Prisão preventiva; Estado estrangeiro;
imunidade de jurisdição
1. O sumário de STJ 7/12/2016 (2079/15.1T8CBR.C1.S1) é o seguinte:
I - Na ordem jurídica internacional, os Estados caracterizam-se pela sua igual dignidade soberana – igualdade nas relações entre os Estados, exigência de igualdade dos Estados perante o direito internacional.
II - Constitui corolário desta igual dignidade soberana dos Estados a garantia de imunidade de jurisdição aos Estados e à sua propriedade, ou seja, em princípio, nenhum Estado pode julgar os atos de um outro ou mesmo de um dos seus órgãos superiores, máxime, por intermédio de um dos seus tribunais, sem o consentimento deste.
III - A garantia de imunidade pode ser absoluta – quando um Estado se escusa pura e simplesmente a submeter à sua jurisdição qualquer ato de outro Estado – ou relativa – quando o reconhecimento da imunidade se apoia em distinções, como as que distinguem atos “iure imperium” e atos “iure gestiones”, com base na natureza e fim do ato, submetendo apenas os segundos à jurisdição de outro Estado.
IV - Sem prejuízo da Convenção das Nações Unidas sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos Seus Bens – aberta à subscrição, em Nova Iorque, em 17-09-2005, e ratificada por Portugal – ainda não se encontrar em vigor, tem-se entendido que ela exprime, nos seus traços gerais, o direito consuetudinário vigente, ao afirmar o princípio da imunidade dos Estados, salvo em situações em que o Estado, expressa ou implicitamente, haja renunciado à mesma e em situações em que a imunidade é recusada quando estejam em causa transações comerciais, contratos de trabalho, danos causados por pessoas e bens, propriedade, posse e utilização de bens.
V - Insurgindo-se o autor contra uma decisão das autoridades judiciarias do Estado réu que ordenou a sua prisão preventiva, a qual se manteve durante 233 dias até ser deferido o pedido de “habeas corpus” por si formulado, é manifesto que tal ato foi praticado pelo réu no uso do seu “ius imperii”, na medida em que um ato judiciário tem que ser tido como praticado por um ente soberano.
VI - Como tal, em sede de ação de indemnização intentada, em Portugal, pelo autor contra esse Estado, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em virtude dessa detenção, não estava o réu impedido de invocar a exceção de imunidade de jurisdição, sem que o facto de se ter defendido igualmente por impugnação e requerido a condenação do autor por litigância de má fé configure qualquer renúncia tácita a essa imunidade.
2. Na fundamentação do acórdão argumenta-se o seguinte:
"B) – Proibição da invocação da imunidade de jurisdição
Na sentença proferida na 1ª instância entendeu-se que “a decisão do Tribunal Provincial de Benguela, que decidiu, em 27 de Novembro de 1012, pronunciar o aqui autor pelo crime de que foi particularmente acusado e na sequência de tal pronúncia, ordenou a prisão preventiva imediata do autor, enquanto expressão do exercício do poder judicial de um Estado Estrangeiro” constitui “um verdadeiro ato de soberania, relativamente ao qual tem cabimento a invocação da imunidade jurisdicional”, pelo que não renunciando a ré a essa imunidade, ”ela não podia deixar de ser reconhecida”.
No acórdão recorrido entendeu-se também que a ré RPA gozava de imunidade de jurisdição, na medida em que o ato que lhe é atribuído pelo autor foi realizado no exercício do seu poder soberano, não de verificando qualquer exceção à invocação daquela imunidade, pois o ato não tinha qualquer conexão material relevante com o território português.
E também porque “no caso em apreço, a situação relatada pelo autor nunca se moveria dentro daquelas situações de grave violação dos direitos humanos ou do direito internacional humanitário justificadora da derrogação do princípio da imunidade de jurisdição do estado relativamente a atos por si exercidos ao abrigo de um "ius imperii".
O recorrente entende que a ré não podia invocar a exceção da imunidade de jurisdição face ao estabelecido no artigo 12º da Convenção das Nações Unidas sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos Seus Bens (CIJEB), diploma este em que se especifica os “processos judiciais nos quais os Estados não podem invocar a imunidade”, e que o recorrente entende ter “positivado” o “direito consuetudinário internacional”, estando assim “definitivamente afastada a distinção clássica entra atos de soberania e atos de gestão privada do Estado”.
Mas não é assim.
Vejamos. [...]
A soberania é um dos elementos constitutivos do Estado.
Na sentença proferida na 1ª instância entendeu-se que “a decisão do Tribunal Provincial de Benguela, que decidiu, em 27 de Novembro de 1012, pronunciar o aqui autor pelo crime de que foi particularmente acusado e na sequência de tal pronúncia, ordenou a prisão preventiva imediata do autor, enquanto expressão do exercício do poder judicial de um Estado Estrangeiro” constitui “um verdadeiro ato de soberania, relativamente ao qual tem cabimento a invocação da imunidade jurisdicional”, pelo que não renunciando a ré a essa imunidade, ”ela não podia deixar de ser reconhecida”.
No acórdão recorrido entendeu-se também que a ré RPA gozava de imunidade de jurisdição, na medida em que o ato que lhe é atribuído pelo autor foi realizado no exercício do seu poder soberano, não de verificando qualquer exceção à invocação daquela imunidade, pois o ato não tinha qualquer conexão material relevante com o território português.
E também porque “no caso em apreço, a situação relatada pelo autor nunca se moveria dentro daquelas situações de grave violação dos direitos humanos ou do direito internacional humanitário justificadora da derrogação do princípio da imunidade de jurisdição do estado relativamente a atos por si exercidos ao abrigo de um "ius imperii".
O recorrente entende que a ré não podia invocar a exceção da imunidade de jurisdição face ao estabelecido no artigo 12º da Convenção das Nações Unidas sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos Seus Bens (CIJEB), diploma este em que se especifica os “processos judiciais nos quais os Estados não podem invocar a imunidade”, e que o recorrente entende ter “positivado” o “direito consuetudinário internacional”, estando assim “definitivamente afastada a distinção clássica entra atos de soberania e atos de gestão privada do Estado”.
Mas não é assim.
Vejamos. [...]
A soberania é um dos elementos constitutivos do Estado.
Hoje, entende-se que a soberania estadual, potencialmente ilimitada no plano interno, encontra-se, no entanto, subordinada ao direito internacional e aos valores transnacionais de respeito pela dignidade da pessoa humana e pelos seus direitos básicos, ou seja, a soberania está hoje associada à responsabilidade de proteger os direitos fundamentais dos cidadãos e de promover o seu bem-estar económico e social – Jónatas Machado “in” Direito Internacional, 4ª edição, página 229
Uma das marcas da soberania consiste no exercício dos poderes de jurisdição, que se prende com o poder estadual de disciplinar juridicamente uma determinada matéria, com o poder de exigir o cumprimento de normas por meios administrativos e policiais e com o poder de levar um determinado sujeito a julgamento pela prática de uma infração - mesmo autor, ob. cit. página 232. [...]
Desde logo, a imunidade soberana dos Estados compreende a “imunidade processual”, nos termos da qual um Estado, incluindo qualquer das suas unidades constitutivas, órgãos, entidades no exercício de prerrogativas de soberania ou representantes, não pode ser submetido à jurisdição interna de outros Estado sem o seu consentimento, devendo os ordenamentos jurídicos internos assegurar a existência de uma exceção processual de incompetência - mesmo autor, ob. cit., página 239
O incremento da atividade estatal determinou a distinção entre atos do governo (jus imperii) e atos de natureza comercial (jure gestiones), negando neste último caso a imunidade de jurisdição – trata-se da doutrina da imunidade restritiva ou relativa.
Assim, tem-se entendido que [a] garantia de imunidade pode ser absoluta - quando um Estado se escusa pura e simplesmente a submeter à sua jurisdição qualquer ato de outro Estado - ou relativa – quando o reconhecimento da imunidade se apoia em distinções, como as que distinguem atos “iure imperurim” e atos “iure gestiones”, com base na natureza e fim do ato, submetendo apenas os segundos atos à jurisdição de outro Estado.
Daí, a importância da distinção entre atos de autoridade soberana ou de império, em que o Estado se comporta como um ente soberano e atos de direito privado, em que o Estado estrangeiro pratica atos como pessoa coletiva, que não são próprios da sua qualidade de ente soberano.
Portanto, só quando um Estado atuar sem o jus imperium é que se entende que esse Estado pode ser responsabilizado noutro Estado e ser submetido à sua jurisdição.
Trata-se de um entendimento que pode ser considerado como uma norma consuetudinária de direito internacional público.
Esta imunidade relativa, imposta pelo recurso crescente ao direito privado por parte dos Estados, é considerada como a mais consentânea com a tendência atual no sentido de responsabilização dos poderes públicos por danos, contratuais ou extracontratuais, causados aos particulares.
A transição da imunidade absoluta para a imunidade relativa não tem sido fácil, verificando-se hoje uma tendência para o levantamento da imunidade dos Estados que pratiquem ou auxiliem a prática de atos extraterritoriais de terrorismo, do ponto de vista do Estado do foro e que sejam especificamente designados de terroristas.
Na sequência do disposto no artigo 13º da Carta das Nações Unidas, tem havido um movimento para a codificação do Direito Internacional, ou seja, para a conversão do direito consuetudinário num corpo sistemático de regras escritas.
Em 2005.09.17, foi aberta à subscrição, em Nova Iorque, a Convenção das Nações Unidas sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos Seus Bens (CIJEB), aprovada em Portugal pela Resolução da Assembleia da Republica nº46/2006, de 2006.04.20, publicada em 2006.06.20 e ratificada pelo Senhor Presidente da República pelo Decreto-Lei 57/2006.
Naquela Convenção afirma-se o princípio da imunidade dos Estados, salvo em situações em que o mesmo, expressa ou implicitamente, haja renunciado à imunidade e em situações em que imunidade é recusada quando estejam em causa transações comerciais, contratos de trabalho, danos causados a pessoas e bens, propriedade, posse e utilização de bens.
Nos termos do disposto no artigo 30º dessa Convenção, a sua entrada em vigor estava dependente do depósito do 30º instrumento de ratificação, aceitação, aprovação ou adesão junto do Secretário-geral das Nações Unidas.
Até ao momento apenas assim procederam vinte e um Estados subscritores, pelo que, apesar de já ratificado por Portugal, ainda não se pode considerar em vigor a dita Convenção.
Portanto e ao contrário do que entende o recorrente, as suas normas não podem ser aplicadas ao caso concreto em apreço.
No entanto tem-se entendido que ela exprime, nos seus traços essenciais, o direito consuetudinário vigente no domínio em causa.
Posto este conceitos, voltemos ao caso concreto em apreço.
O autor pretende ser ressarcido pela ré, RPA, por todos os prejuízos que alegadamente sofreu e continua a sofrer em virtude de “por ato praticado pelas autoridades judiciárias da ré”, ter sido detido e mantido em prisão de forma ininterrupta durante 233 dias”, “à margem das mais elementares regras do direito penal internacional e angolano”, “de forma ilegal e arbitrária”.
Manifestamente, o ato contra o qual se insurge o autor, foi praticado pela ré no uso do seu “jus imperii”, na medida em que a prática de um ato judiciário tem que ser tida como ato praticado por um ente soberano, através de um dos seus órgãos, um Tribunal.
E ainda que se se considere – como parece deve considerar-se – que mesmo atuando por atos de “jus imperii” um Estado está obrigado a não praticar violações graves de direitos humanos, o facto que a alegada conduta da ré não pode assim ser classificada, na medida em que, como bem se refere no acórdão recorrido “o autor foi detido no âmbito de um processo judicial e, tendo-se socorrido dos meios de impugnação previstos no sistema judicial angolano, logrou obter a sua libertação, que veio a ser decretada pelo Tribunal Constitucional, na sequência de um pedido de “habeas corpus” por si deduzido.
Concluímos, pois, que a ré não estava impedida de invocar a imunidade de jurisdição."
Uma das marcas da soberania consiste no exercício dos poderes de jurisdição, que se prende com o poder estadual de disciplinar juridicamente uma determinada matéria, com o poder de exigir o cumprimento de normas por meios administrativos e policiais e com o poder de levar um determinado sujeito a julgamento pela prática de uma infração - mesmo autor, ob. cit. página 232. [...]
Desde logo, a imunidade soberana dos Estados compreende a “imunidade processual”, nos termos da qual um Estado, incluindo qualquer das suas unidades constitutivas, órgãos, entidades no exercício de prerrogativas de soberania ou representantes, não pode ser submetido à jurisdição interna de outros Estado sem o seu consentimento, devendo os ordenamentos jurídicos internos assegurar a existência de uma exceção processual de incompetência - mesmo autor, ob. cit., página 239
O incremento da atividade estatal determinou a distinção entre atos do governo (jus imperii) e atos de natureza comercial (jure gestiones), negando neste último caso a imunidade de jurisdição – trata-se da doutrina da imunidade restritiva ou relativa.
Assim, tem-se entendido que [a] garantia de imunidade pode ser absoluta - quando um Estado se escusa pura e simplesmente a submeter à sua jurisdição qualquer ato de outro Estado - ou relativa – quando o reconhecimento da imunidade se apoia em distinções, como as que distinguem atos “iure imperurim” e atos “iure gestiones”, com base na natureza e fim do ato, submetendo apenas os segundos atos à jurisdição de outro Estado.
Daí, a importância da distinção entre atos de autoridade soberana ou de império, em que o Estado se comporta como um ente soberano e atos de direito privado, em que o Estado estrangeiro pratica atos como pessoa coletiva, que não são próprios da sua qualidade de ente soberano.
Portanto, só quando um Estado atuar sem o jus imperium é que se entende que esse Estado pode ser responsabilizado noutro Estado e ser submetido à sua jurisdição.
Trata-se de um entendimento que pode ser considerado como uma norma consuetudinária de direito internacional público.
Esta imunidade relativa, imposta pelo recurso crescente ao direito privado por parte dos Estados, é considerada como a mais consentânea com a tendência atual no sentido de responsabilização dos poderes públicos por danos, contratuais ou extracontratuais, causados aos particulares.
A transição da imunidade absoluta para a imunidade relativa não tem sido fácil, verificando-se hoje uma tendência para o levantamento da imunidade dos Estados que pratiquem ou auxiliem a prática de atos extraterritoriais de terrorismo, do ponto de vista do Estado do foro e que sejam especificamente designados de terroristas.
Na sequência do disposto no artigo 13º da Carta das Nações Unidas, tem havido um movimento para a codificação do Direito Internacional, ou seja, para a conversão do direito consuetudinário num corpo sistemático de regras escritas.
Em 2005.09.17, foi aberta à subscrição, em Nova Iorque, a Convenção das Nações Unidas sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos Seus Bens (CIJEB), aprovada em Portugal pela Resolução da Assembleia da Republica nº46/2006, de 2006.04.20, publicada em 2006.06.20 e ratificada pelo Senhor Presidente da República pelo Decreto-Lei 57/2006.
Naquela Convenção afirma-se o princípio da imunidade dos Estados, salvo em situações em que o mesmo, expressa ou implicitamente, haja renunciado à imunidade e em situações em que imunidade é recusada quando estejam em causa transações comerciais, contratos de trabalho, danos causados a pessoas e bens, propriedade, posse e utilização de bens.
Nos termos do disposto no artigo 30º dessa Convenção, a sua entrada em vigor estava dependente do depósito do 30º instrumento de ratificação, aceitação, aprovação ou adesão junto do Secretário-geral das Nações Unidas.
Até ao momento apenas assim procederam vinte e um Estados subscritores, pelo que, apesar de já ratificado por Portugal, ainda não se pode considerar em vigor a dita Convenção.
Portanto e ao contrário do que entende o recorrente, as suas normas não podem ser aplicadas ao caso concreto em apreço.
No entanto tem-se entendido que ela exprime, nos seus traços essenciais, o direito consuetudinário vigente no domínio em causa.
Posto este conceitos, voltemos ao caso concreto em apreço.
O autor pretende ser ressarcido pela ré, RPA, por todos os prejuízos que alegadamente sofreu e continua a sofrer em virtude de “por ato praticado pelas autoridades judiciárias da ré”, ter sido detido e mantido em prisão de forma ininterrupta durante 233 dias”, “à margem das mais elementares regras do direito penal internacional e angolano”, “de forma ilegal e arbitrária”.
Manifestamente, o ato contra o qual se insurge o autor, foi praticado pela ré no uso do seu “jus imperii”, na medida em que a prática de um ato judiciário tem que ser tida como ato praticado por um ente soberano, através de um dos seus órgãos, um Tribunal.
E ainda que se se considere – como parece deve considerar-se – que mesmo atuando por atos de “jus imperii” um Estado está obrigado a não praticar violações graves de direitos humanos, o facto que a alegada conduta da ré não pode assim ser classificada, na medida em que, como bem se refere no acórdão recorrido “o autor foi detido no âmbito de um processo judicial e, tendo-se socorrido dos meios de impugnação previstos no sistema judicial angolano, logrou obter a sua libertação, que veio a ser decretada pelo Tribunal Constitucional, na sequência de um pedido de “habeas corpus” por si deduzido.
Concluímos, pois, que a ré não estava impedida de invocar a imunidade de jurisdição."
[MTS]