"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



10/04/2017

Jurisprudência (594)


Excepção de não cumprimento; 
conhecimento oficioso; excesso de pronúncia


1. O sumário de STJ 7/12/2016 (551/13.7TVPRT.P1.S1) é o seguinte:

 I - A excepção de não cumprimento do contrato não é de conhecimento oficioso, carecendo de ser invocada pelo contraente que pretende retardar a prestação a que está adstrito.

II - Não tendo sido invocada na contestação, não pode a excepção de não cumprimento ser extraída oficiosamente dos factos provados, como resulta do art. 579.º do CPC, pelo que tendo o acórdão recorrido conhecido desta, substituindo-se à ré, incorreu em excesso de pronúncia.

III - Verificando-se excesso de pronúncia de um acórdão da Relação do qual tenha sido interposto recurso de revista, incumbe ao STJ suprir o vício, declarando em que sentido se considera modificada a decisão da Relação e conhecendo dos demais fundamentos do recurso (art. 684.º, n.º 1, do CPC).

IV - Nos contratos de seguro de crédito, titulados por “apólices globais”, através das quais o segurador garante “todos os créditos do segurado face a terceiros seus clientes, dentro do ‘plafond’ que o segurador fixa para cada um deles” o risco garantido é o da falta de pagamento (ao qual frequentemente se faz equivaler a mora por um determinado tempo), resultante dos sinistros enumerados no contrato quanto a qualquer dos créditos concretos incluídos na carteira do cliente – valendo, na expressão utilizada pelos seguradores, o “princípio da globalidade”.

V - Em tais seguros o segurador não controla as decisões do segurado, das quais podem resultar créditos ou agravamento dos créditos que detém sobre os seus clientes, pelo que se impõem ao segurado exigentes deveres de informação ao segurador ao longo da vida do contrato e de permissão de acesso à sua escrita e documentação, podendo contratualmente restringir-se ou excluir-se o poder de decisão do segurado, por ex. exigindo a concordância do segurador para a prática de certos actos.

VI - Entre as partes do contrato de seguro de crédito – em especial no que se refere à possibilidade de prorrogação dos prazos de pagamento – ocorre, frequentemente, dissonância de interesses entre o segurado interessado em manter os clientes e o segurador interessado em cobrar o crédito independentemente dos efeitos que a cobrança possa ter, com reflexos evidentes no cumprimento das obrigações de informação por parte do segurado.

VII - O incumprimento, por parte do segurado, das obrigações de informação que sobre si recaiam, pode conduzir à perda do direito à indemnização quando o segurado opta por não cumprir essa informação.

VIII - No caso dos autos, resultou provado que a seguradora tinha o direito de exigir informação que o segurado não enviou no prazo contratualmente fixado.

IX - É admissível a criação convencional de prazos de caducidade.
 

2. Na fundamentação do acórdão pode ler-se o seguinte:

"5. A recorrente afirma que o acórdão recorrido é nulo por excesso de pronúncia, por ter conhecido da excepção de não cumprimento do contrato, não alegada pela recorrida.

O Supremo Tribunal de Justiça tem afirmado repetidamente que a excepção de não cumprimento não é de conhecimento oficioso, carece de ser invocada pelo contraente que pretende retardar a prestação a que está adstrito, e na contestação, tendo em conta o princípio da concentração da defesa (cfr., a título de exemplo, os acórdãos de 29 de Abril de 1999, www.dgsi.pt, proc. nº 99B077, de 16 de Março de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 97/2002.L1.S1, ou de 16 de Junho de 1015, www.dgsi.pt, proc. nº 3309/08.1TJVNF.G1.S1).

Como se escreveu já no acórdão de 30 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 184/06.4TBTND.C1.S1: “não há qualquer dúvida de que a excepção de não cumprimento do contrato não é de conhecimento oficioso: tem de ser alegada pelo interessado, como meio de “paralisar temporariamente a pretensão da contraparte” (acórdão deste Supremo Tribunal de 16 de Novembro de 2009, www.dgsi.pt, proc. nº 674/02.8TJVNF.S1) – cfr. artigo 496º do Código de Processo Civil” então em vigor, correspondente ao actual artigo 579º. “Na verdade, traduz-se na faculdade, em cujo exercício o juiz se não pode substituir à parte, de recusar o cumprimento de uma obrigação contratual invocando a não realização, pela contraparte, de prestações “correspectivas ou correlativas, isto é, interdependentes, sendo uma o motivo determinante da outra” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I vol. anotação ao artigo 428º do Código Civil), para cuja realização não haja prazos diferentes. Se procedente, conduz à absolvição do pedido, mas não definitiva (cfr. o artigo 673º do Código de Processo Civil, quanto ao alcance do caso julgado formado)” – actual artigo 621º –,” pois não extingue o direito exercido pela parte contrária; sendo por este motivo doutrinalmente qualificada como excepção material dilatória, como todos sabemos, mas funcionando, no contexto do Código de Processo Civil, como excepção peremptória (cfr. artigo 493º, nº 2)” – actual artigo 576º, nº 3.

Ora, na contestação a ré não invocou a excepção de não cumprimento, nem expressa, nem implicitamente. Tal como no caso a que respeitou o acórdão de 30 de Setembro de 2010, “nada no respectivo texto indica que apenas pretendia paralisar temporariamente o direito” de exigir a indemnização.

Antes invocou a extinção do direito da autora, por caducidade, o que é incompatível com a vontade de o paralisar apenas temporariamente.

Não tendo sido invocada a excepção de não cumprimento – que, correspondendo a uma faculdade reconhecida aos contraentes nos contratos bilaterais, como se prevê no nº 1 do artigo 428º do Código Civil, não pode ser extraída oficiosamente dos factos provados, como resulta do artigo 579º do Código de Processo Civil actual, correspondente ao anterior artigo 496º –, o acórdão recorrido não poderia ter-se substituído à ré, julgando a acção improcedente em virtude da procedência da excepção. Consequentemente, incorreu em excesso de pronúncia,

Verificando-se excesso de pronúncia de um acórdão da Relação do qual tenha sido interposto recurso de revista, incumbe ao Supremo Tribunal de Justiça suprir o vício, declarando em que sentido se considera modificada a decisão da Relação e conhecendo dos demais fundamentos do recurso (nº 1 do artigo 684º do Código de Processo Civil).

Ora, da análise do acórdão recorrido conclui-se que, ainda que não considerasse a excepção de não cumprimento, a Relação teria absolvido a ré do pedido com fundamento em inexigibilidade do pagamento da indemnização, resultante de não haver ainda incumprimento da obrigação, contratualmente assumida pela seguradora, de indemnizar o sinistro.

Com efeito, retira-se do acórdão que a autora não forneceu à ré a informação que, contratualmente, devia prestar, porque lhe permitiria averiguar da eventual verificação de “uma situação superveniente de exclusão do seguro ex vi nº 5 do artigo 3º das condições gerais”; que essa falta de informação não é causa de caducidade do direito à indemnização, pois, foi prestada a informação suficiente para a identificação do crédito seguro e para se terem como comprovadas a existência de risco e a ocorrência do sinistro; que, na verdade, a falta de informação apenas afasta a mora em que incorreria a seguradora, por não ter pago a indemnização no prazo de 30 dias, previsto no ponto III.1 do artigo 7º das condições gerais do contrato.

Fica portanto prejudicado saber se, no caso, ocorreriam os requisitos necessários à procedência da excepção de não cumprimento, como, por exemplo, a correspectividade das obrigações contratuais em causa."
 
[MTS]