"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



12/04/2017

Jurisprudência (596)


Transmissão do direito litigioso;
substituição processual


1. O sumário de RC 15/12/2016 (6906/15.5T8VIS.C1) é o seguinte:
 

I – A impossibilidade superveniente da lide dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não possa subsistir por motivos atinentes ao sujeito, ao objecto do processo e à causa.

II - Demandando os Autores o Novo Banco SA (com base na Deliberação do Banco de Portugal de 3 de Agosto de 2014) onde pedem a anulação do negócio de subscrição de aplicações financeiras, anteriormente celebrado com o BES, e reclamam uma indemnização, por danos patrimoniais e não patrimoniais, a Deliberação do Banco de Portugal de 29 de Dezembro de 2015 (emitida na pendência da causa) que retransmitiu para a instituição de crédito originária (BES) determinados activos e passivos, entre os quais e expressamente o crédito exercido pelos Autores neste processo, não implica uma impossibilidade superveniente da lide, a justificar a extinção da instância.

III - Estamos perante o fenómeno da transmissão da coisa ou direito em litígio, não efectuada directamente pelo demandado (Novo Banco), mas pelo seu criador, o Banco de Portugal, no âmbito da sua competência legal, pelo que tem aplicação o regime do nº 1 do art. 263º CPC, verificando-se a chamada “substituição processual“.

IV - Na substituição processual, não havendo coincidência entre o sujeito da relação processual e o da relação substantiva, o substituto, agindo em nome próprio, litiga em direito alheio, e, por isso, é parte no processo, com o direito de acção e de defesa.
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"[...] Considerando que a presente acção foi proposta em data anterior à nova Deliberação do Banco de Portugal (29 de Dezembro de 2015), problematiza-se aqui da sua repercussão processual.

A sentença recorrida julgou extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide, justificando, a dado passo:

“Certo é que da mesma deliberação consta, nomeadamente, a presente ação como incidindo sobre responsabilidades que não foram transferidas para o Novo Banco através da deliberação de 3.8.2014, conforme Anexo 2C da deliberação do Banco de Portugal em análise (na página 15).

Trata-se de clarificação de quais os passivos excluídos da transferência de passivos do BES para o Novo Banco, constante das subalíneas v) e vi) da alínea (b) do n.º 1 do Anexo 2 à Deliberação do Banco de Portugal de 3 de agosto de 2014 – deliberação esta que foi tomada ao abrigo do art. 146º, n.º 1, do RGICSF.
Para além de poder desaguar numa ilegitimidade substantiva do réu, suscetível de determinar a sua absolvição do pedido (decisão de mérito) – conforme defendido pelo réu -, o teor da Deliberação do Banco de Portugal de 29.12.2015 acarreta a impossibilidade de continuação da presente lide, uma vez que clarificou que o produto financeiro subscrito pelos autores, em causa nos autos, não foi transferido para o banco réu, continuando assim na titularidade do Banco Espírito Santo – questão que era controvertida nos autos. O conhecimento desta causa de extinção da instância é anterior à aferição dos pressupostos processuais e outras exceções, ainda que materiais, que determinem o prosseguimento ou não dos autos”.

Segundo o alegado, os Autores negociaram como o BES, mas devido à intervenção do Banco de Portugal com o poder de resolução e criação do Novo Banco, como “banco de transição”, e considerando a transferência de activos e passivos da instituição de crédito originária, o Novo Banco é considerado “para todos os efeitos legais e contratuais, como sucessor nos direitos e obrigações transferidos da instituição de crédito originária.” (cf. art.145-A do RGICSF).

Foi, de resto, com base na Deliberação de 3 de Agosto de 2014 que os Autores logo demandaram o Novo Banco, como expressaram na petição inicial.

Verifica-se, contudo, que já na pendência da acção o Banco de Portugal, exercendo os “poderes de retransmissão” que a lei (Lei nº31-A/2012) lhe atribui (o poder de retransmissão está expressamente previsto no art.145 -Q nº4 c) do RGICSF ), através da Deliberação de 29 de Dezembro de 2015, retransmitiu para a instituição de crédito originária (BES) determinados activos e passivos, entre os quais e expressamente o crédito exercido pelos Autores neste processo (cf. ponto 2 do anexo).

Sendo assim, tendo em conta o princípio da estabilidade da instância (art.260 CPC), estamos perante o fenómeno da transmissão da coisa ou direito em litígio, aqui, pela própria singularidade, não efectuada directamente pelo demandado (Novo Banco), mas pelo seu criador, o Banco de Portugal, no âmbito da sua competência legal. Ou seja, o Banco de Portugal, (re)transmitiu a titularidade da relação jurídica material ou substantiva, do complexo de direitos e deveres, para o BES, a implicar o regime do art.263 do CPC - “No caso de transmissão, por acto entre vivos, da coisa ou direito litigioso, o transmitente continua a ter legitimidade para a causa enquanto o adquirente não for , por meio de habilitação, admitido a substituí-lo” ( nº1).

Como elucida Paula Costa e Silva, “Na verdade, apesar de ocorrer uma transferência na titularidade ou disponibilidade do objecto do litígio, a instância não se extingue, por ilegitimidade superveniente, nem se suspende até à substituição de partes principais na acção. Antes se atribui uma legitimidade extraordinária ao transmitente a fim de este continuar a litigar por uma relação jurídica substantiva, na qual já não é parte” (A Transmissão da Coisa ou Direito em Litígio, pág.92).

As razões que subjazem e motivam a chamada “substituição processual“ são, desde logo, as de protecção da parte estranha à transmissão e o princípio da economia processual.

Na substituição processual, porque não há coincidência entre o sujeito da relação processual e o da relação substantiva, o substituto, agindo em nome próprio, litiga em direito alheio, e, por isso, é parte no processo, com o direito de acção e de defesa.

Neste contexto, e contrariamente ao decidido, a não coincidência entre o sujeito da relação substantiva e a parte adjectiva (o Novo Banco) não implica uma impossibilidade superveniente da lide, na acepção já expressa."
 
[MTS]