1. Foi
amplamente noticiado na comunicação social que, por acórdão proferido em
10/4/2014, a RL considerou nula uma convenção de competência (ou um pacto de
jurisdição) constante de um contrato de swap
celebrado entre uma empresa e um banco e segundo a qual os litígios que
pudessem emergir do cumprimento do contrato teriam de ser decididos nos
tribunais ingleses. De acordo com o relato feito na comunicação social, a RL
entendeu que “a validade de uma cláusula que elege um foro como sendo o
competente para dirimir um litígio tem que ser analisada à luz dos
inconvenientes que a mesma envolve para os potenciais aderentes", tendo
sido nesta base que a considerou nula.
2. Dando crédito ao que foi referido na comunicação social, o acórdão da RL não seguiu
a orientação do TJ na matéria em causa e defendeu uma posição que é contrariada
pela doutrina que se pronunciou sobre o tema.
Tendo a
convenção de competência sido celebrada por pessoas com domicílio na União
Europeia e tendo sido designado como competente o tribunal de um Estado-membro
(em concreto, o tribunal de Londres), há que aplicar à análise da validade da
referida convenção o disposto no art. 23.º Reg. 44/2001 (que sucedeu ao
semelhante art. 17.º CBrux).
Acontece
que sobre o carácter exclusivo da aplicação do art. 23.º Reg. 44/2001 (ou do
art. 17.º CBrux) na análise da validade dos pactos de jurisdição existe não só
uma importante jurisprudência do TJ, como também uma numerosa doutrina. Foi
precisamente tudo isto que, aparentemente, o acórdão da RL contrariou.
3. Começando
pela jurisprudência do TJ, importa considerar o que foi referido em TJ
16/3/1999 (C-159/97,
Castelletti/Trumpy), n.º 50 ss., ainda sobre o art. 17.º CBrux:
“50. Resulta do exposto que a escolha do tribunal
designado só pode ser apreciada à luz de considerações ligadas às exigências
estabelecidas pelo artigo 17.°
51. Foi por estas razões que o Tribunal de
Justiça concluiu em várias ocasiões que o artigo 17.° da convenção abstrai de
qualquer elemento objectivo de conexão entre a relação controvertida e o
tribunal designado (acórdãos de 17 de Janeiro de 1980, Zelger, 56/79,
Recueil, p. 89, n.° 4; MSG [C-106/95],
já referido, n.° 34; e Benincasa [C-269/95],
já referido, n.° 28).
52. Deve, por consequência,
responder-se às terceira, sétima e sexta questões que o artigo 17.°,
primeiro parágrafo, segunda frase, terceira hipótese, da convenção deve
ser interpretado no sentido de que a escolha do tribunal designado numa
cláusula atributiva de jurisdição só pode ser apreciada à luz de
considerações ligadas às exigências estabelecidas pelo artigo 17.° da
convenção. São estranhas a estas exigências quaisquer considerações
relativas aos elementos de conexão entre o tribunal designado e a
relação controvertida, ao mérito da causa e às normas substantivas em
matéria de responsabilidade aplicáveis no tribunal escolhido."
A
orientação do TJ é bastante clara: (i) os requisitos de validade da convenção de
competência só podem ser aqueles que constam do art. 17.º CBrux (agora do art.
23.º Reg. 44/2001 e, a partir de 10/1/2015, do art. 25.º Reg. 1215/2012), pelo
que o direito dos Estados-membros não pode acrescentar outros requisitos de
validade a essa convenção; (ii) para que a escolha do tribunal seja válida não
é necessário que exista uma qualquer conexão entre o objecto do litígio e o
tribunal designado. Quando o acórdão da RL for conhecido, haverá que analisar
que relevância é que o mesmo deu à jurisprudência do TJ e com que fundamentos
afastou a sua aplicação no caso concreto.
Um outro
aspecto que suscita curiosidade é o de averiguar se a RL ponderou suscitar a apreciação
prejudicial do TJ. Recorde-se o regime relevante: “Sempre
que uma questão desta natureza [isto é, respeitante à interpretação dos Tratados
ou à validade ou interpretação dos actos adoptados pelas Instituições, órgãos
ou organismos da União] seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de
um dos Estados-membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre
essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal de Justiça
que se pronuncie sobre ela” (art. 267.º, § 2.º, TFUE). Só em função do texto do
acórdão será possível verificar se a RL avaliou solicitar a apreciação
prejudicial do TJ e, em caso afirmativo, quais os motivos que foram determinantes
para que não o fizesse.
4. Como se referiu, a orientação seguida
pela RL é contrária à generalidade da doutrina que se pronunciou sobre a
questão da validade dos pactos de jurisdição abrangidos pelo art. 17.º CBrux / 23.º
Reg. 44/2001.
Começando pelo comentário de referência
ao Reg. 44/2001, nele afirma-se, sobre a matéria em análise, o seguinte:
“No
seu campo de aplicação, o art. 23.º decide exclusivamente [realce no
original] sobre a admissibilidade, a
forma e os efeitos de uma convenção de competência. Por isso, a escolha do
tribunal designado só pode ser apreciada com base em considerações que estejam
em conexão com os requisitos do art. 23.º. […] O preceito renuncia a exigir
qualquer conexão objectiva entre o tribunal escolhido e o objecto do litígio.
Não importam as considerações nem sobre as relações entre o tribunal acordado e
o objecto litigioso, nem sobre a adequação da cláusula de escolha do foro, nem sobre
o direito material em vigor no tribunal escolhido” (Kropholler/von Hein, Europäisches Zivilprozessrecht, 9.ª ed.
(2011), Art. 23 EuGVO 17).
A mesma orientação encontra-se em muita
outra doutrina. A título de exemplo pode ser referida a seguinte:
– “Within the boundaries of the Regulation the parties
are free to choose any court they wish. Art. 23 does not require any objective
connection between the chosen court and the parties of their dispute. The
choice of a “neutral” forum with no connection at all to the dispute is
perfectly valid – for instance London jurisdiction for parties domiciled in
France or Germany – and might provide the very advantage the parties have
intended by their choice” (Magnus/Mankowski, Brussels I Regulation,
2.ª ed. (2012)/Magnus, Art. 23 47);
-- “Il n’est pas nécessaire que les parties
choisissent un tribunal ayant un lien quelconque avec l’affaire : cette
solution, reçue en droit international privé français commun, a été
formellement consacré pour la Cour de Justice dans l’arrêt Zelger […] qui, au
point nº 4, déclare que l’article 17 [da CBrux] «(…) fait abstraction de tout
élément objectif de connexité entre le rapport litigieux et le tribunal désigné».
Cette solution a l’avantage de permettre
aux parties de choisir un tribunal «neutre» par rapport à leurs intérêts
respectifs”
(Gaudemet-Tallon,
Compétence et exécutions des jugements en Europe, 4.ª ed. (2010), 140);
- “O
Regulamento Bruxelas I visa, no seu campo de aplicação, uma regulamentação
unitária e completa [realce no original] da
competência internacional. Isto também vale especificamente para a
admissibilidade das convenções de competência, pois que só desta forma é
possível assegurar os interesses das partes numa regulação previsível da
competência. Inaplicáveis, em especial, são, por isso, no quadro do art. 23.º, as
múltiplas regras internas que – de forma directa ou indirecta – contêm
pressupostos de eficácia suplementares para as convenções de competência”
(Brüssel I-Verordnung/unalex Kommentar (2012)/Hausmann, Art. 23 24);
-- “O art. 23.º regula completamente a
admissibilidade da convenção de competência no Processo Civil Europeu” (Hess, Europäisches Zivilprozessrecht
(2010), 313);
-- Na doutrina portuguesa, cf., no mesmo sentido, S. Henriques, Os Pactos de Jurisdição no Regulamento (CE) n.º 44 de 2001 (2006), 81 s.
5. Só o conhecimento do texto do
acórdão da RL permitirá confirmar se as observações agora feitas são realmente
ajustadas ao seu conteúdo. Num certo sentido, era até desejável que assim não
sucedesse: seria sinal de que o “europeísmo” tinha realmente prevalecido sobre o “nacionalismo”.
MTS