"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



14/04/2017

Jurisprudência (598)


Averiguação oficiosa da paternidade;
legitimidade do Ministério Público


1. O sumário de RG 15/12/2016 (70/14.4TBMR-A.G1) é o seguinte:

I. O despacho de inviabilidade proferido na acção de averiguação oficiosa de paternidade prevista nos arts. 1864º e ss. do CC, atenta a natureza administrativa e de jurisdição voluntária do próprio processo em que é proferido, não forma caso julgado, pelo que não impede a instauração da acção comum de investigação da paternidade.

II. No entanto, na falta do despacho (positivo) de viabilidade proferido na aludida acção, o Ministério Público não poderá intentar a acção oficiosa (isto é, em nome próprio e no interesse público) de investigação de paternidade.

III. Também nos casos previstos no art. 1866º do CC, e no que aqui nos interessa, no caso da al. b) (decurso do prazo de dois anos sobre o nascimento do menor), é legalmente inadmissível a instauração oficiosa (pelo Ministério Público na sua veste Estadual) da acção de investigação de paternidade.

III. Se o Ministério Público instaurar nestas circunstâncias acção oficiosa de investigação da paternidade deve o Réu ser absolvido de Instância por procedência da excepção dilatória de ilegitimidade activa, excepção que é do conhecimento oficioso pelo Tribunal.

2. Na fundamentação do acórdão pode ler-se o seguinte:

"Importa, de seguida, que o presente Tribunal se pronuncie sobre o outro fundamento de ilegalidade invocado pelo Recorrente, qual seja o de que o Ministério Público não poderia ter proposto a presente acção porque não foi proferido o despacho judicial (de viabilidade da acção) na acção oficiosa de paternidade do Tribunal.
 
Ou seja, alega o Recorrente que não existe o despacho final do juiz a ordenar que seja proposta acção de investigação de paternidade, sendo ilegal a presente acção de investigação de paternidade, já que o MP funda a presente acção no art. 205º nº 1 da OTM, violando o Princípio da Legalidade.
 
Cumpre decidir.
 
Com interesse para esta parte da decisão importa ter em atenção os seguintes factos:
 
- Compulsada a petição inicial constata-se que o Ministério Público deduz a sua pretensão em nome do Estado (e não em representação do menor);
 
- Invoca como preceitos legais que lhe permitem deduzir a sua pretensão o disposto nos arts. 1847º do CC e 205º da OTM;
 
- refere no item final que “… nos serviços do Ministério Público de … correram os autos de averiguação oficiosa da paternidade com o n.° 1/00, tendo sido determinado o seu arquivamento por decisão datada de 21-01-2002, dado ter decorrido o prazo previsto no art.° 1866.°, alínea b) do Cód. Civil.”
 
- o menor nasceu no dia 29.12.1999, mas só foi registado em 24.10.2008; [...]
 
- a acção de investigação de paternidade foi instaurada em 14.3.2014.
 
Ora, tendo em conta esta factualidade, afigura-se-nos que efectivamente o Ministério Público, na veste em que interveio nos presentes autos, não podia instaurar oficiosamente a acção de investigação da paternidade:
 
1. já que a Intervenção oficiosa do Ministério Público no âmbito desta acção oficiosa depende da existência do aludido despacho de viabilidade;
 
2. e, por outro lado, porque no momento da instauração, já tinham decorrido dois anos sobre a data do nascimento do menor (art. 1866º, al. b) do CC).
 
No que concerne ao primeiro fundamento, importa atender a que, “…na falta de despacho (positivo) de viabilidade, o Ministério Público não poderá intentar a acção oficiosa (isto é, em nome próprio e no interesse público) de investigação de paternidade, em que o registado não é parte formal…” [Costa Pimenta, in “Filiação”, pág. 146; Pereira Coelho, in “Curso de direito da família”- vol. II , T. I, pág. 211 e 212] - como sucede inequivocamente no caso concreto.
 
Com efeito, nestas situações o Ministério Público (junto do Tribunal competente) só tem um meio de “ fugir “ à inexistência de despacho de viabilidade proferido na averiguação oficiosa (nomeadamente, nos casos em que como o aqui em apreciação, o despacho não foi proferido por terem decorrido já o prazo de dois anos sobre a data do nascimento) que é “… intentar a acção de investigação não em nome próprio e no interesse público (em representação do Estado), mas em nome do menor registado e no interesse imediato deste…” [Costa Pimenta, in “Filiação”, pág. 147], invocando as pertinentes normas legais do respectivo Estatuto do Ministério Público (Lei 47/86 - arts. 3º e 4º).

Assim, nestas situações (do decurso do prazo estabelecido da al. b) do art. 1866º do CC) nada impediria que o Ministério Público (na qualidade de representante do menor) continuasse a investigar a filiação, mesmo depois do decurso daqueles dois anos sobre a data do nascimento, a fim de intentar, naquela veste, a acção de investigação da paternidade [...].

Um outro tanto já não sucede quando o Ministério Público, sem ser na sequência do proferimento de despacho de viabilidade proferido na averiguação oficiosa de paternidade, vem intentar a presente acção oficiosa de investigação da paternidade, uma vez que, nesta veste Estadual, já se encontra impedido, de continuar a promover esta acção oficiosa, podendo apenas, como se referiu, deduzir nestes casos a sua pretensão, invocando que o faz em nome do menor, no interesse deste, e como representante do mesmo.

Na verdade, o legislador é expresso e imperativo em considerar que, nos casos previstos no art. 1866º do CC, e no que aqui nos interessa, no caso da al. b), é legalmente inadmissível a instauração oficiosa (pelo Ministério Público na sua veste Estadual) da acção de investigação de paternidade (tal como também é inadmissível a prévia averiguação oficiosa da paternidade depois do decurso do aludido prazo de dois anos sobre a data de nascimento do menor- o que aliás motivou que tal procedimento de averiguação administrativo tenha sido arquivado, segundo se noticia nos autos) [...].

Aqui chegados, a questão que se coloca é a de saber qual o enquadramento processual que deve merecer esta “ilegalidade”, como lhe chama o Recorrente- o que tem a sua importância porque, não sendo do conhecimento oficioso por parte do presente Tribunal, poder-se-ia ainda levantar a questão de saber se o Recorrente não estaria aqui a apresentar uma “questão nova” insusceptível de ser conhecida em sede de recurso.

Ora, conforme decorre do exposto, a questão que o Recorrente coloca, no fundo, contende com o pressuposto processual da legitimidade (art. 30º do CPC) no sentido de se dever ponderar se se mostra atribuída legitimidade ao Ministério Público para instaurar a presente acção, sem ter na sua “posse” o aludido despacho de viabilidade proferido na averiguação oficiosa da paternidade e sem dar obediência ao prazo de dois anos previsto na al. b) do art. 1866º do CC, excepção dilatória de ilegitimidade que, como é sabido, é do conhecimento oficioso pelo Tribunal.

Na verdade, a exigência da al. b) do art. 1866º do CC é um “… requisito negativo de que depende a legitimidade do Ministério Público para actuar em nome próprio.

Assim, se ele intentar a acção (oficiosa) de investigação de paternidade, em oposição ao disposto neste preceito, será julgado parte ilegítima. Naturalmente, e conforme já dissemos, o Ministério Público poderá contornar a questão da ilegitimidade, propondo a acção em nome do menor, deixando nesta acção de ter relevo o decurso do tempo …“ [Costa Pimenta, in “Filiação”, pág. 147] - o que o Ministério Público aqui não efectuou.

Por outro lado, não se pode deixar também de salientar que a obtenção de um despacho de viabilidade no âmbito da acção prévia de averiguação oficiosa da paternidade funciona aqui como “… outro requisito, desta vez positivo…”.

Assim, se o Ministério Público intenta a acção oficiosa e não alega que obteve aquele despacho de viabilidade, como sucedeu no caso concreto, “… será caso de indeferimento liminar, pois a ilegitimidade é manifesta… “ [Costa Pimenta, in “Filiação”, pág. 148].

Aqui chegados, tem que se concluir que efectivamente a instauração da presente acção oficiosa de investigação da paternidade pelo Ministério Público na sua veste Estadual constitui, para utilizar a expressão do Recorrente, “uma ilegalidade”, ilegalidade essa que se traduz, em termos mais rigorosos, no reconhecimento da existência de uma situação de ilegitimidade processual activa do Ministério Público para intentar a presente acção em nome do Estado, ilegitimidade essa que constitui uma excepção dilatória, susceptível de ser conhecida de uma forma oficiosa pelo Tribunal, e que conduz à absolvição de instância do Réu (arts. 30, 278º, n.º 1, alínea d), 576º, n.º 2, 577º, alínea e), 578º, todos do CPC)."
 
[MTS]