.chaviarte.pt/comando-bmw-cas4-de-quatro-bot-es-433-mhz-serie-faab03tmcas4 fem.html); segundo é de conhecimento geral, como de há uns anos a esta parte os veículos BMW têm sido o alvo privilegiado de furtos, não só dos seus componentes como dos próprios veículos, existindo tecnologia disponível na internet de fácil acesso e custo pouco significativo que permitem que se aceda ao interior do veículo e que ele seja colocado em funcionamento. Ao contrário do que pretende a ré não existem veículos impossíveis de serem furtados a tecnologia dos veículos evoluiu mas em simultâneo evoluiu o meliante que se dedica ao furto de veículos automóveis, já não sendo aquele que parte o vidro, entra no veículo e o coloca funcionar através de uma ligação direta.

O autor desde que adquiriu o RI celebrou vários contratos de seguro, só que tal circunstância ainda que conjugada com todas as outras alegadas pela ré não permitem concluir pelo não desaparecimento involuntário do RI. A ser assim, até se poderia questionar se sendo esse o objetivo do autor porque celebraria o contrato de seguro com a ré quando anteriormente já tinha tido um seguro com a Tranquilidade, que é a marca comercial do Grupo A.... Por outro lado, dos seguros celebrados anteriormente só o celebrado com a E... não tinha cobertura contra furto e roubo.

A ré alegou, mas não provou que o autor estivesse efetivamente ligado ao ramo automóvel, é certo que o seu pai se dedica à venda de peças automóveis e pneus, que o autor anuncia na sua página de Facebook a venda de veículos, mas daí a se poder concluir, com toda a certeza, que o desaparecimento do RI foi propositado/planeador, não é possível. O autor explicou o motivo, apresentado uma explicação plausível e a ré apenas se limitou a levantar a suspeita, suspeita essa que até quase que se poderia traduzir como um preconceito em relação a todos os comerciantes de automóveis e artigos conexos.

Também a circunstância de, segundo a ré, o autor não ter publicitado nas redes sociais o desaparecimento do RI não levanta qualquer dúvida, desde logo porque se desconhece se todo o perfil do autor é público e por outro porque nem tudo o que acontece na vida das pessoas, principalmente os acontecimentos de cariz negativo são expostos ao mundo, ainda, que tais pessoas tenham uma postura de abrirem a todos a sua vida.

A ré não logrou demonstrar que o valor pelo qual o RI foi segurado tenha sido da autoria do autor (o que não se pode deixar de estranhar que tenha sido, como o afirmou a ré, desde logo pelo seu detalhe, indo até ao cêntimo, o que no homem comum não é habitual, tendendo sempre para o arredondamento), apenas se sabendo que a ré aceitou celebrar o contrato de seguro, com as coberturas contratadas, sem hesitação ou qualquer correção. Aceitando em segurar o RI pelo valor de 12.268,24 euros, ainda que em período anterior tenha estado seguro nos seus serviços por valor inferior. São tudo circunstâncias que a ré não podia ignorar e que poderiam conduzir a uma não aceitação da proposta de seguro ou à sua modificação, o que não aconteceu. Acresce, ainda, a ausência de demonstração do valor comercial do RI, porquanto os meios de prova apresentados reportam-se ao ano de 2022 e a veículos com uma quilometragem superior ao RI.

A tudo isto acresce um aspeto banal, mas com importância: se o autor tivesse provocado o desaparecimento do RI porque motivo, aparentemente sem levantar qualquer obstáculo, entregaria ambas as chaves do RI, não ignorando que as mesmas eram dotadas de memória? Não seria mais simples, apresentar apenas uma ou até declarar que as tinha perdido?

Por todos estes fundamentos se considerou como provada a factualidade descrita nos factos provados e não provada a incluída no ponto 2 dos factos não provados.”

A longa transcrição que antecede justifica-se, ainda mesmo antes de se analisarem os argumentos que sustentam a questão suscitada no recurso, para melhor se compreender o iter decisório do tribunal recorrido. Verifica-se, do excerto citado, que o tribunal considerou suficientemente satisfeito o ónus da prova que impendia sobre o autor, quanto à demonstração da subtracção do seu veículo, sem que tenha descurado a falência de toda a actividade destinada a contraprova desenvolvida pela ré.

Com efeito, o art. 346º do C. Civil dispõe que, à parte contrária da onerada com o ónus da prova, cabe tornar duvidosos os factos que aquela teria de provar. Porém, no caso em apreço, e sem que a ré o venha impugnar, todas iniciativas nesse sentido se frustraram em termos que, de alguma forma – como resulta da interpretação da argumentação do tribunal - tornaram, isso sim, plausível a tese do autor.

Importa, então, verificar se os meios de prova produzidos devem ter-se por suficientes para se considerarem provados os factos em questão.

Negando-o, afirma a apelante que nenhuma das testemunhas EE, agente da PSP, FF, directora-comercial, DD, empresário e GG, profissional de seguros, declarou ter visto o veículo estacionado no local em causa, o Largo .... Apenas CC o referiu, mas o seu depoimento foi desvalorizado pelo tribunal. E do depoimento de BB, perito averiguador, nada resulta.

A isso acresce que acresce que a declaração do próprio autor, nas circunstâncias em que foi prestado, não pode alicerçar a convicção do tribunal. Alega a ré: “O facto em causa, por alegado e favorável ao apelado, não podia ser provado pelo depoimento de parte deste, que visava apenas a sua confissão, não constando sequer da assentada que dele foi lavrada (cf. artº 454º/1 e 463º/1 do CPC e artº 352º do CC), sendo certo que aquele não prestou quaisquer declarações de parte”.

Não se pode, no entanto, concordar com esta tese da apelante, tendente a ignorar, por razões de ordem exclusivamente formal, a utilidade do meio de prova constituído pelas declarações do próprio autor.

É certo que o autor foi chamado a depor no âmbito do depoimento de parte requerido pela ré. Tal depoimento de parte é, como se sabe, o meio de prova tendente à aquisição de prova por confissão – art. 356º, nº 2 do C.Civil. Para além disso, ocorrendo a confissão sobre determinada factualidade, em audiência, é isso transposto para a acta, pela operação normalmente designada por “assentada”, em ordem a que assim se dote de força probatória plena essa confissão. É o que dispõe o art. 358º, nº 1 do C.Civil.

Ora, não sendo a matéria dos factos 10º e 11º desfavorável ao próprio autor, não poderia ela ser demonstrada por confissão – art. 352º do C.Civil.

Porém, como se sabe, a própria parte pode contribuir para o apuramento da verdade dos factos com as suas próprias declarações, mesmo quanto a factos que lhe sejam favoráveis. O art. 466º do CPC veio prevê-lo expressamente e, se é certo que pode ser a parte a requerer esse meio de prova, é não menos certo que o princípio do inquisitório, tal como consagrado no art. 411º do CPC, permite ao tribunal avaliar essas mesmas declarações, ainda que produzidas em audiência por outro motivo que não o requerimento da própria parte. Como acontece, por exemplo, no caso de elas surgirem no contexto de um depoimento de parte requerido pela parte contrária. Essa solução, congruente com o princípio do inquisitório, mostra-se, de resto, expressamente prevista no art. 413º.

É óbvio, todavia, que o valor da prova de factos feita por declarações da parte a quem eles aproveitam é livremente determinado pelo juiz (arts. 466º, nº 3 e 607º, nº 5 do CPC), tal como o é que o tribunal deve ser particularmente cauteloso nessa avaliação, dado o natural interesse do declarante. Como se refere no Ac. do TRC de 05-11-2019, proc. nº 2012/15.0T8CBR.C1 “O princípio da livre apreciação da prova nunca atribui ao juiz “o poder arbitrário de julgar os factos sem prova ou contra as provas”, ou seja, a livre apreciação da prova não pode confundir-se “com uma qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios”, sendo “antes uma conscienciosa ponderação desses elementos e das circunstâncias que os envolvem”.

Porém, conceptualmente, esse meio de prova não está imbuído de uma qualquer menor valia, face a outras modalidades de prova não vinculada, tal como se salienta no sumário desse mesmo acórdão: “A prova por declarações deve merecer a mesma credibilidade das demais provas legalmente admissíveis e deverá ser valorada conforme se estabelece no art. 466.° n.º 3 do NCPC, isto é, deverá ser apreciada livremente pelo tribunal.”

Temos, pois, rejeitando a tese da apelante, que as declarações do autor quanto à matéria em questão, nas concretas circunstâncias em que foram prestadas, transcendendo a função do depoimento de parte, mas passíveis de aproveitamento pelo tribunal, constituem um meio de prova válido e eficaz para a comprovação do furto do automóvel, mas descritas circunstâncias de tempo e lugar.

No caso, essas declarações mostram-se em si mesmas credíveis, dado o contexto em que é descrito o estacionamento do carro, a razão que o determinou, a razoabilidade de toda a dinâmica factual descrita. E isso tanto mais quanto se constate um contexto fáctico da situação onde seja natural a impossibilidade de produção de outra prova que não as declarações do próprio autor, como acontece no caso em apreço em que este descreve que chegou ao local onde estacionou o carro sem a companhia de outrem.

A isso acresce um facto externo ao próprio autor e que é congruente com a sua descrição: a entrega dos dois exemplares de chaves do veículo ao perito averiguador da ré e os elementos que eles proporcionaram (documentos juntos com a contestação da ré) designadamente a chave que revelava a sua última utilização em 10/10/2020, às 21,37h. Ou seja: quando o autor declara ter chegado e estacionado, jamais tendo voltado a ver o carro.

Por outro lado,, sendo certo que testemunhas como FF ou DD não viram que o autor tivesse estacionado o carro nas circunstâncias que descreveu, também o é que toda a dinâmica da combinação para o jantar e do ocorrido após o jantar, com a constatação do desaparecimento do carro, foram descritas em termos perfeitamente serenos, coerentes e credíveis, revelando a credibilidade de toda a narração do autor. FF e DD, que então eram namorados, narraram como chegaram ao restaurante, jantaram com o autor e outros, dali saíram e partiram, depois de se despedirem do autor e do seu primo CC, e como logo foram contactados pelo autor a contar como o carro desaparecera. E, bem assim, como acorreram ao local e desencadearam as acções seguintes: contacto para saber se o carro fora rebocado e queixa na PSP.

Em suma, conjugando todos os meios de prova referidos, inexiste qualquer razão para descrer da versão do autor sobre os factos ocorridos, designadamente os constantes dos itens 10º e 11º, coerentes com todos os demais narrados congruentemente por ele e pelas referidas testemunhas, quanto ao encontro no referido restaurante, partida dali, percepção do desaparecimento do veículo do local onde fora estacionado e onde FF e DD regressaram para acompanharem o autor nas referidas circunstâncias."

*3. [Comentário] Adere-se, sem reservas, à orientação defendida no acórdão.

O depoimento de parte é livremente apreciado pelo tribunal (art. 466.º, n.º 3, CPC). Livre apreciação significa, em geral, ponderação do valor probatório a atribuir ao meio de prova em função de todos os factores relevantes. Seria estranho que, em função destes factores, o depoimento de parte nunca fosse susceptível de merecer um valor probatório igual ao de outros meios de prova. 

Aliás, se no art. 466.º CPC se consagra o depoimento de parte como meio de prova, é porque este meio é susceptível de ter um valor probatório igual ao de qualquer outro meio de prova. Seria inconsequente consagrar um meio de prova que não pudesse ser valorado como qualquer outro meio de prova.

MTS