Em apoio desta orientação o acórdão cita Alberto dos Reis. Antes de (voltar a) reflectir sobre a orientação adoptada pelo STJ, importa ver o que disse realmente Alberto dos Reis sobre a consideração na sentença final dos "factos constitutivos, modificativos ou extintivos que se produzam posteriormente à proposição da acção" (art. 611.º, n.º 1, CPC, correspondente ao art. 663.º CPC/1939).
"[...] o art. 611 do CPC dispõe que, sem prejuízo das restrições estabelecidas noutras disposições legais (nomeadamente quanto às condições em que pode ser alterada a causa de pedir), deve a sentença tomar em consideração os factos (no que nos interessa os factos constitutivos) que se produzam posteriormente à proposição da acção, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão.Na consideração dos referidos factos estaremos, assim, limitados pelas condições em que possa ser alterada a causa de pedir.
A propósito do preceito que constava do anterior Código, comentava Alberto dos Reis ([Alberto dos Reis, «Código de Processo Civil Anotado»], vol. V, pág.. 84.) haver que salvaguardar a causa de pedir sobre que assenta a acção. Concretizando: «Que o facto constitutivo se complete ou se produza na pendência da causa, está bem, contanto que esse facto faça nascer precisamente o direito invocado pelo autor, e não um direito diverso». E, mais adiante: «Assentemos nisto: O facto superveniente, de eficácia constitutiva, há-de conter-se na causa de pedir sobre que assenta a acção».
3. a) i) Como seria de esperar, a análise de Alberto dos Reis (Código de Processo Civil anotado V (Coimbra 1952), 84 s.) é bastante mais completa (e até complexa) do que o que consta da citação feita no acórdão do STJ.
A e B são comerciantes na mesma cidade; B vincula-se perante A a não abrir nessa cidade um estabelecimento comercial do ramo de negócio de A; em certa altura, A convence-se de que B não cumpriu a obrigação que assumiu perante ele e propõe uma acção contra B; verifica-se que, no momento da propositura da acção, B não tinha aberto nenhum estabelecimento, embora o tivesse vindo efectivamente a fazer já na pendência da acção.
"Quando se diz que a causa de pedir é o acto ou facto jurídico de que emerge o direito que o autor se propõe fazer valer, tem-se em vista, não o facto jurídico abstracto, tal como a lei o configura, mas um certo facto jurídico concreto, cujos contornos se enquadram na configuração legal. Por outras palavras: se eu demando certa pessoa com base nun contrato de compra e venda, a causa de pedir na acção não é a categoria legal-contrato de compra e venda; é aquele contrato particular de compra e venda que eu identifico".
É precisamente por isto que, nos exemplos acima referidos, a causa de pedir não é a abertura, em abstracto, de um qualquer estabelecimento comercial, nem, em abstracto, qualquer lesão corporal sofrida pelo demandante.
"A propôs acção de alimentos contra B, seu irmão; este contesta, alegando que vive ainda um avô de A e que, por isso, é ao avô, e não a ele, réu, que cumpre prestar alimentos [...]; morre o avô no curso do processo; em face do art. 663.º, o tribunal deve atender a este facto superveniente, para o efeito de julgar procedente a acção".
Este exemplo parece ser muito mais convincente e muito menos problemático do que o anterior.
b) Depois de ter acentuado que, como primeiro factor a ter conta na aplicação do regime do então art. 663.º CPC/1939, "o facto superveniente, de eficácia constitutiva, há-de conter-se na causa de pedir sobre que assenta a acção", Alberto dos Reis acrescenta o seguinte:
"A outra limitação que resulta do art. 663.º é esta: o facto superveniente há-de ser alegado até ao encerramento da discussão; o tribunal só pode tomá-lo em conta se for invocado até esse momento."
É aqui referido um aspecto temporal, mas também se refere um outro aspecto essencial: o facto superveniente que o tribunal pode considerar na sentença final tem de ser invocado pela parte que nisso tenha interesse. Este aspecto relativo à alegação pelo autor do facto constitutivo é completamente omitido na citação que consta do acórdão em análise. No entanto, não o devia ter sido, desde logo por duas razões.
Uma primeira é a seguinte: o disposto no art. 611.º, n.º 1, CPC deve ser visto em conjugação com o que se dispõe no art. 588.º, n.º 1 e 3, CPC sobre a alegação, em articulado superveniente, dos factos constitutivos, modificativos ou extintivos que ocorram depois da apresentação do articulado da parte. Dito de outro modo: os factos constitutivos, modificativos ou extintivos que devem ser tomados em consideração na sentença final segundo o disposto no art. 611.º, n.º 1, CPC são os factos constitutivos, modificativos ou extintivos que as partes têm o ónus de alegar nos articulados supervenientes regulados no art. 588.º CPC.
Uma segunda razão é a seguinte: assente o princípio de que os factos referidos no art. 611.º, n.º 1, CPC coincidem com os factos que são alegados como supervenientes nos termos do art. 588.º CPC, imediatamente se vê que não tem sentido nenhum estender este regime à separação de facto por um ano consecutivo que, nos termos do art. 1781.º, al. a), CPC, constitui fundamento do divórcio "litigioso". Ou será que alguém está a pensar que o autor pode intentar a acção de divórcio quando quiser, porque, quando, durante a pendência da acção, se completar o ano da separação de facto, o autor vai alegar este evento como um facto superveniente?
Sinceramente, não parece que se respeite a memória de Alberto dos Reis se se conceber que, colocado perante o problema de saber se a separação de facto dos cônjuges deve estar completada antes da propositura da acção de divórcio ou se essa separação se pode completar durante a pendência dessa acção, o Mestre de Coimbra iria responder que o autor pode intentar a acção de divórcio quando quiser e que esta parte apenas terá de ter o cuidado de, quando o decurso do prazo de um ano de separação se completar durante a pendência da acção, invocar esse facto em articulado superveniente.
c) Atendendo ao exposto anteriormente, pode concluir-se que o problema em análise não consegue uma resposta satisfatória no âmbito do regime dos factos supervenientes. Seria tudo estranho: seria considerado facto superveniente o decurso de uma parte de um prazo que, como todos os prazos, é algo que é uno e insusceptível de ser parcelado; além disso, para se ser coerente com o regime dos factos supervenientes, o autor poderia intentar a acção de divórcio quando quisesse e tudo ficaria bem se alegasse o prazo decorrido na pendência da acção como um facto superveniente. A estranheza de se alegar como facto superveniente o completamento de um prazo cuja contagem se iniciou antes da propositura da acção deveria ser suficiente para levar a suspeitar de que não se está num caminho que conduza a uma solução aceitável do problema.
Fica assim afastada a aplicação do regime dos factos supervenientes à situação na qual a separação de facto durante um ano consecutivo se completa durante a pendência da acção de divórcio. A demonstração de que a própria jurisprudência que entende o contrário não se sente confortável com a solução resulta da circunstância de essa jurisprudência só aplicar "meio regime" dos factos supervenientes e esquecer que, para ser coerente consigo própria, teria de exigir que o autor alegasse o decurso do prazo ocorrido na pendência da acção de divórcio através de um articulado superveniente. Por razões evidentes, essa jurisprudência nunca deu este passo para o absurdo.
4. a) Passa-se agora a analisar uma outra questão. Independentemente de saber qual o regime legal que é aplicável à aceitação de que o prazo de separação de facto legalmente exigido para fundamentar o divórcio se possa completar durante a pendência da respectiva acção, o que é que a jurisprudência que aceita esta solução está realmente a admitir?
Importa começar por desfazer uma frequente confusão terminológica. A questão é a seguinte: pode, naturalmente, afirmar-se que o decurso de um prazo (de um ano, por exemplo) se encontra completo em 1/12, 1/6, 1/4, 1/2 ou 3/4; mas não tem qualquer sentido afirmar que uma qualquer causa de pedir se encontra preenchida em 1/12, 1/6, 1/4, 1/2 ou 3/4. Imagine-se o caso da aquisição da propriedade por usucapião: não é aceitável que, à medida que decorre o tempo de posse, se diga que a aquisição se encontra completada em 1/12, 1/6, 1/4, 1/2 ou 3/4. Como é indiscutível, o que é juridicamente relevante é se há ou não há aquisição por usucapião ou, em termos processuais, se há ou não há causa de pedir.
Desta elementar verificação decorre uma consequência importante para o caso em análise. Ao contrário do que, por vezes, se afirma, não se trata de completar a causa de pedir com o tempo que decorre depois da propositura da acção de divórcio. Como acima se referiu, essa afirmação baseia-se num enorme equívoco, porque ela implica admitir que, à medida que o tempo de separação dos cônjuges aumenta, vai havendo 1/12, 1/6, 1/4, 1/2 ou 3/4 de causa de pedir (!). Assim, se não tem qualquer sentido admitir um sucessivo completamento da causa de pedir à medida que aumenta a duração da separação dos cônjuges, a conclusão impõe-se: o que a jurisprudência que admite que a acção se divórcio possa ser instaurada antes de estar terminado o prazo de um ano de separação entre os cônjuges realmente aceita é que (i) a acção se divórcio pode ser proposta quando ainda não há causa de pedir e que (ii) a causa de pedir se pode constituir durante a pendência dessa acção. Não há outra discrição possível para o que essa jurisprudência aceita.
Quer isto dizer que a solução propugnada pela jurisprudência que segue a orientação adoptada no acórdão em análise conduz a admitir quer uma causa de pedir in fieri -- isto é, uma causa de pedir que ainda não há, mas que vai existir --, quer a constituição superveniente da causa de pedir. É claro que isto nada tem a ver com o regime da alegação de factos supervenientes e com o disposto nos art. 588.º (quanto aos articulados supervenientes) e no art. 611.º CPC (quanto à consideração de factos supervenientes na sentença final). Uma coisa é admitir-se que sejam tomados em consideração factos supervenientes como factos integrantes da causa de pedir, outra completamente diferente é aceitar-se a constituição superveniente da própria causa de pedir. A primeira respeita todos os parâmetros processuais; a segunda contraria todos esses parâmetros.
Aliás, a solução que se tem vindo a criticar suscita ainda esta dúvida: se, na petição inicial, nada se disser sobre o tempo de separação dos cônjuges, o que deve fazer o juiz? Considerar que a petição é inepta por falta de causa de pedir (art. 186.º, n.º 2, al. a), CPC) ou considerar que, para já, está tudo bem e a final logo se verá se, feitas as contas, chegou a haver um ano de separação entre os cônjuges?
b) Para mostrar a insustentabilidade da corrente jurisprudencial que o acórdão em análise sufraga não é sequer necessário recorrer ao argumento ad terrorem de que as premissas em que ela assenta levam a admitir que a acção de divórcio possa ser instaurada mesmo antes de qualquer separação de facto. Se a acção pode ser proposta quando ainda faltam 11 meses para se completar a separação de facto, qual é a razão substancial que pode ser invocada para impedir que a acção seja proposta quando a separação não tem mais de uma semana ou mesmo quando ainda não há nenhuma separação? Repare-se que para todas estas situações, pode ser utilizada uma e mesma justificação: a aceitação da constituição superveniente da causa de pedir.
Talvez sem o mesmo carácter de argumento ad terrorem, mas com a mesma força persuasiva, cabe acrescentar que a orientação defendida no acórdão do STJ tem de valer para todas as situações em que a constituição da causa de pedir depende do decurso de um prazo. É o caso, por exemplo, da justificação da ausência (art. 99.º CC), da declaração de morte presumida (art. 114.º, n.º 1, CC), da aquisição da propriedade através da usucapião (art. 1294.º ss. e 1298.º ss. CC) e da extinção de servidões (art. 1569.º, n.º 1, al. b), CC). Mas também será o caso no qual o credor instaura a acção antes de terminar o prazo para o cumprimento pelo devedor, com o -- pelos vistos, aceitável -- argumento de que "se o devedor não cumpriu até agora, está-se mesmo a ver que já não vai cumprir!".
Enfim, não há outra forma de ver as coisas que não a de concluir que a orientação defendida no acórdão do STJ contraria tudo o que se ensina designadamente quer sobre a causa de pedir, quer sobre a ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir e a insusceptibilidade da sua sanação, quer ainda sobre o interesse processual (que, afinal, também se admite que seja preenchido durante a pendência da ação). Tudo isto demonstra que não está em causa matéria de opinião, mas antes algo que contende com a própria Ciência Processual Civil.
5. Estas reflexões terminam com dois apontamentos.
Pode compreender-se que a jurisprudência, levada pelo "sentimento", não queira sujeitar o cônjuge autor a manter um casamento que -- em certos casos, até manifestamente -- deixou de fazer qualquer sentido. Há, no entanto, uma solução fácil e legal para solucionar o problema: é entender que, apesar de não haver entre os cônjuges uma separação de facto por um ano consecutivo, os factos alegados pelo autor são suficientes para preencher a cláusula geral enunciada no art. 1781.º, al. d), CC.
Atendendo ao acolhimento que a tese sufragada no acórdão do STJ tem tido na sua jurisprudência, pode ser-se levado a concluir que o STJ entende que se impõe a solução adoptada, que todos os tribunais devem seguir essa solução e que, sempre que seja chamado a decidir o problema, decidirá no sentido de que, na acção de divórcio, a causa de pedir se pode constituir na pendência dessa acção. Nunca estará em causa a liberdade de o STJ determinar e fixar como prática jurisprudencial o que muito bem entender, mas isso não exclui a valoração dos méritos dessa prática segundo a lei e a Ciência Processual Civil.
MTS