"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



24/04/2017

Um apontamento sobre as declarações de parte


1. Num recente (e também interessante e útil) paper divulgado no Blog (As declarações de parte. Uma síntese), o Des. Pires de Sousa afirma, a propósito da possibilidade de a parte que requer a prestação de declarações assistir à audiência final, o seguinte:

"Estando a atuação do juiz colimada ao dever de gestão processual (Artigo 6), ao princípio da cooperação (Artigo 7.1.), ao dever de boa-fé processual (Artigo 8) e ao princípio da adequação formal (Artigo 547), temos como recomendável o seguinte procedimento: o juiz, no início da audiência, questionará as partes sobre se admitem requerer a prestação de declarações de parte e, na afirmativa, recomendará que a parte não assista à audiência de julgamento. Naturalmente que este procedimento só colhe sentido se o juiz em causa entender – conforme o fazemos – que o valor probatório das declarações da parte não é indiferente à circunstância da parte ter assistido à produção da demais prova. O que reputamos incorreto é o juiz compartilhar esta visão das virtualidades probatórias das declarações de parte, omitir tal entendimento, para – em sede de valoração da prova – depreciar por tal motivo as declarações de parte. Este último procedimento constituiria uma atuação desleal do juiz." 


2. Não está em causa que o juiz possa vir a ponderar as declarações da parte de modo distinto consoante a parte declarante tenha assistido ou não tenha assistido à audiência final. O que não se pode dizer é que, qualquer que seja a declaração que a parte venha a produzir, ela vai ser necessariamente apreciada de modo distinto em função da presença ou ausência da parte na audiência final, a ponto de o juiz dever advertir as partes de que a valoração das suas declarações só será a mais favorável se elas não tiverem estado presentes na audiência final.

Suponha-se, por exemplo, que a parte pretende realizar a contradita de uma testemunha (cf. art. 521.º CPC), invocando que a mesma não podia ter estado presente no local do acidente. Dificilmente se imagina que a valoração desta contradita deva ser distinta consoante a parte tenha assistido ou não tenha assistido ao depoimento da testemunha.

Acresce que a assistência à audiência final é um direito da parte. Estranho seria que, sendo a regra a publicidade da audiência final (cf. art. 606.º, n.º 1, CPC), a parte fosse precisamente o único sujeito a quem fosse recusado esse direito. Sendo assim, dificilmente se compreende que a parte possa sofrer qualquer consequência como resultado do exercício legítimo daquele direito.

Aliás, a fiabilidade das declarações da parte aumenta se a parte tiver pleno conhecimento do que se passou na audiência final e se quiser reagir, por sua iniciativa, contra alguma prova nela produzida. Em contrapartida, a ausência da parte da audiência final diminui o conhecimento por esta do que nela se passou e restringe a possibilidade de uma reacção espontânea da parte, o que contribui para aumentar o risco de o requerimento para a prestação de declarações ser apenas um expediente processual. 

O conhecimento da prova produzida na audiência final é um pressuposto do correcto exercício pela parte do direito de requerer a prestação de declarações. Uma parte informada é uma parte da qual se pode esperar um comportamento racional, não temerário e não instrumentalizado, porque dificilmente se imagina que a parte se disponha a prestar declarações contra o que está solidamente provado. Não se pode dizer o mesmo de uma parte mal ou deficientemente informada sobre o que aconteceu na audiência final, naturalmente mais disposta a prestar declarações "a ver se pega".

3. Em conclusão: a circunstância de a parte ter assistido à audiência final pode constituir um factor relevante para a valoração das declarações realizadas pela parte; isso justifica que o juiz pondere essa circunstância no momento da apreciação da prova, mas não que o juiz assuma, a priori, que a presença da parte declarante na audiência final diminui o valor probatório das suas declarações. Por isso, não se justifica nenhuma advertência das partes quanto a uma desvalorização probatória das suas declarações se as mesmas forem realizadas quando a parte declarante tenha assistido à audiência final.

MTS