"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



05/04/2017

Jurisprudência (591)

 
Interrupção da prescrição; 
absolvição da instância; não imputabilidade ao autor;
contagem do prazo de prescrição


1. O sumário de STJ 7/12/2016 (366/13.2TNLSB.L1.S1) (Caso Bolama) é o seguinte:
 
I. Declarada a absolvição da instância, a contagem do prazo de prescrição inicia-se a partir da data da sua interrupção na acção. Mas quando a mesma “não for imputável” ao titular do direito e o prazo de prescrição tenha entretanto terminado, é concedida ao autor uma prorrogação de 2 meses a contar do trânsito em julgado da decisão de absolvição da instância (art. 327º, nº 3, do CC).

II. O requisito da “não imputabilidade” de que depende a prorrogação do prazo não se reporta exclusivamente ao motivo da absolvição da instância, implicando também com as razões que determinaram que prazo de prescrição se esgotasse antes de ser proferida essa decisão.

III. Não é imputável ao autor que pretende o reconhecimento do direito de indemnização submetido a um prazo de prescrição de 3 anos (art. 498º, nº 1, do CC) o facto de a excepção dilatória de incompetência em razão da matéria ter sido apreciada apenas quando já haviam decorrido 15 anos desde a data da interposição da acção.

IV. Sendo a referida excepção dilatória de conhecimento oficioso e podendo ser apreciada mesmo avulsamente, antes do despacho saneador, o decurso do prazo de prescrição sem que a decisão tivesse sido proferida é de imputar ao Tribunal Judicial. Por isso, é de considerar tempestiva a segunda acção que, com o mesmo objecto da anterior, foi interposta 28 dias depois do trânsito em julgado da decisão de absolvição da instância.

V. O art. 496º, nº 2, do CC, ao prever que a indemnização devida pela morte de alguém é atribuída, “em conjunto”, aos familiares do falecido identificados em tal preceito, não implica uma situação de litisconsórcio necessário e é compatível com a actuação de cada um dos interessados, ainda que restrita à respectiva quota-parte nessa indemnização.

VI. Ao filho do falecido é reconhecida legitimidade activa para a interposição da acção de indemnização em que, para além da invocação de danos próprios decorrentes da morte do seu progenitor, de natureza patrimonial e não patrimonial, invoca também o seu direito à indemnização devida pela morte do progenitor e pelos danos morais que este sofreu antes do óbito.
 
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"1.5. Prevê o art. 327º, nº 3, do CC, que se, por motivo processual não imputável ao titular do direito, o réu for absolvido da instância e o prazo de prescrição (interrompido com a citação do réu, nos termos do art. 323º, nº 1, do CC, ou no 5º dia posterior à instauração da acção, nos termos do art. 323º, nº 2) tiver entretanto terminado, a prescrição não se considera completada antes de findarem dois meses sobre o trânsito em julgado da decisão de absolvição da instância.

Uma leitura menos atenta do preceito pode levar a afirmar que a imputabilidade a que alude está exclusivamente conexa com o fundamento processual que esteve na génese da absolvição da instância, desligando-o das demais circunstâncias que tenham determinado nessa acção o esgotamento do prazo de prescrição.

Não é esta a melhor interpretação. A não imputabilidade de que a lei faz depender o prolongamento do prazo prescricional (ou, na perspectiva inversa, a imputabilidade que impede a invocação do prolongamento do prazo) não se refere simplesmente ao fundamento (“motivo processual”) determinante da absolvição da instância, alargando-se às demais circunstâncias que levaram ao esgotamento do prazo de prescrição durante a pendência da acção, entre o acto de interrupção e o trânsito em julgado da decisão de absolvição da instância.

A prorrogação do prazo de prescrição por mais dois meses que é de conferir ao titular do direito não se reporta exclusivamente aos casos em que o “motivo” de absolvição da instância não seja causalmente imputável ao incumprimento de dever de diligência por parte do titular do direito, devendo ainda ser associado ao modo como se processou a tramitação processual e que levou a que, entretanto, o prazo de prescrição viesse a extinguir-se. Não sendo de imputar ao titular do direito os efeitos da demora na prolação da decisão formal, não se justifica que lhe seja vedada a possibilidade de intentar nova acção já regularizada quanto ao motivo da absolvição da instância, num prazo que a lei fixou em 2 meses após o trânsito em julgado da decisão de absolvição da instância.

1.6. A aplicação do preceituado no art. 327º, nº 3, do CC, está centrada no segmento normativo respeitante à “não imputabilidade”, conceito indeterminado que deverá ser casuisticamente preenchido a partir de um critério que pondere os deveres de diligência da parte no preenchimento dos requisitos formais da instância e relativamente à tramitação processual, desde a interposição da acção.

Mostra-se especialmente relevante a análise dos casos que vêm sendo decididos neste Supremo Tribunal de Justiça. Ainda que circunscrita ao motivo gerador da absolvição da instância, a jurisprudência deste Supremo revela a prevalência de um entendimento no sentido de que a aferição do “motivo processual não imputável ao titular do direito” deve alicerçar-se essencialmente numa ideia de culpa, no sentido de uma actuação merecedora de reprovação ou de censura do titular do direito sujeito a prazos de prescrição ou de caducidade (Ac. do STJ, de 16-6-15, www.dgsi.pt).

Ideia que também é exposta nos Acs. do STJ, de 14-1-06 e de 27-10-16 (www.dgsi.pt), onde se aponta para a diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias do caso.

Em concreto, já se decidiu neste Supremo Tribunal de Justiça ser imputável ao A. a absolvição da instância decorrente da ineptidão da petição inicial que constitui uma excepção dilatória (Ac. do STJ, de 21-10-93, CJSTJ, tomo III, pág. 79), a preterição de litisconsórcio necessário passivo numa acção de preferência (Ac. de 16-6-15, www.dgsi.pt) ou a desistência da instância, a que foram atribuídos efeitos similares ao da absolvição da instância (Ac. do STJ, 16-2-12, na CJSTJ, tomo I, pág. 80).

Com similitude relativamente ao caso sub judice, sustentou-se a mesma conclusão num caso que redundou no indeferimento liminar, por verificação da excepção dilatória de incompetência material (Ac. de 21-6-95, www.dgsi.pt). E com maior paralelismo em face da concreta situação, foi precisamente a partir da verificação da violação da regra de competência material do Tribunal do Comércio que no Ac. de 6-5-03 (www.dgsi.pt) se afirmou que era de imputar ao autor a absolvição da instância, não lhe aproveitando a extensão do prazo prescricional prevista no nº 3 do art. 327º do CC.

Em contraponto também já considerou que não era imputável ao autor a absolvição da instância devida à falta de junção de contrato de arrendamento escrito, apesar das diligências que efectuara no sentido de obter tal documento (Ac. do STJ, de 30-6-11, www.dgsi.pt) ou na sequência da adopção de um determinado entendimento acerca da personalidade judiciária do condomínio sujeita a divergências jurisprudenciais (Ac. do STJ, de 14-1-16, www.dgsi.pt).

A exclusividade da imputabilidade ao autor do efeito da absolvição da instância é afirmada por Ana F. Morais Antunes, Prescrição e Caducidade, 2ª ed., pág. 347, referindo que a extensão do prazo deve ser impedida quando o efeito de absolvição da instância assentar, de modo exclusivo, numa conduta errónea do titular do direito.

Problemática que a mesma autora desenvolve com mais pormenor no artigo intitulado “Algumas questões sobre prescrição e caducidade”, em Estudos em Homenagem ao Prof. Sérvulo Correia, vol. III, onde defende que “a dilação do efeito interruptivo da prescrição depende da ausência de um comportamento do titular do direito susceptível de ser objecto de um juízo de censura”, o que exige “mais do que um mero nexo de causalidade material entre o facto praticado pelo titular do direito e a decisão de absolvição da instância” (pág. 54). A partir da consideração de que a solução legal do prolongamento dos efeitos da interrupção da prescrição não pode desligar-se das “circunstâncias processuais a que o titular do direito será alheio”, propugna, como nos parece mais razoável, que é preciso que o desfecho do processo não se funde numa atitude processual culposa por parte do titular do direito (pág. 55), como já assinalara Vaz Serra. Conclui a mesma autora que “se o propósito do legislador não fosse o de penalizar apenas as condutas processuais assentes em erro grosseiro, ou pelo menos censurável, ficaria prejudicada a operatividade daquela norma”, de modo que para que a mesma “seja dotada de conteúdo útil, será necessário apelar a um critério que permita esclarecer e destrinçar as situações em que não é justificável dilatar a interrupção da prescrição daquelas em que a extinção do processo não se funde num acto imputável ao titular do direito” (pág. 57).

A mesma ideia perpassa pelas considerações que Vaz Serra formulou no âmbito dos Trabalhos Preparatórios do CC de 1966, onde refere que a razão da eficácia permanente da interrupção do prazo decorrente da citação para a acção, nos termos dos arts. 323º, nº 1, e 327º, nº 1, do CC, tem subjacente a ideia de que é dado “início a um processo, durante o qual pode admitir-se que o titular não está inactivo e deve, assim, manter-se a eficácia da interrupção” (BMJ, 106º, pág. 248).

1.7. Para Anselmo de Castro será difícil “o caso em que seguramente possa dizer-se que a absolvição da instância não seja imputável ao autor” (Direito Processual Civil Declaratório, vol. II, pág. 275).

Não nos parece que seja esta a linha de entendimento que deve ser observada e, em concreto, não cremos que possa fundar-se numa consideração tão genérica a afirmação da imputabilidade ao autor da errada escolha do Tribunal a que se dirigiu na primeira acção. Cautelas que, aliás, também foram ponderadas por Vaz Serra precisamente ao abordar a questão da absolvição da instância com fundamento na incompetência material do Tribunal (BMJ 106º, pág. 257).

No que concerne ao pressuposto da competência material, nem sempre é imediata a sua percepção, como o revela a significativa taxa de conflitos de competência ou de jurisdição suscitados sempre que ocorrem modificações na organização judiciária.

Em 24-11-97, vigorava o art. 70º da Lei nº 38/87, de 23-12 (reproduzindo, aliás, o art. 4º da Lei nº 35/86, de 4-9, que procedera à criação do Tribunal Marítimo de Lisboa, entretanto já instalado), nos termos do qual competia a este Tribunal “conhecer, em matéria cível, das questões relativas a … indemnizações devidas por danos causados ou sofridos por navios, embarcações e outros engenhos flutuantes, ou resultantes da sua utilização marítima, nos termos gerais de direito” (al. a) ou a “contratos de seguro de navios, embarcações e outros engenhos flutuantes destinados ao uso marítimo” (al. f)).

Ora, nessa primeira acção, tal como na presente, eram diversos os sujeitos demandados, não havendo identidade quanto aos fundamentos da responsabilidade que aos mesmos era imputada.

Relativamente a alguns dos Réus a conexão com o Tribunal Marítimo era imediata, não suscitando aquele preceito dúvidas sérias relativamente à competência material, como sucedia com as RR. FF e GG (e respectiva Seguradora), atenta a sua qualidade de armadoras, cuja responsabilidade era directamente associada aos “danos causados ou sofridos por navios” de que eram detentoras.([1])

Porém, já o mesmo grau de segurança não existia, na ocasião e mesmo agora, quando aos demais demandados (o falecido marido da 1ª R., os RR. CC, DD, EE, HH e respectiva Seguradora), cuja imputação da responsabilidade não decorria da titularidade do navio, mas antes da intervenção em operações que precederam a verificação das condições técnicas necessárias para que fosse colocado a navegar. Assim, a sua conexão com os danos provocados pelo naufrágio do navio é apenas indirecta, resultando do incumprimento de deveres de diligência profissional situados a montante do sinistro.

Esta a primeira advertência quanto a uma precipitada conclusão acerca da imputabilidade do erro na escolha do Tribunal materialmente competente. Tendo em atenção a multiplicidade de sujeitos passivos e a diversidade dos fundamentos em que assentava a imputação da responsabilidade civil extracontratual a alguns dos RR. coligados, em 1997, quando foi interposta a primeira acção, não era tão segura, como o afirmado pelas instâncias, a tarefa de identificação do Tribunal materialmente competente em relação à globalidade dos sujeitos passivos.

1.8. Mas o argumento crucial para inverter a solução decretada pelas instâncias até pode dispensar a “não imputabilidade” ao A. do motivo que esteve na base da absolvição da instância. Independentemente da amplitude e da responsabilidade referente ao erro na identificação do Tribunal materialmente competente ou da imputação desse erro à representante legal do A. (enquanto foi de menoridade) ou a este (depois de atingir a maioridade), não é nesse evento fortuito que se centra a causa real do decurso do prazo de prescrição que se reiniciara depois da propositura da acção, em 1997.

Começaremos por evidenciar um motivo subjectivo que não foi ponderado pelas instâncias.

O A., aquando da interposição da primeira acção era menor, motivo pelo qual esteve legalmente representado pela sua mãe e co-autora. Assim, embora aquele poder de representação legal do menor abarcasse também o dever de diligência quanto à escolha do Tribunal materialmente competente para a instauração da acção, o erro nessa identificação nunca se poderia reflectir na esfera jurídica do A. antes de perfazer 19 anos de idade (um ano após a maioridade), nos termos do art. 320º, nº 1, do CC.

Ora, se acaso o A. (ou melhor, a sua representante legal) tivesse sido confrontado com uma decisão de absolvição da instância antes de atingir a maioridade (em 2004), disporia ainda da possibilidade de, até ao fim do ano subsequente (2005), interpor nova acção sem qualquer condicionalismo legal e sem correr o risco - que agora enfrentou - de se debater com a prescrição ou com as dificuldades de ultrapassar os requisitos que o art. 327º, nº 3, do CC, coloca à prorrogação do prazo de prescrição.

Tal não sucedeu, o que objectivamente privou o A. de poder renovar a sua pretensão indemnizatória ao abrigo daquele mecanismo especial de tutela de direitos dos incapazes.

Refere Antunes Varela, à margem do art. 327º, nº 3, do CC, que este preceito só tem interesse prático “em relação às prescrições de curto prazo. Desde que a citação produz os seus efeitos interruptivos e se começa a contar novo prazo, é difícil que até à absolvição da instância decorra um novo prazo de 20 anos ou até de 5” (CC anot, art. 327º).

Difícil seria, como disse, mas o certo é que, no caso concreto, foi superado quer o prazo que seria razoável para a apreciação de uma questão tão singela, quer o prazo prescricional de 3 anos previsto para o direito de indemnização invocado pelo A.

1.9. Qualquer consideração que possa ser feita em torno da problemática da prescrição, associada aos efeitos da absolvição da instância e à verificação do condicionalismo da prorrogação do prazo, jamais pode deixar de ponderar, por um lado, a natureza instrumental do processo civil, que deve estar ao serviço do direito substantivo e, por outro, a razão que preside à fixação de um prazo para o exercício de direitos, incluindo as regras sobre a interrupção que vigoram na pendência de um processo judicial.

O A. exerceu o seu direito, posto que errando na instância judiciária, e ficou à espera de uma resposta que, no entanto, apenas lhe foi apresentada volvidos 15 anos. Renovando a sua pretensão com a interposição da presente acção no Tribunal inequivocamente competente, recebe deste e da Relação uma resposta ainda mais gravosa que, a ser confirmada por este Supremo, significaria pura e simplesmente que estava extinto o seu direito, constituído em 1991, por que clama desde 1995 e em cujo reconhecimento insistiu em 1997.

E extinto porquê? Porque o A. cometera aquele erro fatal de se ter equivocado na porta a que deveria ter batido para obter o reconhecimento do seu direito, de modo que (qual “pecado original”) arrostaria com a extinção do seu alegado direito, ainda que, como é por demais evidente, aquele erro formal pudesse ter sido remediado a tempo, se a tempo o Tribunal Cível tivesse decidido a questão processual, em lugar de uma inércia que perdurou 15 anos.

Uma tal solução, encontrando, porventura, algum apoio formal na letra do art. 327º, nº 3, do CC, passaria para segundo plano aquilo que salta aos olhos de qualquer observador, ou seja, o inadmissível arrastamento de um processo judicial, em que apenas se pedia uma decisão sobre um aspecto de ordem processual resolúvel mediante a simples apreciação dos elementos que já constariam dos autos, acabaria, afinal, por se virar contra o próprio A., penalizando-o acrescidamente com a extinção do seu direito material.

Aos efeitos negativos da morosidade relativamente ao exercício do direito de acção através do anterior processo somar-se-iam, agora, os efeitos negativos de uma decisão que colocaria um ponto final na sua pretensão indemnizatória por via da prescrição extintiva.

O que ressaltaria do complexo processual com que nos defrontamos assemelhar-se-ia a uma situação de venire contra factum proprium, em que o A., alegado titular de um direito que pretende ver reconhecido, acabaria por ser confrontado com a inviabilidade dessa apreciação fundamentalmente por via do funcionamento (ou melhor, do não funcionamento) dos mecanismos processuais que não eram da sua responsabilidade e que apenas são de imputar ao próprio Tribunal onde foi instaurada a acção."
 
[MTS]