Notificação judicial avulsa;
Reg. 1393/2007
1. O sumário de RP 15/12/2016 (19859/16.3T8LSB.L1.-2) é o seguinte:
I. A notificação judicial avulsa é um ato-fim e independente, isto é, toda a atividade que nela se exerce é conducente à notificação, distinguindo-se das notificações relativas a processos pendentes, as quais são atos-meio e dependentes, porque servem de instrumento ou de meio num processo em curso, cujo fim nada tem que ver com o objetivo direto da notificação.
I. A notificação judicial avulsa é um ato-fim e independente, isto é, toda a atividade que nela se exerce é conducente à notificação, distinguindo-se das notificações relativas a processos pendentes, as quais são atos-meio e dependentes, porque servem de instrumento ou de meio num processo em curso, cujo fim nada tem que ver com o objetivo direto da notificação.
II. O art.º 79.º do CPC, que dispõe que “as notificações avulsas são requeridas no tribunal em cuja área resida a pessoa a notificar” é uma norma que cuida da competência do tribunal em razão do território, não obstando à competência dos tribunais portugueses para tramitarem notificações judiciais avulsas de requeridos localizados no estrangeiro.
III. O Regulamento (CE) n.º 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho de 13 de novembro de 2007 relativo à citação e à notificação dos atos judiciais e extrajudiciais em matéria civil e comercial nos Estados-Membros e a Convenção de Haia Relativa à Citação e à Notificação no Estrangeiro de Atos Judiciais e Extrajudiciais em Matérias Civil e Comercial são aplicáveis às notificações judiciais avulsas.
2. Na fundamentação do acórdão pode ler-se o seguinte:
"Os requerentes pretendem interromper a prescrição dos direitos que entendem ter contra os requeridos. Com efeito, nos termos do n.º 1 do art.º 323.º do Código Civil, “a prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o acto pertence e ainda que o tribunal seja incompetente”. Sendo que, no termos do n.º 4 do mesmo artigo, “é equiparado à citação ou notificação, para efeitos deste artigo, qualquer outro meio judicial pelo qual se dê conhecimento do acto àquele contra quem o direito pode ser exercido.”
A notificação judicial avulsa pela qual se manifesta a intenção do exercício de um direito é, conforme uniformização de jurisprudência levada a cabo pelo STJ em julgamento ampliado de revista, no acórdão n.º 3/98, datado de 26.3.1998 e publicado no D.R. I-A, de 12.5.1998, meio adequado à interrupção da prescrição desse direito, nos termos do n.º 1 artigo 323.º do Código Civil.
As notificações judiciais avulsas (atualmente reguladas nos artigos 256.º a 258.º e 79.º do CPC) são, conforme pondera o Professor Alberto dos Reis (Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 1.º, pág. 238; idem, volume 2.º, páginas 586 a 588), atos-fim, porque toda a atividade que nelas se exerce é conducente à notificação. Distinguem-se das notificações relativas a processos pendentes, as quais são atos-meio, porque servem de instrumento ou de meio num processo cujo fim nada tem que ver com o objetivo direto da notificação. Daí que também se possam classificar, respetivamente, como notificações independentes e notificações dependentes (A. dos Reis, Comentário, 2.º vol, pág. 587, nota 1).
Pese embora a sua natureza de ato-fim, a notificação judicial avulsa não deixa de constituir um procedimento, um encadeado de atos destinados a produzirem um efeito útil, in casu, a desejada interrupção da prescrição, podendo subsumir-se ao disposto no n.º 2 do art.º 2.º do CPC (neste sentido, cfr. o mencionado acórdão do STJ, de 26.3.1998 e, também, o acórdão da Relação do Porto, de 16.12.2015, processo 742/13.0TTMTS.P1). [...]
Temos, assim, um processado que contém um requerimento, um despacho do qual, se for de indeferimento, cabe recurso para a Relação (art.º 257.º n.º 2), o ato da notificação propriamente dita (efetuado na própria pessoa do notificado por agente de execução ou por funcionário de justiça, que lavram certidão do ato) e a entrega do requerimento e da certidão do ato ao requerente. Sendo certo que, embora a notificação não admita oposição, poderá ser arguida a sua invalidade formal (possibilidade admitida, desde logo, no n.º 3 do art.º 323.º do Código Civil, que salvaguarda o efeito interruptivo da prescrição no caso de anulação da citação ou da notificação; vide, também, Alberto dos Reis, Comentário, 2.º vol., pág. 743).
Põe-se a questão de se saber se os tribunais portugueses têm competência para tramitar notificação judicial avulsa cujo requerido resida ou esteja sediado no estrangeiro.
À partida, não se vê razão que tal impeça.
Se, verificados que estejam os relevantes elementos de conexão, é possível demandar perante um tribunal português um cidadão ou uma entidade que estejam localizados no estrangeiro, procedendo-se à respetiva citação e, depois, a eventuais subsequentes notificações, no estrangeiro, ao abrigo dos instrumentos internacionais existentes para o efeito ou através da cooperação individual solicitada às autoridades judiciais estrangeiras diretamente ou pela via diplomática, não se antevê porque razão os tribunais portugueses não poderiam receber um requerimento de notificação avulsa de pessoa localizada no estrangeiro, deferir o requerido, solicitar às autoridades competentes no estrangeiro a adequada notificação pessoal do ato (notificação da declaração emitida pelo requerente) e, chegada a respetiva certidão ao tribunal, tudo restituir ao requerente.
É certo que no art.º 79.º do CPC se dispõe que “as notificações avulsas são requeridas no tribunal em cuja área resida a pessoa a notificar.”
Mas, conforme aliás decorre da inserção sistemática do preceito (Secção IV, atinente à “competência em razão do território”, por sua vez integrada no Capítulo III, regulador da “competência interna”), esta norma cuida da competência do tribunal em razão do território (conforme se ponderou no acórdão desta Relação e secção supra citado, datado de 10.11.2016 – processo n.º 20092/16.0T8LSB-L1), justificando-se a solução nesse plano consignada, atenta a finalidade do procedimento.
Não se encontra norma no CPC que recuse a competência internacional dos tribunais portugueses para apreciarem requerimentos de notificação judicial avulsa de requeridos residentes ou sediados no estrangeiro (cfr. artigos 59.º e 62.º do CPC). Assim como não se encontra, ao nível do direito da União Europeia, norma que a tal obste, nomeadamente no Regulamento (EU) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de dezembro de 2012 relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial.
Pelo contrário, a jurisprudência do TJUE, emitida sobre os instrumentos comunitários que têm regulado a citação e notificação dos atos judiciais e extrajudiciais em matéria civil e comercial nos Estados-Membros aponta para a admissibilidade, conveniência e até, porventura, obrigatoriedade desta competência alargada do tribunal para o referido procedimento.
Referimo-nos, em particular, ao acórdão do Tribunal de Justiça, de 25.6.2009, proferido no processo C-14/08 (Roda Golf & Beach Resort SL) em sede de reenvio prejudicial que, embora incidindo sobre o art.º 16.º do Regulamento (CE) n.º 1348/2000 do Conselho, relativo à citação e à notificação dos atos judiciais e extrajudiciais em matéria civil e comercial nos Estados-Membros, que foi revogado pelo atualmente vigente Regulamento (CE) n.º 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho de 13 de novembro de 2007, mantém todo o interesse, face à manutenção da redação desse preceito no art.º 16.º do atual Regulamento e bem assim das linhas fundamentais do Regulamento (no mesmo sentido, citando este acórdão, Carlos Marinho, “As citações e notificações no espaço europeu comum”, Julgar, 14, páginas 33 e 34; também, RELATÓRIO DA COMISSÃO AO PARLAMENTO EUROPEU, AO CONSELHO E AO COMITÉ ECONÓMICO E SOCIAL EUROPEU sobre a aplicação do Regulamento (CE) n.º 1393/2007 do Parlamento Europeu e do Conselho, datado de 04.12.2013, pág. 5). [...]
Aceite a competência para apreciar as questões prejudiciais enunciadas, o TJ acabou por proferir a seguinte decisão:
“A citação e a notificação, à margem de um processo judicial, de um acto notarial como o que está em causa no processo principal estão abrangidas pelo âmbito de aplicação do Regulamento (CE) n.° 1348/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000, relativo à citação e à notificação dos actos judiciais e extrajudiciais em matérias civil e comercial nos Estados‑Membros.”
Para aí chegar o TJ pronunciou-se sobre a questão de saber se o conceito de ato extrajudicial, mencionado no art.º 16.º do Regulamento (“Os actos extrajudiciais podem ser transmitidos para citação ou notificação noutro Estado-Membro nos termos do presente regulamento”), é um conceito de direito comunitário ou, pelo contrário, um conceito de direito nacional.
A conclusão do TJ foi que o conceito de “ato extrajudicial”, na aceção do artigo 16.° do Regulamento n.° 1348/2000, deve ser considerado um conceito de direito comunitário.
Para tal, o TJ ponderou que o “objectivo do Tratado de Amesterdão, de criar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça, dando com isso uma dimensão nova à Comunidade, e a transferência, do Tratado UE para o Tratado CE, do regime que permite a adopção de medidas que se incluem no domínio da cooperação judiciária em matéria civil com efeitos transfronteiriços atestam a vontade dos Estados-Membros de ancorar essas medidas na ordem jurídica comunitária e de consagrar o princípio da sua interpretação autónoma.” “Além disso, a escolha da forma de regulamento, em vez da forma de directiva inicialmente proposta pela Comissão (…), mostra a importância que o legislador comunitário atribuiu à aplicabilidade directa das disposições do Regulamento n.° 1348/2000 e à sua aplicação uniforme.”
Relativamente à questão de saber se a citação e a notificação de atos extrajudiciais à margem de um processo judicial estavam abrangidas pelo âmbito de aplicação do Regulamento n.° 1348/2000 (e, portanto, estão abrangidos pelo Regulamento que lhe sucedeu, o Regulamento (CE) n.º 1393/2007), o TJ recordou que “o artigo 61.°, alínea c), CE é a base jurídica do Regulamento n.° 1348/2000. Esta disposição, a fim de criar progressivamente um espaço de liberdade, de segurança e de justiça, permite que se adoptem as medidas previstas no artigo 65.° CE. Essas medidas, que se incluem no domínio da cooperação judiciária em matéria civil com efeitos transfronteiriços, visam nomeadamente, de acordo com o referido artigo 65.° CE, melhorar e simplificar o sistema de citação e de notificação transfronteiriça dos actos judiciais e extrajudiciais na medida do necessário ao bom funcionamento do mercado interno.” Mais realçou que o segundo considerando do Regulamento n.º 1348/2000 “enuncia que o bom funcionamento do mercado interno exige que se melhore e torne mais rápida a transmissão, entre os Estados-Membros, dos actos judiciais e extrajudiciais em matéria civil ou comercial, para efeitos de citação e notificação.” Portanto, acrescenta o TJ, “o artigo 65.° CE e o Regulamento n.° 1348/2000 têm, assim, por objectivo criar um sistema de citação e de notificação intracomunitário, com vista ao bom funcionamento do mercado interno.” E, continuando, afirmou que “tendo em conta este objectivo, a cooperação judiciária visada por esse artigo e por este regulamento não se pode limitar apenas aos processos judiciais. Com efeito, esta cooperação é susceptível de se manifestar quer no quadro de um processo judicial quer à margem desse processo, na medida em que a referida cooperação tem efeitos transfronteiriços e é necessária ao bom funcionamento do mercado interno.” Para concluir que “o acto em causa no processo principal, que foi transmitido ao secretário do órgão jurisdicional de reenvio com vista à sua notificação, foi lavrado por um notário, como decorre do n.° 20 do presente acórdão, e, como tal, constitui um acto extrajudicial na acepção do artigo 16.° do Regulamento n.° 1348/2000.”
No que concerne à preocupação que, no processo de reenvio, havia sido manifestada pelo governo espanhol e pelo governo polaco, de que uma conceção ampla do conceito de ato extrajudicial imporia uma carga excessiva para os meios dos órgãos jurisdicionais nacionais, o TJ salientou que as obrigações em matéria de citação e de notificação que decorrem do Regulamento não incumbem forçosamente aos órgãos jurisdicionais nacionais. Com efeito, a designação das entidades de origem e das entidades requeridas, que, nos termos do artigo 2.°, n. 1 e 2, do referido regulamento, podem ser “os funcionários, as autoridades ou outras pessoas”, é da competência dos Estados-Membros. Consequentemente, os Estados-Membros podem designar como entidades de origem ou entidades requeridas, para efeitos da citação e da notificação dos atos judiciais ou extrajudiciais, outras entidades que não sejam órgãos jurisdicionais nacionais. E poderão também, conforme admite o Regulamento, proceder à citação ou à notificação por outros meios, ou seja, diretamente, por via postal, por diligência de oficiais de justiça, funcionários ou outras pessoas competentes do Estado-Membro requerido.
Ou seja, o objetivo do Direito da União é que as fronteiras não constituam barreiras entre os povos da União. As comunicações de atos jurídicos devem poder fazer-se dentro da União com rapidez, facilidade e segurança, independentemente da localização dos respetivos emitentes e destinatários, através de um sistema simples e alargado de cooperação.
Daí que simples notificações como a destes autos, atos-fim independentes de um processo em curso, possam e devam poder ser requeridas no tribunal da área onde se encontra o requerente e serem transmitidas a um tribunal ou outra entidade situada na área onde se localiza o destinatário dessa comunicação, independentemente do Estado-Membro onde se encontrem uns e outros.
Tanto mais que, esteja em causa a notificação de ato judicial ou de ato extrajudicial, a entidade de origem poderá solicitar à entidade requerida que a notificação seja efetuada de uma forma que considere ser a mais adequada à comunicação em causa, nomeadamente através de contacto pessoal, a menos que essa particular forma seja incompatível com a lei do Estado-Membro requerido (vide artigos 7.º n.º 1, 11.º n.º 2 alíneas a) e b) e 16.º do Regulamento (CE) n.º 1393/2007).
No sentido da admissibilidade de notificação judicial avulsa requerida perante tribunal português e concretizada noutro país europeu por aplicação do Regulamento n.º 1348/2000 pronunciou-se também José Fernando de Salazar Casanova, em “Regulamento (CE) N.° 1348/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000. - Princípios e Aproximação à Realidade Judiciária”, na Revista da Ordem dos Advogados, ano 62, volume III, Dezembro de 2002. Para este autor, “o facto de o acto pretendido ser prévio ou de alguma forma independente da efectiva instauração de um procedimento (v.g. notificação judicial avulsa requerida pelo senhorio visando a denúncia de contrato de arrendamento de duração limitada: artigo 101.° do R.A.U.) não o exclui do âmbito do Regulamento sob pena de privação de direitos que só se podem fazer valer nas acções competentes (o despejo do local arrendado para o qual a certidão de notificação judicial avulsa constitui título executivo: artigo 101.° do R.A.U.). É claro que se suscita, neste domínio, um problema prévio que é o de saber em que termos um interessado pode pedir, no Estado em que se proponha instaurar a acção, a notificação judicial avulsa de quem deixou de residir nesse Estado (ver artigo 84.° do CPC [de 1961]) mas não parece que se lhe deva impor a realização de um acto no território de outro Estado-Membro que pode mesmo não prever para o caso esta figura processual.” Acrescentando, em nota (nota 4) que “Justificando-se a notificação judicial avulsa à luz do direito nacional e permitindo-a o Regulamento, o reconhecimento da competência dos tribunais portugueses para a realizar implica que, em sede de competência territorial, se recorram aos critérios supletivos do artigo 85.° do CPC” (ou seja, art.º 80.º n.º 3 do atual do CPC: “se o réu tiver o domicílio e a residência em país estrangeiro, é demandado no tribunal do lugar em que se encontrar; não se encontrando em território português, é demandado no do domicílio do autor, e, quando este domicílio for em país estrangeiro, é competente para a causa o tribunal de Lisboa.”)
Igual entendimento (aplicabilidade do atual Regulamento (CE) à notificação judicial avulsa, requerida em Portugal, tendo como requerido cidadão residente em Estado-Membro) se propugnou no citado acórdão desta Relação, de 10.11.2016.
Iguais preocupações, razão de ser e possibilidades, se encontram na Convenção de Haia, Relativa à Citação e à Notificação no Estrangeiro de Actos Judiciais e Extrajudiciais em Matérias Civil e Comercial, de 15 de novembro de 1965, ratificada por Portugal e que também é aplicável na Suíça (onde reside um dos requeridos) . E, relativamente aos requeridos residentes no Brasil (país que não ratificou a Convenção de Haia), poderá expedir-se carta rogatória ou ofício precatório dirigido a cônsul português, conforme for adequado (artigos 172.º n.º 1, 177.º, 239.º n.º 3 do CPC).
Note-se que a competência internacional do tribunal português para a apresentação do requerimento de notificação judicial avulsa justifica-se pelo facto de diversos requerentes e requeridos residirem em Portugal e de os factos de que alegadamente derivam os direitos a que se arrogam os requerentes na sua comunicação terem, pelo menos parcialmente, conexão com Portugal (cfr. art.º 62.º alíneas a) e b) do CPC)."
[MTS]