Embargos à insolvência;
caso julgado
1. O sumário de RP 15/12/2016 (80954/14.6YIPRT.P1) é o seguinte:
I - Ao contrário do que sucede no novo Código de Processo Civil para os embargos à execução (art. 732.º, n.º 3) e para os embargos de terceiro (art. 349.º) não existe norma legal que estabeleça que a decisão de mérito dos embargos à insolvência constitua caso julgado quanto à existência do crédito do credor requerente da insolvência do devedor.
II - A tramitação, instrução e decisão dos embargos à insolvência diferem suficientemente da do processo comum declarativo para tornar duvidoso que a decisão de mérito possua nesse aspecto a segurança indispensável à formação do caso julgado com efeitos exteriores ao processo de insolvência.
III - Para a verificação da excepção da autoridade do caso julgado é necessário que na nova acção os mesmos sujeitos (do direito) pretendam discutir de novo o mesmo facto jurídico (a mesma causa de pedir) para o mesmo efeito jurídico (a efectivação de um direito).
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"A ré defende que entre os embargos à insolvência e a presente acção ocorre a excepção do caso julgado, ou seja, que esta acção repete o que já foi discutido e decido nos embargos.
Na decisão recorrida entendeu-se que a excepção em causa não se verifica apesar da «decisão proferida …. embargos ao processo de insolvência que a aqui autora moveu contra a aqui ré, em cuja fundamentação o tribunal considerou posta em dúvida a existência do crédito aí reclamado pela ora autora por se entender que as caravanas fornecidas padeciam de vício que impedia o fim a que se destinavam e que esses vícios não foram corrigidos pela ora autora quando lhe foram denunciados pela ré, bem como que a ora ré ao não proceder ao pagamento agira ao abrigo de excepção de não cumprimento do contrato».
Esse entendimento foi fundamentado nos seguintes termos: «Por um lado desconhece-se se tal decisão transitou em julgado. Por outro lado, mesmo que tal decisão constitua a decisão final desse incidente de embargos não produz caso julgado que se imponha a este processo, sendo que são distintos os pedidos e causa de pedir. Tão pouco o vício das caravanas vendidas que aí se considerou provado e as ilações de direito que se retiraram desse facto se impõem a este tribunal, seja porque se desconhece que prova foi aí produzida que tivesse levado a diferente decisão desse tribunal, seja porque a aceitação da existência desse vício que levou à não prova da existência do crédito da aqui autora, com a consequente revogação da declaração de insolvência da ré, não impede a autora de em nova acção fazer prova desse crédito, nem constituiu pressuposto da presente acção.» [...]
Como sabemos, a excepção do caso julgado tem como fundamento teleológico impedir que os tribunais se vejam obrigados a decidir novamente a mesma questão. Esse objectivo tem como preocupações subjacentes assegurar a paz jurídica dos cidadãos, que passam a poder confiar que o trânsito em julgado da decisão sobre um determinado conflito o resolve em definitivo e não terão a necessidade de demandarem ou se defenderem de novo a propósito do mesmo conflito jurídico, evitar a prolação de decisões divergentes e o risco que isso representa para a imagem da justiça e para a clareza dos comandos jurisdicionais a que se deve obediência, e, finalmente, obstar ao desperdício de meios que a repetição de procedimentos jurisdicionais para decidir a mesma questão implicaria desnecessariamente.
Tratando-se de um bloqueio ao direito de acesso aos tribunais e de um impedimento à suscitação de solução para uma controvérsia jurídica que as partes podem manter latente e cujos pontos de vista podem divergir ou evoluir, esta excepção tem naturalmente contornos rigorosos que se reconduzem ao requisito da chamada tripla identidade: para que estejamos perante a mesma questão jurídica é necessário que haja identidade de partes, de causas de pedir e de pedidos.
Este requisito encontra-se obviamente moldado para a situação comum, que é a de a excepção se colocar entre uma acção declarativa já decidida e uma acção declarativa que se pretende instaurar, ou seja, os elementos que devem ser idênticos são elementos característicos das acções declarativas, nas quais se formula a pretensão de uma concreta tutela jurisdicional correspondente à forma como se pretende fazer valer um determinado direito (declarando a sua existência, condenando o réu na prestação que corresponde ao direito ou introduzindo na ordem jurídica a mudança que o direito implica), ancorando esse direito num fundamento específico traduzido em factos jurídicos concretos que delimitam o objecto da decisão do tribunal.
No caso o conflito existente não se coloca entre duas acções, coloca-se entre os embargos a uma insolvência e a presente acção. O processo especial de insolvência não é um processo cujo objecto seja o exercício de um direito do autor, nem tão pouco o exercício de um direito do autor em que o demandado tenha a posição de devedor. O objecto da acção de insolvência é somente a situação económico-financeira do devedor e a qualificação da mesma como sendo uma situação de insolvência, para que se produzam os efeitos jurídicos próprios do reconhecimento judicial desse estado. Quando o autor da acção de insolvência é um credor, a afirmação e justificação do seu crédito serve apenas para legitimar a sua iniciativa processual, para lhe permitir requerer a declaração de insolvência do devedor.
O processo de insolvência está configurado como uma acção especial, dotada, em simultâneo, de uma fase declarativa que se apresenta como acção constitutiva – a fase em que se declara o estado de insolvência – e de uma fase de execução coerciva universal – na fase em que se apreendem os bens, se verificam os créditos, se liquida a massa e se dá pagamento aos credores -.
No processo de insolvência, uma vez declarada a insolvência os credores são chamados a reclamar o seu crédito no apenso de reclamação e verificação de créditos. As questões relativas à existência do crédito, ao seu montante e à sua natureza comum ou privilegiada, serão discutidas e decididas nesse apenso previsto especificamente para essa finalidade. Não são discutidas nem decididas no processo principal de insolvência, ainda que o afastamento da existência do crédito possa servir de fundamento de oposição do devedor à declaração de insolvência requerida por um credor, na medida em que, como aliás, se afirmou na sentença de embargos à insolvência mencionada, se se vier a concluir que o requerente não é de facto credor soçobra a sua legitimidade para requerer a insolvência de quem não é, afinal, seu devedor.
Por esse motivo, quer-nos parecer que a excepção do caso julgado no conflito entre os embargos à insolvência e uma acção declarativa tem características análogas às do conflito entre a oposição à execução e uma acção declarativa.
A oposição à execução é um incidente declarativo enxertado numa acção executiva. A acção executiva não visa discutir e decidir o direito, mas apenas obter a execução coerciva de uma prestação que se encontra titulada num documento a que a lei, em função das respectivas qualidades e características, conferiu a faculdade do acesso à acção executiva. Também a oposição à execução tem como finalidade exclusiva obstar à execução coerciva, através da dedução de fundamentos de natureza processual – relativos à instância executiva – ou substantiva – relativos ao direito propriamente dito – que tenham a virtualidade de impedir, modificar ou extinguir a instância processual (executiva) ou o direito (em execução). Trata-se pois de uma situação muito próxima da insolvência e dos embargos à insolvência.
O antigo Código de Processo Civil não continha qualquer norma relativa ao eventual caso julgado da decisão proferida nos embargos de executado/oposição à execução, razão pela qual a possibilidade de a decisão da oposição à execução formar caso julgado material era muito controversa na doutrina como na jurisprudência [...].
O n.º 3 do artigo 732.º do novo Código de Processo Civil consagra que, para além dos efeitos sobre a instância executiva, a decisão de mérito proferida nos embargos à execução constitui, nos termos gerais, caso julgado quanto à existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda. Também em sede de embargos de terceiro o artigo 349.º do novo Código de Processo Civil prescreve que «a sentença de mérito proferida nos embargos constitui, nos termos gerais, caso julgado quanto à existência e titularidade do direito invocado pelo embargante ou por algum dos embargados, nos termos do n.º 2 do artigo anterior».
No caso, note-se, quer a acção de insolvência quer os embargos à insolvência foram instaurados antes da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil e apenas a sentença proferida nestes foi proferida já depois da sua entrada em vigor.
A nosso ver, tal como entendíamos antes do novo Código de Processo Civil em relação aos embargos à execução, a decisão da oposição à insolvência constitui caso julgado formal no tocante ao processo de insolvência, ou seja, a repercussão dessa decisão sobre a instância insolvencial é irreversível no âmbito do processo de insolvência a que respeita a oposição.
Por outro lado, é igualmente seguro que a dedução da oposição à insolvência com um determinado objecto ou configuração faz precludir a possibilidade de invocar ulteriormente, no próprio processo de insolvência ou para efeitos intraprocessuais da insolvência pendente, quaisquer outros possíveis fundamentos de oposição que não hajam sido suscitados nos articulados da oposição apresentada. Isso é assim, desde logo, porque o decurso do prazo para a dedução da oposição extingue o direito de praticar o acto processual correspondente, deixando campo aberto para o prosseguimento da insolvência até final, uma vez que não existe outro meio processual para o impedir.
A questão só adquire relevo fora do âmbito do processo de insolvência, quando o credor que viu o seu requerimento de insolvência improceder em resultado da oposição à insolvência apresentada pelo devedor, pretende instaurar uma acção declarativa comum para obter o cumprimento do direito de crédito no qual alicerçou a legitimidade para requerer a insolvência que improcedeu. Nessa hipótese coloca-se a questão de saber se o credor está vinculado pelos efeitos do caso julgado formado pela sentença da oposição à insolvência se e na parte em que a mesma tenha tido por fundamento (exclusivo ou não) a existência do direito de crédito. Estamos perante a questão da chamada autoridade do caso julgado.
Tendo o tribunal sido obrigado a decidir, no âmbito de uma instância declarativa (embargos), um determinado fundamento de mérito que levou ao afastamento da insolvência em consequência do reconhecimento que o direito de crédito do requerente não se constituiu, estava extinto ou era impedido por alguma excepção, não faz sentido que entre os mesmos sujeitos (do direito) e para o mesmo efeito jurídico (a efectivação de um direito) o mesmo facto jurídico (a mesma causa de pedir) possa ser apreciado de novo.
Daí que se deva entender que em abstracto a decisão de mérito proferida nos embargos à insolvência pode formar caso julgado quanto à concreta causa de pedir que constituiu o fundamento dos embargos, impedindo que o mesmo fundamento possa ser posto em causa noutra acção. A autoridade do caso julgado apenas permitirá essa repetição quando a acção posterior à insolvência possuir uma nova e distinta causa de pedir. Nessa medida, a decisão sobre a verificação no caso concreto da autoridade do caso julgado depende afinal da comparação entre o fundamento invocado nos embargos à insolvência e a causa de pedir da presente acção.
Aqui chegados, somos levados a equacionar o contexto processual do julgamento dos embargos à insolvência em ordem a verificar se o mesmo consente esta conclusão sobre o funcionamento do caso julgado.
Como foi referido, o actual Código de Processo Civil prevê duas situações de formação de caso julgado fora do âmbito específico da acção declarativa, mais propriamente nos embargos de terceiro e nos embargos à execução (artigos 349.º e 732.º). Sintomaticamente, as instâncias declarativas onde as decisões a proferir podem adquirir essa força seguem, em ambos os casos, a forma do processo comum. Isso mesmo resulta para os embargos de terceiro do disposto no n.º 1 do artigo 348.º (os embargos seguem «os termos do processo comum») e para os embargos à execução do disposto no n.º 2 do artigo 732.º (os embargos seguem «os termos do processo comum declarativo»).
A opção legislativa parece fundar-se, pois, no entendimento de que sendo a questão decidida numa instância declarativa processada, instruída e decidida nos mesmos termos em que o seria se a questão tivesse sido colocada de forma autónoma, a título principal, as partes tiveram a oportunidade de exercer o contraditório e a possibilidade de produzir meios de prova para influenciar a decisão com a mesma materialidade e amplitude de que disporiam na forma processual mais solene e complexa, pelo que se deve reconhecer à decisão proferida uma segurança que justificam atribuir-lhe valor para além da instância onde foi proferida.
Reside aí uma diferença substancial em relação aos embargos à insolvência. O processamento e o julgamento dos embargos encontram-se definidos no artigo 41.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas em termos muito distantes do processo comum declarativo, que se justificam pela especial celeridade que o legislador quis impor ao processo de insolvência, pela faculdade de intervenção que nele é consentida a todos os credores e cujas intervenções são sempre processadas e decididas unitariamente num único apenso e, finalmente, pelos poderes inquisitórios atribuídos ao juiz para fundamentar a sua decisão mesmo em factos que as partes não tenham alegado.
Segundo o referido preceito, a petição de embargos é autuada num único apenso ainda que os embargos sejam opostos por várias entidades, independentemente da sua qualidade. Os embargos podem ser apresentados, em simultâneo, pelo devedor em situação de revelia absoluta que não tenha sido pessoalmente citado e por um credor que como tal se legitime, com fundamentos distintos, e não obstante serão tramitados e decididos num único apenso. Não havendo motivo para indeferimento liminar, procede-se à notificação do administrador da insolvência e da parte contrária para contestarem, querendo, no prazo de cinco dias. Daqui resulta que também do lado passivo, existe uma pluralidade de partes e de possíveis fundamentos.
Nas petições e nas contestações, as partes devem oferecer todos os meios de prova de que disponham, ficando obrigadas a apresentar as testemunhas arroladas, cujo número não pode exceder os limites previstos no artigo 789.º do antigo Código de Processo Civil [...]. No que concerne às provas que se devam realizar antecipadamente a instrução do processo tem de ser feita no prazo máximo de 10 dias, o que inviabiliza desde logo a realização de prova pericial ou outro meio de prova que no caso exija um período de tempo superior a esse.
Esta configuração dos embargos à insolvência e da respectiva tramitação afasta a respectiva instância das características que são próprias da instância principal comum, reduzindo o espaço de intervenção das partes (quanto aos prazos, quanto aos articulados e quanto aos meios de prova) e aumentando o espaço de intervenção do juiz (permitindo-lhe decidir com base em factos que não foram sequer alegados). Essa situação, cremos, não pode deixar de conduzir à atenuação da possibilidade de responsabilizar as partes pelas consequências do decidido nos embargos à insolvência fora dos limites do processo de insolvência, na medida em que a celeridade, universalidade e simplicidade da tramitação coloca em risco o exercício pleno e exaustivo dos direitos de acção e de defesa.
Por outro lado, como já assinalado, no processo de insolvência e nos respectivos embargos a existência do crédito do requerente da insolvência constitui um pressuposto da legitimidade (processual) do credor para requerer a insolvência, não radicando nesse elemento a discussão sobre o estado de insolvência que constitui verdadeiramente o objecto do processo [...]. A demonstração da inexistência do crédito mais do que conduzir à exclusão de qualquer dos requisitos da conformação legal do estado de insolvência, conduz sim ao afastamento do pressuposto da legitimidade processual que se havia afirmado seguindo a regra do processo civil de que para esse efeito se deve atender somente à configuração que o próprio autor dá à acção. Nessa perspectiva, pese embora esta discussão pressuponha a demonstração de factos e a respectiva qualificação jurídica, a decisão sobre a existência do crédito no processo de insolvência (estamos a falar, repete-se, da fase declarativa do processo de insolvência) está mais próxima da decisão relativa aos pressupostos processuais, a qual apenas produz caso julgado formal, cujos efeitos se restringem ao processo onde foi proferida, do que da decisão relativa ao mérito da pretensão, que essa sim pode formar caso julgado material.
Por estas razões, tendo em conta que não existe norma legal que estabeleça que a decisão proferida nos embargos à insolvência constitua caso julgado com efeitos exteriores ao processo de insolvência quanto à existência do crédito do credor requerente que ali haja sido apreciada e que, por isso mesmo, a decisão sobre o caso julgado tem de ser tomada ponderando todas as circunstâncias assinaladas, entendemos que a referida decisão não forma caso julgado com esse alcance e, como tal, que a mesma não tem de ser acatada no presente processo cujo objecto específico é directamente o exercício do direito de crédito do credor requerente da insolvência."
MTS