Ineptidão da petição inicial,
decisão surpresa
1. O sumário de RL 15/12/2016 (5903/15.5T8LSB.L1-8) é o seguinte:
- Não se verifica a existência de uma decisão surpresa quando na audiência prévia foi dada a palavra ao mandatário da autora para responder às excepções invocados pelo réu na contestação, nos termos do artigo 3º nº 4 do NCPC, tendo ainda sido facultado às partes a discussão de facto e de direito nos termos do artigo 591º nº 1 alíneas b) e c) daquele código.
- Sendo omitido na petição inicial qualquer acto ou facto jurídico que possa responsabilizar o réu, falta a causa de pedir, que é geradora de ineptidão da petição inicial, nos termos do artigo 186º nº 2, alínea a) do NCPC.
2. Na fundamentação do acórdão pode ler-se o seguinte:
"A decisão recorrida julgou inepta a petição inicial e absolveu os réus da instância.
Reagiu a autora, ora apelante, dizendo que a petição inicial não é inepta, pois os réus apresentaram contestação e nesse articulado demonstram ter entendido perfeitamente a questão controvertida e a pretensão da contraparte tal como ela foi configurada na petição inicial.
Cumpre decidir.
Como já se referiu, no despacho saneador foi julgada inepta a petição inicial, determinando a absolvição da instância dos réus, nos termos do artigo 278º nº 1 alª b) do C.P.C.
O fundamento substancial da julgada ineptidão da petição inicial consiste no facto de não terem sido alegados factos concretos que alicercem as conclusões da autora quanto a ter a 1ª ré encontrado no 2º réu, J..., “ o parceiro ideal para criar um cenário falso e fictício que lhe permitiu apresentar-se em Juízo com uma aparência de razão”.
Segundo o disposto no artigo 186º nº 2 do NCPC, diz-se inepta a petição:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir.
Quer a doutrina, quer a jurisprudência, têm distinguido claramente a situação da petição inepta da daquela simplesmente irregular ou deficiente, no sentido de que só a falta ou a ininteligibilidade absolutas do pedido ou da causa de pedir acarretam a ineptidão.
Assim, já Alberto dos Reis defendia que “…Importa não confundir petição inepta com petição simplesmente deficiente… Quando a petição, sendo clara e suficiente quanto ao pedido e à causa de pedir, omite facto ou circunstâncias necessários para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta; o que então sucede é que a acção naufraga...” [Comentário ao CPC, 2.º - 372].
Por seu lado, também a jurisprudência se tem pronunciado em igual sentido, podendo citar-se, entre outros, o Acórdão da Relação de Lisboa de 18.02.1980, no qual se defendeu que “…Não é inepta, mas simplesmente irregular ou deficiente a petição em que o autor exprime correctamente o pedido e a causa de pedir mas omite factos positivos e concretos necessários para o reconhecimento do seu direito…” [BMJ, 300.º - 439] e no Acórdão da Relação de Évora de 13.06.1991, no qual se pode ler “…O que acarreta a ineptidão da petição inicial é a falta de causa de pedir e não a insuficiência dos factos alegados para a integrar…” [BMJ, 408.º - 665].
No Acórdão da Relação de Coimbra de 14.02.1995, em que se sufragou o entendimento de que “…As deficiências substanciais traduzidas na incompleta ou insuficiente articulação dos factos podem não obstar a que se conheça a causa de pedir (e, por isso, não dar lugar a ineptidão da petição inicial) mas terão antes como consequência a improcedência da acção…” [BMJ, 444.º - 718].
Também é igual o entendimento contido no Acórdão do STJ de 19.11.2002, onde se pode ler “…A mera deficiência da causa de pedir, traduzida na omissão de facto necessário ao reconhecimento do direito do autor, não acarreta a ineptidão da petição inicial, conduzindo antes ao soçobro da acção…” [Rel. Cons. Garcia Marques, disponível em www.dgsi.pt] e o mesmo se diga do Acórdão do STJ de 15.01.2003, no qual se afirma que “… A ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir consiste na sua indicação em termos verdadeiramente obscenos ou ambíguos, por forma a não se saber, concreta e precisamente, o que pede o autor e com base em que é que o pede. É pelo conteúdo da petição inicial que se afere da sua ineptidão quanto ao pedido e causa de pedir (falta ou ininteligibilidade) e não pelo entendimento que o réu faz da sua viabilidade, nomeadamente do entendimento da validade jurídica que […] atribui ao pedido do autor e aos factos em que este o funda, por constituir defesa por impugnação e levar, se aceite, à improcedência do pedido…” [AD, 502.º - 1537], ou, ainda, o Acórdão da Relação de Évora de 29.04.2004, no qual se sublinhou que situações mais graves em que o vício da petição inicial corresponde a uma verdadeira ineptidão, é motivada por “…ausência de causa de pedir, pela sua ininteligibilidade, pela contradição ente causas de pedir ou entre a causa de pedir e o pedido…” [Rel. Des. Bernardo Domingos, disponível em www.dgsi.pt].
Estes ensinamentos ao abrigo do antigo Código de Processo Civil mantêm plena actualidade, pois o artigo 186º mantém o regime anteriormente previsto no CPC-95/96 []Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, “Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Os Artigos da Reforma”, 2014-2ª Edição, Volume I, pág 201].
Ora, procedendo à análise da factualidade exposta pela autora na petição inicial, onde a mesma repete, em excesso de articulados, argumentos meramente conclusivos, verifica-se que a mesma não delineou perfeitamente o pedido e a causa de pedir, de tal modo que o 2º réu, ao arguir a ineptidão, não interpretou convenientemente a petição inicial – NCPC artigo 186º nº 3, a contrario -, nem mesmo, após a audição da autora na audiência prévia, se verificou a conveniente interpretação por parte da Mmª Juíza.
A contestação do 2º réu, J..., em matéria de impugnação debruça-se, essencialmente, no desconhecimento por que é que a autora resolveu que os réus têm um conluio que a prejudicou.
Como bem afirmou o réu J..., em relação a ele, “a autora limita-se a afirmar que ele teria efectuado uma correcção ao registo predial que “permitiu” à 1ª ré “ alimentar o contencioso em causa” (artº 97º da PI), não sendo invocada uma única disposição legal que permita compreender a razão pela qual o 2º réu é demandado. Seria difícil invocá-la, uma vez que não se compreende minimamente em que é que uma correcção ao registo predial de um prédio arrendado permite a um inquilino interpor acções de preferência contra o comprador de outro prédio e muito menos o que é que tem o réu a ver com o facto de o comprador de outro prédio ter pretensamente resolvido o contrato de compra e venda celebrado. No caso presente não existe apenas uma situação de obscuridade, sendo mesmo totalmente omitido qualquer acto ou facto jurídico que pudesse responsabilizar o 2º réu, faltando, por isso, totalmente a causa de pedir”.
Também a decisão recorrida alinha pelo mesmo pensamento, quando refere que “não foi só o R. J... que teve dificuldades em compreender a exposição da matéria de facto constante da petição inicial. O tribunal também teve. Será excessivo qualificar a petição inicial de inepta? Será a petição inicial apenas deficiente? Neste segundo caso, justificar-se-ia o convite ao aperfeiçoamento. Face a estas dúvidas, na audiência prévia, durante a discussão de facto e de direito, o tribunal deu a possibilidade à A. de esclarecer como é que a inclusão de um novo número de polícia na descrição do prédio do R. J... permitiu à R. sociedade propor acções contra a A. relacionadas com o prédio que esta havia vendido a B.... Contudo, a discussão de facto e de direito não foi esclarecedora. Apesar de não se dever confundir alegação com meio de prova, ónus de alegar com ónus de provar, o tribunal analisou as cópias das decisões judiciais juntas ao processo para tentar compreender a exposição da matéria de facto constante da petição inicial e não viu nelas qualquer referência ao número de polícia 17. Apenas no despacho de arquivamento de fls. 45 a 49 há referência a uma arrecadação que não integrava o espaço arrendado, admitindo-se que tal arrecadação tenha a ver com o prédio do R. J...”.
Mas tudo isto que acabámos de expor não será contrário ao actual espírito e filosofia do novo Código de Processo Civil?
Na verdade, importa mencionar que o espírito e a filosofia que estão subjacentes ao Código de Processo Civil também apontam para a conveniência de interpretar a petição inicial de modo a que a acção possa ser aproveitada, evitando a absolvição da instância por razões meramente formais e sem que tal justificação se vislumbre como efectivamente necessária.
De facto, a filosofia subjacente ao Código de Processo Civil – concretizada por diversos modos em várias disposições legais – visa assegurar, sempre que possível, a prevalência do fundo sobre a forma, pretendendo que o processo e a respectiva tramitação possam ter a maleabilidade necessária para que possa funcionar como um instrumento (e não como um obstáculo) para alcançar a verdade material e a concretização dos direitos das partes, como claramente se evidencia no preâmbulo do Dec-Lei nº 329-A/95 de 12/12 (note-se que toda essa filosofia foi reafirmada e até reforçada no CPC actualmente vigente), quando ali se diz que as linhas mestras do processo assentam, designadamente na “Garantia de prevalência do fundo sobre a forma, através da previsão de um poder mais interventor do juiz…”; quando ali se refere que “visa, deste modo, a presente revisão do Código de Processo Civil torná-lo moderno, verdadeiramente instrumental no que toca à perseguição da verdade material, em que nitidamente se aponta para uma leal e sã cooperação de todos os operadores judiciários, manifestamente simplificado nos seus incidentes, providências, intervenção de terceiros e processos especiais, não sendo, numa palavra, nem mais nem menos do que uma ferramenta posta à disposição dos seus destinatários para alcançarem a rápida, mas segura, concretização dos seus direitos”; quando se alude ao “…objectivo de ser conseguida uma tramitação maleável, capaz de se adequar a uma realidade em constante mutação…” e quando se afirma que o processo civil terá que ser perspectivado “…como um modelo de simplicidade e de concisão, apto a funcionar como um instrumento, como um meio de ser alcançada a verdade material pela aplicação do direito substantivo, e não como um estereótipo autista que a si próprio se contempla e impede que seja perseguida a justiça, afinal o que os cidadãos apenas pretendem quando vão a juízo” [Nosso acórdão de 16-04-2015, processo nº 4933-13.6TCLRS.L1-8 [...]]
A resposta à pergunta anterior afigura-se-nos evidente. Na verdade, perante o circunstancialismo acima referido e que envolve a falta de causa de pedir da petição inicial, que é de tal forma inepta, nem sequer se coloca a questão do aperfeiçoamento a que se refere a alínea c) do nº 1 do artigo 591º do NCPC, tal como pretende a autora, ora apelante.
Terminando, como na decisão recorrida, “a autora não alegou factos concretos que alicercem as suas conclusões quanto a ter a ré sociedade encontrado no ré J... “o parceiro ideal para criar um cenário falso e fictício que lhe permitiu apresentar-se em Juízo com uma aparência de razão”. Tal falta de alegação não constitui uma insuficiência na exposição da matéria de facto que possibilite ao tribunal convidar a autora a aperfeiçoar a petição. O que se verifica é que, na realidade, não há factos que possam alicerçar as conclusões da autora”.
E também, como bem refere o 2º réu J..., - repete-se – “não se compreende minimamente em que é que uma correcção ao registo predial de um prédio arrendado permite a um inquilino interpor acções de preferência contra o comprador de outro prédio e muito menos o que é que tem o réu a ver com o facto de o comprador de outro prédio ter pretensamente resolvido o contrato de compra e venda celebrado”.
Nesta conformidade e sem necessidade de maiores considerações, improcedem as conclusões das alegações de recurso".
[MTS]