"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



18/04/2017

Jurisprudência (600)


Caso julgado; excepção de caso julgado;
pressupostos


1. O sumário de STJ 14/12/2016 (219/14.7TVPRT-C.P1.S1) é o seguinte:


I. A figura da excepção de caso julgado – que a reforma de 1995/96 qualificou expressamente como dilatória – tem que ver com um fenómeno de identidade entre relações jurídicas, sendo a mesma relação submetida sucessivamente a apreciação jurisdicional, ignorando-se ou desvalorizando-se o facto de esse mesma relação já ter sido, enquanto objecto processual perfeitamente individualizado nos seus aspectos subjectivos e objectivos, anteriormente apreciada jurisdicionalmente, mediante decisão que transitou em julgado.

II. Ocorre identidade de pedido quando o efeito prático-jurídico pretendido pelo autor em ambas as acções é substancialmente o mesmo.

III. A essencial identidade e individualidade da causa de pedir tem de aferir-se em função de uma comparação entre o núcleo essencial das
causae petendi invocadas numa e noutra das acções em confronto, não sendo afectada tal identidade, nem por via da alteração da qualificação jurídica dos factos concretos em que se fundamenta a pretensão, nem por qualquer alteração ou ampliação factual que não afecte o núcleo essencial da causa de pedir que suporta ambas as acções, nem pela invocação na primeira acção de determinada factualidade, perspectivada como meramente instrumental ou concretizadora dos factos essenciais.

IV. Não ocorre a excepção de caso julgado quando as pretensões materiais formuladas nas duas acções em confronto, para além de representarem vias jurídicas alternativas e estruturalmente diferenciadas para alcançar a tutela jurídica de determinado interesse, assentes em pressupostos legais perfeitamente autónomos, implicaram a formulação de pedidos estruturalmente diferentes, envolvendo a via seguida na primeira acção, já definitivamente julgada improcedente, a formulação de pedidos de reconhecimento e condenação numa obrigação de transmitir ou restituir determinados valores patrimoniais, alicerçada, a título principal, na execução de um contrato de mandato sem representação, e a título subsidiário, na verificação dos pressupostos do enriquecimento sem causa, ao passo que o pedido formulado na subsequente acção opera antes no plano dos direitos reais, envolvendo, de forma essencial, a realização de uma separação de bens próprios, com imediato reconhecimento do direito de propriedade, e um juízo divisório dos bens que se entenda estarem em comunhão ou contitularidade.
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"5. Na concreta situação dos autos, a vertente da figura do caso julgado que está em causa é obviamente a relativa à excepção dilatória de caso julgado, envolvendo, desde logo, a definição da identidade objectiva das duas acções sucessivamente propostas entre as mesmas partes: poderá, na específica e particular situação litigiosa, considerar-se que naquelas duas acções se verifica simultaneamente identidade do pedido e da causa de pedir?

Começando por abordar a problemática da identidade dos pedidos ou pretensões materiais deduzidas, parece-nos evidente que – mesmo partindo de uma concepção que caracteriza a individualidade do pedido em função do efeito prático jurídico que o demandante procura alcançar, mais do que através de um apelo à configuração estritamente normativa da pretensão., à sua coloração ou qualificação jurídica, feita em função de certa figura ou instituto jurídico - tem de concluir-se que, no caso dos autos, o A. formulou, nas duas acções que sucessivamente intentou, pretensões materialmente distintas.

Saliente-se que, como é manifesto, nenhuma dúvida se poderia razoavelmente suscitar quanto ao pedido deduzido, a título principal, na primeira acção, estribado em função da existência de uma relação contratual de mandato sem representação outorgado entre as partes e da obrigação de transmissão ao mandante dos bens adquiridos em execução do mandato.

O mesmo ocorre, bem vistas as coisas, relativamente à matéria do pedido subsidiário então deduzido, com base na invocação da figura e dos específicos pressupostos do enriquecimento sem causa. Embora fosse invocado, em sede de tal pedido, a extinção da união de facto, tal facto surgia, naquele contexto, como meramente instrumental, circunstancial ou concretizador dos pressupostos legais de tal figura, em termos de delinear o quadro fáctico subjacente, em que teria ocorrido o enriquecimento de um dos interessados à custa do empobrecimento do outro, sem causa justificativa da transferência patrimonial verificada.

Na verdade, a invocação da figura ou instituto geral do enriquecimento sem causa, objecto da pretensão que foi julgada improcedente na primeira acção, e a formulação de um pedido dirigido à obtenção de um juízo divisório do acervo patrimonial conseguido na pendência da situação de união de facto, entretanto dissolvida, representam vias jurídicas profundamente diversificadas para obter a tutela de determinado interesse patrimonial, implicando, aliás, a formulação de pretensões materiais perfeitamente diversificadas: é que, quer a invocação do dito contrato de mandato sem representação, quer a construção fundada no instituto do enriquecimento sem causa, implicam necessariamente a formulação de uma pretensão de natureza creditória ou obrigacional, que é co natural a tais institutos, que apenas podem originar para o demandado o surgimento de uma obrigação de transmitir para o mandante os bens adquiridos na execução do mandato sem representação (art. 1181º do CC) ou uma obrigação de restituir ao empobrecido aquilo com que injustamente se locupletou, nos termos do art. 473º do CC.

Pelo contrário, a pretensão formulada nesta acção, implicando uma destrinça dos bens próprios de cada interessado e um juízo divisório dos bens obtidos durante a pendência da união de facto, opera no plano dos direitos reais, levando – caso, no plano do mérito da causa, procedam os termos em que o A. pretende equiparar a dissolução da união de facto à partilha consequente à dissolução de uma situação matrimonial – à definição e concretização, no plano dos direitos reais, do seu direito sobre determinado acervo patrimonial adquirido na pendência da dita união – e sendo manifesto que apurar se, nesta acção, o A. logrou ou não relacionar adequadamente o acervo a partilhar, satisfazendo as exigências de um processo típico de inventariação, liquidação e partilha é matéria que se conexiona já com a decisão de mérito a proferir nos presentes autos…

Em suma: as pretensões materiais formuladas nas duas acções em confronto, para além de representarem vias jurídicas alternativas e estruturalmente diferenciadas para alcançar a tutela jurídica de determinados interesses patrimoniais, assentes em pressupostos legais perfeitamente autónomos, implicaram a formulação de pedidos estruturalmente diferentes, envolvendo a via seguida na primeira acção, já definitivamente julgada improcedente, a formulação de pedidos de reconhecimento e condenação numa obrigação de transmitir ou restituir determinados valores patrimoniais, ao passo que o pedido formulado na presente acção opera antes no plano dos direitos reais, envolvendo, de forma essencial, uma separação de bens próprios, com imediato reconhecimento do direito de propriedade, e um juízo divisório dos bens que se entenda estarem em comunhão ou contitularidade. (sobre a especificidade do pedido, alicerçado na obtenção de um juízo divisório de bens, relativamente a pretensões de outra natureza, veja-se o Ac. deste STJ de 29/9/11, proferido no P. 3831/05.1TBSTS.P1.S1).

E, assim sendo, a dedução de pretensões materiais estruturalmente diversificadas, operando umas no plano obrigacional e outras no plano do reconhecimento e concretização dos direitos reais, tem de concluir-se que as acções em confronto visam realizar formas de tutela material diferentes, obtidas através de pedidos prática e juridicamente bem diferenciados - que se não podem consequentemente reconduzir à realização do mesmo e específico efeito prático jurídico – ocorrendo assim, no plano objectivo, uma diferenciação material dos pedidos formulados.

De igual modo, tem de considerar-se – em consonância com a diversidade dos pedidos - que é diferente o núcleo essencial da causa de pedir, relativamente às pretensões deduzidas na primeira acção, já julgada improcedente, e na presente causa.

Tal conclusão é perfeitamente óbvia no que respeita à causa petendi estribada na invocação do contrato de mandato sem representação, não tendo naturalmente tal negócio jurídico nada a ver com a pretendida separação e partilha do património acumulado durante a vigência da união de facto; e o mesmo ocorre com o pedido de restituição do indevido, alicerçado na figura do enriquecimento sem causa, sendo então o núcleo essencial da causa de pedir a densificação e concretização dos pressupostos de tal instituto, surgindo – como atrás se referiu – a referenciação factual da extinção da dita união de facto como mero facto instrumental ou concretizador do alegado facto essencial locupletamento injustificado das RR.

A inexistência de identidade objectiva das acções em confronto torna inútil a abordagem da questão da possível identidade subjectiva, restando, deste modo, concluir pela inexistência da excepção dilatória de caso julgado, por não se verificaram as violações de lei invocadas pelos recorrentes."
 
3. [Comentário] O decidido no acórdão não suscita nenhumas objecções, dado que, no processo civil português, o autor não tem nenhum ónus de concentração de todas as causas de pedir na acção por ele proposta. Esta orientação legal é, muito possivelmente, minoritária no panorama europeu.
 
Note-se que, quando recai sobre a parte um ónus de concentração de todos os possíveis fundamentos do pedido, a excepção de caso julgado obsta à invocação do fundamento precludido numa acção posterior, apesar da diversidade das causas de pedir ou dos fundamentos da contestação. É o que decorre da função de proibição de contradição que o art. 580.º, n.º 2, CPC atribui à excepção de caso julgado (assim como à excepção de litispendência). Assim, dado que o réu tem o ónus de concentrar toda a sua defesa na contestação (cf. art. 573.º, n.º 1, CPC), é a excepção de caso julgado que impede a alegação, em acção posterior, de um fundamento de defesa não invocado numa acção anterior.

MTS