Acção de demarcação;
título executivo*
1 – Na ação de demarcação donde resultou o título dado à execução, o tribunal ao definir as linhas divisórias dos prédios pertencentes a cada uma das partes (prédios confinantes) não fixou qualquer outra obrigação para a aqui apelada senão a de consentir ou contribuir para a demarcação nos termos decididos.
2 - Ocorrendo uma situação de violação da integridade do direito de propriedade da exequente, a sentença dada à execução que se formou no âmbito de uma ação de demarcação não constitui título executivo bastante para a execução da prestação de «entrega da área ocupada e reposição da situação anterior à ilegal ocupação».
3 – É através de uma ação de reivindicação que a exequente deve exigir a tutela da integridade daquele seu direito real, reclamando a restituição ou entrega daquilo que lhe pertence, sendo também nessa ação que a recorrida terá a oportunidade de se pronunciar sobre a pretensão condenatória da contra-parte.
II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"Através da presente ação executiva pretende a exequente que a executada «entregue a área que está a ocupar do seu (dela-exequente) imóvel e reponha a situação que existia antes da ocupação ilegal». Para tal desiderato deu à execução uma sentença, transitada em julgado, proferida no âmbito de uma ação de demarcação.
No presente recurso está em causa saber se a sentença dada à execução constitui título executivo (suficiente) para a prestação de «entrega da área ocupada e reposição da situação anterior à ilegal ocupação».
Vejamos.
De acordo com o disposto no artigo 10.º, n.º 5, do Código de Processo Civil toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva.
O título executivo confere ao direito exequendo o grau de segurança que o sistema considera suficiente para a admissibilidade da ação executiva, através dele se determinando o tipo de ação, o seu objeto, a legitimidade ativa e passiva para a execução, sendo também através dele que se verifica se a obrigação é certa, líquida e exigível [---]
As sentenças condenatórias, isto é, as decisões com valor de caso julgado material proferidas num processo contraditório e pelas quais um tribunal impõe um comando de cumprimento de uma obrigação ao réu, constituem títulos executivos, conforme artigo 703.º, n.º 1, alínea a), do CPC.
O conceito de “obrigação” traduz um vínculo entre pessoas, impondo a uma delas o dever de realizar uma prestação (de dare, facere ou non facere) em benefício da outra [---]
A condenação corresponde ao pedido formulado na ação (condenatória) e sobre o qual a parte contrária teve oportunidade de se defender, ou seja, de exercer o direito ao contraditório.
[...] no caso em apreço a sentença dada à execução foi proferida no âmbito de uma ação de demarcação.
O direito de demarcação mostra-se regulado nos artigos 1353.º e ss. do Código Civil. De acordo com o disposto no artigo 1353.º do Código Civil o proprietário pode obrigar os donos dos prédios confinantes a concorrerem para a demarcação das estremas entre o seu prédio e os deles.
É consabido que através da
ação de demarcação não se visa a obtenção da declaração de qualquer direito real ou a sua amplitude, ou seja, não se discute a titularidade dos prédios confinantes, procurando-se, tão só, definir as extremas de prédios confinantes. A causa de pedir nas ações de demarcação é complexa, exigindo a alegação da titularidade por autor e réus de prédios distintos, a confinância desses prédios e uma controvérsia quanto aos limites e/ou inexistência de linha divisória sinalizada no terreno
[---] [---]. Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24.01.2019, processo n.º 21895/17.3T8PRT.P1, consultável em
www.dgsi.pt., «Na típica ação de demarcação a questão da propriedade é invocada apenas como legitimação para a ação – artigo 1353.º do Código Civil – já que o que se pede não é o reconhecimento do direito de propriedade, mas antes a definição da linha divisória, que se alega incerta, entre dois prédios confinantes. (…) limitada que está à declaração do direito de propriedade apenas como pressuposto do estabelecimento da demarcação nos termos decididos, não contém em si qualquer juízo de condenação para além do que se refere ao estabelecimento da demarcação nos termos decididos, podendo, nessa medida, servir de título executivo para compelir coercivamente o demandado a contribuir ou consentir na demarcação assim decidida» [---]
In casu a exequente apresentou como título executivo uma sentença proferida no âmbito da ação declarativa de condenação que correu termos sob o n.º 480-CE/1992, no Tribunal Judicial de Albufeira, 2.º Juízo. Naquela ação movida pela massa falida da (…) e Gestão Hoteleira, SA contra a (…) – Sociedade de Importação, Exportação e (…), SA, a primeira pediu a condenação da segunda a reconhecer que a demarcação dos prédios urbanos sitos no lugar de (…), na freguesia e concelho de Albufeira, descritos na Conservatória do Registo Predial de Albufeira, sob os n.ºs (…) e (…) e inscritos na matriz predial urbana sob os artigos (…) e (…), respetivamente, fosse efetuada em consonância com a linha tracejada e sombreada a amarelo no documento de fls. 76 dos autos ou, caso assim não se entendesse , que a linha divisória fosse judicialmente definida nos termos legais.
E o tribunal, por sentença transitada em julgado, declarou que as linhas divisórias dos prédios melhor identificados nos autos correspondem às extremas indicadas nos facto provado n.º 8, ou seja, que o prédio urbano sito em (…), freguesia e concelho de Albufeira, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Albufeira sob o n.º (…), confina do nascente e do norte com o prédio urbano sito em (…), freguesia e concelho de Albufeira, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Albufeira sob o n.º (…), sendo a extrema nascente delimitada por uma faixa de terreno que se inicia no portão que confina com a via pública (Av. das …) e situado a poente das habitações existentes no prédio urbano sito em (…), inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…), segue paralelamente ao limite nascente do caminho calcetado, ao longo de uma distância de cerca de 25 metros, faz um ângulo recto, avançando para nascente ao longo de uma distância de cerca de 3,5m, contornando a central de bombagem, seguidamente faz um outro ângulo recto, avançando para sul ao longo de uma distância de 8,5 metros, paralelamente à central de bombagem, ao depósito de água tratada e ao squash, após o que faz um novo ângulo recto, avançando para nascente, numa linha paralela ao edifício que serviu para andar modelo, situado a norte dessa linha, ao longo de uma distância de cerca de 23 metros e que corresponde à extrema norte de delimitação do prédio urbano sito em (…), freguesia e concelho de Albufeira, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…).
Naquela ação de demarcação, donde resultou o título dado à execução, o tribunal ao definir as linhas divisórias dos prédios pertencentes a cada uma das partes (prédios confinantes) não fixou qualquer outra obrigação para a aqui apelada senão a de consentir ou contribuir para a demarcação nos termos decididos. Ou seja, a única mudança jurídica operada pela sentença foi a fixação das linhas divisórias entre os dois prédios confinantes, não se podendo considerar que aquela decisão judicial impõe, implicitamente, a qualquer das partes (in casu à aqui executada) uma obrigação de se absterem da prática de atos lesivos do direito de propriedade da contra-parte e, em consequência, de uma obrigação de eliminação dos efeitos decorrentes de tal violação.
Como afirma Rui Pinto [A Ação Executiva, 2019, Reimpressão, AAFDL Editora, pág. 159.] «O pedido de condenação deve ser expresso, pois que o tribunal não conhece senão o que o autor pediu, conforme o artigo 609.º, n.º 1. (…) A violação dos direitos de propriedade ou de servidão terá de ser apurada na devida ação condenatória. No entanto, é possível ao autor, tanto na divisão de coisa comum, como na demarcação, como na mudança de servidão, fazer uso do artigo 557.º, n.º 2, para se obter a adequada condenação in futurum, verificados os requisitos respetivos, naturalmente».
No seu requerimento executivo a exequente, aqui apelante, invoca a violação, pela executada, do seu direito de propriedade, alegando o seguinte: «a executada, no início deste ano de 2019, iniciou a construção de uma piscina, tendo a exequente, em meados de abril deste ano, verificado que aquelas construções ocuparam uma boa parte do terreno/logradouro do prédio da exequente numa extensão de aproximadamente 250 m2, construindo ainda um muro de 4 metros de altura, avançando a sua extrema a sul ocupando terreno/logradouro da (…), ora exequente. Mais ocupou a executada o caminho de acesso ao terreno/logradouro da (…), ora exequente, impedindo os veículos particulares e de emergência de entrar no terreno/logradouro do prédio da (…). Com as ditas obras, a executada exorbitou as extremas resultantes da douta sentença avançando 15 metros para o interior do terreno/logradouro contíguo, que é propriedade da (…), ora exequente, deixando uma entrada para peões com 2,20m a qual é impeditiva da livre circulação de veículos, de estacionamento e circulação de veículos dos bombeiros em caso de emergência».
Como decorre do exposto supra, ocorrendo uma situação de violação da integridade do direito de propriedade da exequente, a sentença dada à execução não constitui título executivo bastante para a execução da prestação de «entrega da área ocupada e reposição da situação anterior à ilegal ocupação». É, ao invés, através de uma ação de reivindicação que a apelante deve exigir a tutela da integridade daquele seu direito real, exigindo a restituição ou entrega daquilo que lhe pertence, sendo também nessa ação que a recorrida terá a oportunidade de se pronunciar sobre a pretensão condenatória da contraparte. E só se a ré se negar a cumprir a respetiva sentença é que se torna necessária a instauração de uma ação executiva."
*III. [Comentário] Salvo o devido respeito, não se acompanha a posição da RE.
Afirma a RE:
"Na[...] ação de demarcação, donde resultou o título dado à execução, o tribunal, ao definir as linhas divisórias dos prédios pertencentes a cada uma das partes (prédios confinantes), não fixou qualquer outra obrigação para a aqui apelada senão a de consentir ou contribuir para a demarcação nos termos decididos. Ou seja, a única mudança jurídica operada pela sentença foi a fixação das linhas divisórias entre os dois prédios confinantes, não se podendo considerar que aquela decisão judicial impõe, implicitamente, a qualquer das partes (in casu à aqui executada) uma obrigação de se absterem da prática de atos lesivos do direito de propriedade da contra-parte e, em consequência, de uma obrigação de eliminação dos efeitos decorrentes de tal violação."
Noutros termos: a RE entende que da sentença proferida na acção de demarcação resultou apenas a condenação da demandada numa obrigação de facto: em concreto, na obrigação de "consentir ou contribuir para a demarcação nos termos decididos". Ora, não é este o objecto da acção de demarcação -- que é uma acção real, não uma acção obrigacional. É por isso que também não se pode acompanhar a RE na irrelevância prática a que, na segunda parte da afirmação acima transcrita, condena a acção e a sentença de demarcação.
É certo que o art. 1353.º CC define o conteúdo do direito de demarcação como correspondendo a uma obrigação dos "donos dos prédios confinantes concorrerem para a demarcação das estremas entre o seu prédio e o deles". No entanto, o objecto da acção de demarcação é aquele que consta do art. 1354.º CC, como resulta da circunstância de se estabelecer que um non liquet ocorrido nessa acção pode vir a ser ultrapassado, em última análise, pela distribuição do terreno em litígio por partes iguais. Disto decorre que o objecto da acção de demarcação não é nenhuma obrigação de facto do dono do prédio confinante, mas antes, a delimitação recíproca e com eficácia real das estremas de dois prédios confinantes.
MTS