"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/05/2014

Legislação europeia (Processo Civil Europeu) (2)


Alteração ao Reg. 1215/2012 (Reg. Bruxelas Ia)

-- Regulamento (UE) n.º 542/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio de 2014, que altera o Regulamento (UE) n.º 1215/2012, no que diz respeito às regras a aplicar em relação ao Tribunal Unificado de Patentes e ao Tribunal de Justiça do Benelux (JO L 163, de 29/5/2014).

Nota: sobre o Reg. 1215/2012 neste Blog clicar aqui e aqui.


Procedimento extrajudicial pré-executivo




1. O art. 1.º L 32/2014, de 30/5 (LPEP), aprova o procedimento extrajudicial pré-executivo (PEP), aplicável a partir de 1/9/2014 (art. 34.º LPEP).

O PEP é um procedimento de natureza facultativa que se destina, entre outras finalidades expressamente previstas na LPEP, à identificação de bens penhoráveis através da disponibilização de informação e consulta às bases de dados de acesso directo electrónico previstas no CPC para os processos de execução cuja disponibilização ou consulta não dependa de prévio despacho judicial (art. 2.º LPEP). O carácter facultativo do PEP implica que não pode ser considerado um processo especial que deva prevalecer sobre o processo comum e que a sua não utilização pelo credor não tem nenhum efeito preclusivo.

2. O recurso ao PEP é admissível desde que estejam verificadas as seguintes condições:

-- O requerente esteja munido de título executivo que reúna as condições para aplicação da forma sumária do processo comum de execução para pagamento de quantia certa (art. 3.º, al. a), LPEP; cf. 550.º nCPC);

-- A dívida seja certa, exigível e líquida (art. 3.º, al. b), LPEP); a exigência da liquidez da dívida não impede que possam ser exigidos juros vincendos (art. 5.º, n.º 1, al. e), LPEP);

 – O requerente indique o seu número de identificação fiscal em Portugal, bem como o do requerido (art. 3.º, al. c), LPEP).

3. A apresentação do requerimento inicial é efectuada em plataforma informática do Ministério da Justiça ou por este aprovada, criada especificamente para o efeito, nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça (art. 4.º LPEP). O requerimento inicial tem o conteúdo estabelecido no art. 5.º LPEP.

Ao requerimento inicial é atribuído um número provisório pelo sistema informático de suporte à actividade dos agentes de execução (SISAAE) e é devolvido ao requerente um identificador único do pagamento, referente aos valores devidos pelo início do procedimento (art. 6.º, n.º 1, LPEP; sobre estes valores, cf. art. 20.º, n.º 1 e 2, LPEP). Depois de efectuado o pagamento devido, o requerimento é automaticamente distribuído a um agente de execução (art. 6.º, n.º 3, e 7.º LPEP).

O agente de execução tem cinco dias úteis para recusar o requerimento (art. 8.º, n.º 1 a 4, LPEP) ou para realizar as consultas em várias bases de dados (art. 8.º, n.º 1 e 9.º, n.º 1, LPEP), no registo informático de execuções (art. 8.º, n.º 2, e 9.º, n.º 2, LPEP) ou ao Banco de Portugal (art. 8.º, n.º 1, e 9.º, n.º 5, LPEP).

Após a concretização das consultas, o agente de execução elabora um relatório em que resume o resultado das mesmas, indicando quais os bens identificados (e aparentemente livres de ónus ou encargos (art. 10.º, n.º 2, al. b), LPEP) ou aparentemente onerados ou com encargos (art. 10.º, n.º 2, al. b), LPEP)) ou a circunstância de não terem sido identificados bens penhoráveis (art. 10.º, n.º 1 e 2, al. a), LPEP). O relatório também deve informar a circunstância de o requerido constar da lista pública de devedores, ter sido declarado insolvente, ter falecido ou, sendo pessoa coletiva, ter sido já dissolvido e liquidado, e ainda ser executado ou exequente em processos de execução pendentes (art. 10.º, n.º 3, LPEP).

4. O relatório é notificado ao requerente, que tem o prazo de 30 dias para:

– (i) Requerer a convolação do procedimento extrajudicial pré-executivo em processo de execução (art. 11.º, n.º 1, al. a), LPEP); a convolação não é automática, dado que o requerente tem de apresentar requerimento executivo ou requerimento de execução de decisão judicial condenatória (art. 18.º, n.º 1, al. a), LPEP) e juntar o relatório elaborado pelo agente de execução (art. 18.º, n.º 1, al. b), LPEP); como decorre do art. 19.º, n.º 1, LPEP, a convolação não pressupõe que tenham sido encontrados bens penhoráveis, mas na execução resultante da convolação também não se repetem as diligências para a localização desses bens (art. 18.º, n.º 4, LPEP); isto significa que não se aplica o disposto no art. 749.º, n.º 1, nCPC, pelo que, em termos práticos, é grande a probabilidade de a execução se extinguir nos termos do art. 748.º, n.º 3, nCPC;

– (ii) No caso de não terem sido identificados bens susceptíveis de penhora, requerer a notificação do requerido (art. 11.º, n.º 1, al. b), LPEP) para este:

– Pagar o valor em dívida, acrescido dos juros vencidos até à data limite de pagamento e dos impostos a que possa haver lugar, bem como dos honorários devidos ao agente de execução (art. 12.º, n.º 1, al. a), LPEP);

– Celebrar acordo de pagamento com o requerente (art. 12.º, n.º 1, al. b), e 17.º LPEP);

– Indicar bens penhoráveis (art. 12.º, n.º 1, al. c), LPEP);

– Opor-se ao procedimento (art. 12.º, n.º 1, al. d), e 16.º LPEP).

O requerido é notificado nos termos do art. 13.º (pessoas singulares) e 14.º (pessoas colectivas) LPEP.

5. Decorrido o prazo de 30 dias sobre a data da notificação do requerido sem que haja deste qualquer reacção, o agente de execução procede à inclusão do requerido na lista pública de devedores no prazo de 30 dias (art. 15.º, n.º 1, LPEP). Esta inclusão possibilita que o requerente obtenha uma certidão electrónica de incobrabilidade da dívida a emitir pelo agente de execução (art. 25.º, n.º 1, LPEP).

6. O requerido pode apresentar oposição ao PEP (art. 12.º, n.º 1, al. d), LPEP), com base nos fundamentos previstos no CPC para a oposição à execução, de acordo com o título executivo em causa (art. 16.º, n.º 1, LPEP; cf. art. 729.º a 731.º e 857.º nCPC). A esta oposição aplica-se o regime previsto no CPC para a oposição à execução (art. 16.º, n.º 2, LPEP; cf. art. 728.º e 732.º nCPC). A oposição é tramitada de forma autónoma como processo especial de oposição ao PEP (art. 16.º, n.º 3, LPEP).

7. Se o PEP tiver terminado sem a identificação de quaisquer bens penhoráveis e não tiver sido convolado em processo de execução, o requerente pode, no prazo de três anos após o termo do PEP, solicitar a realização de novas consultas (art. 19.º, n.º 1, LPEP).

8. Dos actos praticados pelo agente de execução cabe reclamação para o órgão de fiscalização e disciplina e, quanto a aspectos de legalidade, para o juiz (art. 27.º, n.º 1, LPEP).


MTS

Legislação (3)


-- Lei n.º 32/2014, de 30/5: Aprova o procedimento extrajudicial pré-executivo

Nota: O procedimento extrajudicial pré-executivo é um procedimento de natureza facultativa que se destina, entre outras finalidades expressamente previstas na presente lei, à identificação de bens penhoráveis através da disponibilização de informação e consulta às bases de dados de acesso direto eletrónico previstas no Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, para os processos de execução cuja disponibilização ou consulta não dependa de prévio despacho judicial (art. 2.º L 32/2014).

Jurisprudência (15)


Não proibição de prova em processo penal (civil)


O sumário de RG 29/4/2014 é o seguinte:


"I – O direito à imagem está tutelado criminalmente, mas apenas na medida em que não esteja coberto por uma causa de justificação da ilicitude.
II – Não constituem provas ilegais, podendo ser valoradas pelo tribunal, a gravação de imagens por particulares em locais públicos, ou acessíveis ao público, nem os fotogramas oriundos dessas gravações, se se destinarem a documentar uma infração criminal e não disserem respeito ao «núcleo duro da vida privada
» da pessoa visionada (onde se inclui a intimidade, a sexualidade, a saúde e a vida particular e familiar mais restrita)."

Nota: a orientação definida neste acórdão proferido num processo penal é aplicável, sem dúvida, em processo civil. As gravações realizadas por câmaras de vigilância em locais de acesso público -- nos quais é suposto a assumpção de comportamentos igualmente públicos -- não constituem provas ilícitas nos termos do art. 32.º, n.º 8, CRP, pois que não representam uma intromissão abusiva na vida privada: o que ocorre no espaço público não pertence, por definição, à esfera privada. Aliás, dada a assumpção do comportamento num espaço público, as referidas gravações registam apenas aquilo que qualquer pessoa poderia ter presenciado e sobre o qual poderia depor em juízo como testemunha.


MTS

29/05/2014

Paper (20)


-- AAVV, Código modelo euro-americano de jurisdição administrativa (05.2014)

28/05/2014

Jurisprudência europeia (TJ) (8)


Cooperação policial e judicial em matéria penal


São as seguintes as conclusões de TJ 27/5/2014 (C-129/14 PPU) (versão portuguesa ainda não disponível):


1)      El artículo 54 del Convenio de aplicación del Acuerdo de Schengen de 14 de junio de 1985 entre los Gobiernos de los Estados de la Unión Económica Benelux, de la República Federal de Alemania y de la República Francesa relativo a la supresión gradual de los controles en las fronteras comunes, firmado en Schengen el 19 de junio de 1990 y que entró en vigor el 26 de marzo de 1995, que somete la aplicación del principio non bis in idem a la condición de que, en caso de condena, la sanción «se haya ejecutado» o «se esté ejecutando», es compatible con el artículo 50 de la Carta de los Derechos Fundamentales de la Unión Europea, que garantiza el referido principio.
2)      El artículo 54 de ese Convenio debe interpretarse en el sentido de que el hecho de que se haya pagado únicamente la multa penal impuesta a una persona, condenada por la misma resolución de un tribunal de otro Estado miembro a una pena privativa de libertad que no se ha ejecutado, no permite considerar que la sanción se haya ejecutado o se esté ejecutando, en el sentido de esa disposición.
O Parecer do Advogado Geral (versão francesa) pode ser consultado aqui

Legislação europeia (4)



Nota: a Diret. 2014/60/UE é relevante para a aplicação do art. 7.º, n.º 4, Reg. 1215/2012.

24/05/2014

Bibliografia (18)


-- Ramos de Faria, P./Loureiro, A, L., Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil II (Almedina: Coimbra 2014)

23/05/2014

Bibliografia (17)


-- Capelo, M, J., T.R.C., Acórdão de 22 de Junho de 2010 (Os factos notórios e a prova dos danos não patrimoniais), RLJ 143 (2014), 286

Nota: a anotação assume -- com razão -- uma posição crítica perante a qualificação dos danos não patrimoniais sofridos por uma agredida como factos notórios; na opinião da autora, o tribunal pode dar esses danos como provados através de uma presunção natural ou judicial (cf. art. 349.º e 351.º CC).

22/05/2014

Jurisprudência uniformizada (4)


É o seguinte o sumário do Ac. STJ 6/2014,de 22/5:

"Os artigos 483.º, n.º 1, e 496.º, n.º 1, do Código Civil devem ser interpretados no sentido de abrangerem os danos não patrimoniais, particularmente graves, sofridos por cônjuge de vítima sobrevivente, atingida de modo particularmente grave."

20/05/2014

Renovação da prova na Relação (2)


1. O comentário de hoje do Dr. Paulo Ramos de Faria chama a atenção para um ponto relevante: o disposto no art. 662.º, n.º 2, al. a), nCPC, relativo à renovação dos meios de prova na 2.ª instância, é expressão da importância da imediação, dado que a Relação, perante as dúvidas sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do depoimento, procura obter um depoimento directo da testemunha ou da parte. Se se quiser aceitar as expressões, a Relação pretende substituir uma "oralidade-mediação" que lhe aparece como duvidosa por uma "oralidade-imediação" que lhe possa esclarecer as dúvidas.

Esta conclusão não invalida -- antes pelo contrário -- que a Relação tenha de procurar formar a sua convicção sobre a prova produzida na 1.ª instância. Como parece claro, a Relação só pode ter dúvidas sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do depoimento se procurar formar uma convicção sobre ele. Afinal, são aquelas dúvidas que obstam a que a Relação forme, em qualquer dos sentidos possíveis (provado/não provado), qualquer convicção sobre a prova produzida na 1.ª instância.

Neste sentido, o disposto no art. 662.º, n.º 2, al. a), nCPC constitui mais um argumento a favor de que a Relação deve procurar formar uma convicção sobre a prova proveniente da 1.ª instância. O argumento não tem nada de surpreendente, dado que, ao contrário do que é entendido no já referido RP 5/5/2014, o sistema de controlo da decisão da matéria de facto assenta na natural possibilidade de a Relação vir a formar uma convicção incompatível com aquela que a 1.ª instância formou. Não -- note-se -- em casos excepcionais, mas em qualquer caso em que a Relação seja chamada a controlar o julgamento da matéria de facto realizado na 1.ª instância.

2. Apenas uma observação suplementar sobre o sentido do art. 662.º, n.º 2, al. a), CPC. Quando se associa dúvidas e prova, pode ser-se tentado a concluir que se verifica uma situação de non liquet e a procurar ultrapassar esse non liquet através do critério que consta do art. 414.º nCPC (ou de qualquer outro critério especial consagrado na lei). Importa esclarecer que as dúvidas referidas no art. 662.º, n.º 2, al. a), nCPC não são dúvidas sobre a prova, mas antes dúvidas sobre o meio de prova, pelo que nada têm a ver com o critério do art. 414.º nCPC. Consequentemente, o disposto no art. 662.º, n.º 2, al. a), nCPC também não pode ser considerado incompatível com o estabelecido no art. 414.º nCPC.

As dúvidas da Relação não são sobre a prova do facto, mas antes dúvidas sobre o depoente ou sobre depoimento que pode conduzir à prova do facto. São, se assim se pode dizer, dúvidas prévias à eventual dúvida sobre a prova do facto. Antes de ter dúvidas sobre se o facto está provado é preciso estar ciente da credibilidade ou não credibilidade do depoente ou perceber o sentido do depoimento. Se há dúvidas sobre essa credibilidade ou sobre esse sentido, há dúvidas sobre a própria valoração a dar ao meio de prova. É a esta situação que se refere o art. 662.º, n.º 2, al. a), nCPC.


MTS

Renovação da prova na Relação


O comentário do Sr. Prof. Doutor Miguel Teixeira de Sousa sobre a postura do tribunal da Relação quando não extrai da prova registada o mesmo grau de certeza obtido pela 1.ª instância, comentário datado de 19/05/2014, conduz-nos à enunciação e a uma primeira reflexão sobre a seguinte questão: em que circunstâncias deve a Relação, “mesmo oficiosamente (…) ordenar a renovação da produção da prova”, isto é quando é que existem “dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento” que justifiquem esta renovação (art. 662.º, n.º 2, al. a), do CPC)?

Previa-se na primeira parte do n.º 3 do art. 712.º do CPC-95/96 que “A Relação pode determinar a renovação dos meios de prova produzidos em 1.ª instância que se mostrem absolutamente indispensáveis ao apuramento da verdade, quanto à matéria de facto impugnada”. O pressuposto da renovação da produção da prova é agora outro: quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento.

Este poder da Relação deixa de ser visto como extraordinário, perspetiva presente na lei anterior, como resultava do desnecessário emprego do advérbio “absolutamente”. À luz da lei atual, basta que a renovação da produção de prova seja adequada – não necessariamente absolutamente indispensável – ao fim previsto na norma, para que deva ser ordenada, na falta de outra solução igualmente adequada e mais eficiente. Este fim é agora, como referido, superar “dúvidas sérias” sobre um depoimento prestado. Fica a (mera) renovação da produção de prova limitada aos testemunhos prestados (art. 495.º e segs.), ao depoimento de parte (art. 452.º e segs.) e às declarações de parte (art. 466.º). Não são abrangidos pela fatispécie da norma os casos de renovação de uma perícia (art. 467.º e segs.) ou de reconstituição de um facto (art. 490.º, n.º 1, segunda hipótese) – sem prejuízo do que se dispõe na al. b) do n.º 2 do art. 662.º.

O legislador enfrenta aqui o argumento segundo o qual a ausência de imediação na perceção dos depoimentos, mesmo quando gravados, por parte da 2.ª instância constitui um obstáculo intransponível à correta avaliação do material probatório. A Relação deve apreciar os depoimentos gravados. Se concluir no sentido a que já havia chegado o tribunal de 1.ª instância, não tendo dúvidas sérias sobre os depoimentos, confirmará o juízo deste. Caso contrário, deverá ordenar a renovação da produção da prova em questão, nos termos que se passam a expor.

Se houver “dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente”, a Relação não deve, sem mais, ordenar a renovação da produção de prova, ao contrário do que a letra do preceito sugere. A falta de credibilidade do depoente corre por conta da parte onerada com a prova, tendo perante o tribunal ad quem o mesmo efeito que tem perante o julgador em 1.ª instância: não permite a prova do facto. A Relação só deve ordenar a renovação da produção de prova quando o tribunal a quo tenha sustentado a decisão de facto no depoimento que o tribunal ad quem reputa de pouco credível. E, mesmo aqui, só o deverá fazer quando a reinquirição puder ser útil para afastar definitivamente as dúvidas sérias referidas na letra da lei.

A dúvida sobre o sentido do depoimento pode resultar da circunstância de o depoente ter apresentado versões contraditórias – quando foi interrogado pelo mandatário da parte que o indicou, quando respondeu às instâncias e quando respondeu às questões formuladas pelo juiz –, sem que tenha sido confrontado com a contradição intrínseca do seu depoimento. Note-se que não é forçoso que a falta deste confronto final represente uma falha na condução da produção de prova pelo juiz. Sendo a inconsistência do depoimento ostensiva e insuscetível de poder resultar de lapso ou de uma normal confusão, poderá ser mais esclarecedor (da falta de credibilidade do depoente) recolher apenas estas contradições, do que oferecer ao declarante a oportunidade de ensaiar uma nova versão dos factos.


Paulo Ramos de Faria


19/05/2014

Livre apreciação e controlo da prova pela Relação




1. O controlo pela Relação da decisão relativa à matéria de facto proferida pela 1.ª instância continua a suscitar algumas dificuldades na jurisprudência. Em RP 5/5/2014 entendeu-se que, na reapreciação da matéria de facto, à Relação apenas cabe um papel residual, limitado ao controlo e eventual censura dos casos de flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão. De acordo com esta orientação jurisprudencial, as diferenças entre a 1.ª instância – que beneficia da imediação e da oralidade – e a Relação – que está privada dessa mesma imediação e oralidade – só possibilitam um controlo residual pela 2.ª instância da decisão sobre a matéria de facto.

Há nesta orientação algo de aceitável, mas também muito de criticável.

2. Aceitável é, evidentemente, a importância que é concedida à oralidade e à imediação. Há um século atrás, a consagração da oralidade (e da consequente imediação que ela possibilita) constituía um anseio generalizado dos reformadores do processo civil. A importância da conquista desvaneceu-se com o decorrer do tempo, mas basta verificar a evolução representada pela passagem de um processo escrito para um processo oral para se poder aquilatar a relevância da evolução então verificada.

Isto dito, não há que sobrevalorizar as diferenças entre a 1.ª instância e a Relação quanto à apreciação da prova. As diferenças são apenas entre a “oralidade-imediação” de que a 1.ª instância beneficia e a “oralidade-mediação” com que a 2.ª instância tem de operar. O actual sistema recursal procura mitigar os inconvenientes da não presença do tribunal de recurso no momento da produção da prova na 1.ª instância, assegurando que este tribunal tem ao seu dispor a reprodução fonográfica daquela produção. A reprodução não equivale nem substitui a assistência à produção da prova, mas também não tem os inconvenientes da mediação imposta pela escrita.

Não é, naturalmente, a mesma coisa julgar “ao vivo” e julgar através de reproduções fonográficas. No entanto, estas reproduções não estão de tal forma afastadas da oralidade original que se imponha concluir que a Relação está impossibilitada de formar uma convicção sobre a prova produzida e que apenas a 1.ª instância pode formar uma livre apreciação sobre essa prova. Não sendo a mesma coisa, também não é algo de tão radicalmente distinto que impossibilite a Relação de formar uma convicção própria sobre a prova produzida.


3. Perante o exposto, fica claro o que de criticável há no acórdão em análise. Há diferenças entre as condições em que a 1.ª instância e a Relação podem apreciar a prova produzida: apesar de haver sempre oralidade, a 1.ª instância beneficia ainda da imediação. Não é irrelevante, mas não é impossibilitante da formação de uma convicção própria pela Relação.

Ao contrário, o acórdão em análise entende que a livre apreciação da prova só é possível na 1.ª instância. Mais: o acórdão até parece pressupor uma incompatibilidade entre a garantia do duplo grau de jurisdição e a livre apreciação da prova, ao afirmar que aquela garantia não pode “subverter” esta última apreciação. Neste ponto, o acórdão assume uma posição contra legem. O sistema legal, ao consagrar o duplo grau de jurisdição em matéria de facto, admite a revogação da decisão recorrida pela Relação e, portanto, a “subversão” da livre apreciação da 1.ª instância pelo duplo grau de jurisdição.

Assim, o sistema exige que a Relação procure formar uma convicção sobre a prova produzida na 1.ª instância, naturalmente dentro dos condicionalismos de “oralidade-mediação” em que tem de julgar. Esta circunstância pode justificar algum benefício da dúvida concedido ao julgamento realizado pela 1.ª instância, quando a convicção formada pela 2.ª instância seja suficiente apenas para suscitar dúvidas sobre a correcção da decisão recorrida; não pode é levar a concluir que só há erro de julgamento se houver uma flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão: esse erro verifica-se logo que a convicção formada pela Relação não coincida com a convicção da 1.ª instância.

4. Em suma: perante dúvidas da 2.ª instância, é admissível a confirmação da decisão recorrida; perante certezas da 2.ª instância, impõe-se a revogação daquela decisão.


MTS