"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



26/04/2017

Jurisprudência (606)


Título executivo;
documento autenticado



1. O sumário de RP 23/1/2017 (4871/14.5T8LOU-A.P1) é o seguinte: 

I - Na ação executiva a causa de pedir não se confunde com o título executivo, porque aquela é o facto jurídico de que resulta a pretensão do exequente e que imana do título, por isso, a causa de pedir é o facto jurídico nuclear constitutivo da obrigação exequenda, ainda que com raiz ou reflexo no título.
 
II - Para ser conferida exequibilidade extrínseca a um documento particular constitutivo ou recognitivo de uma obrigação, torna-se mister a sua autenticação por entidade dotada de competência para esse efeito, visando, desse modo, assegurar a compreensão do conteúdo do mesmo pelas partes.
 
III - A validade dessa autenticação implica que seja efetuado o registo informático do respetivo termo dentro do prazo estabelecido no art. 4º da Portaria nº 657-B/2006, de 29 de junho, isto é, que o mesmo seja realizado no momento da prática do ato ou nas 48 horas seguintes se, em virtude de dificuldades de caráter técnico, não for possível aceder ao sistema nessa oportunidade temporal.
 
IV – A inobservância do referido condicionalismo temporal, afetando a validade do termo de autenticação, implica que o documento particular não chega sequer a adquirir a natureza de documento particular autenticado, não podendo, nessa medida, servir de base à ação executiva, por não consubstanciar título passível de ser subsumido à fattispecie da al. b) do nº 1 do art. 703º do Cód. Processo Civil.
 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte: 

"[...] presentemente [...] o documento particular somente valerá como título executivo quando importe a constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação (isto é, quando nele se formaliza a constituição de uma obrigação ou então o devedor nele reconhece uma dívida pré-existente) e seja devidamente autenticado por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal.

Portanto, para se conferir exequibilidade a um documento particular constitutivo ou recognitivo de uma obrigação, torna-se mister a sua autenticação, visando, desse modo, assegurar a compreensão do conteúdo do mesmo pelas partes, não sendo, pois, suficiente o simples reconhecimento de assinaturas.

Em consonância com o que se dispõe nos arts. 35º, nº 3, 150º e 151º, todos do Cód. do Notariado, esse procedimento de autenticação do documento particular consiste, essencialmente, na confirmação do seu teor perante entidade dotada de fé pública, declarando as partes estarem perfeitamente inteiradas do seu conteúdo e que este traduz a sua vontade [...], após o que aquela entidade, mediante a aposição do termo de autenticação [...], atesta que os seus autores confirmaram, perante ela, que o respetivo conteúdo correspondia à sua vontade. Na sequência desse procedimento, em conformidade com o disposto no art. 377º do Cód. Civil, o documento passa, então, a ter “a força probatória dos documentos autênticos, ainda que não os substituam quando a lei exija documento desta natureza para a validade do ato” [...].

A competência para essa autenticação foi durante largo tempo da competência exclusiva dos notários (cfr. art. 363º, nº 3 do Cód. Civil e art. 4º, nº 2 al. c) do Cód. do Notariado), competência essa que, paulatinamente, foi sendo atribuída a outras entidades, mormente, no que ao caso releva, aos advogados.

Assim, na sequência da publicação do DL nº 76-A/2006, de 29.03 (que adotou medidas de simplificação e eliminação de atos e procedimentos notariais e registrais), os advogados, para além de outras competências que anteriormente se encontravam exclusivamente reservados aos notários, passaram a poder “autenticar documentos particulares (…) nos termos previstos na lei notarial” (art. 38º, nº 1), sendo que as autenticações por eles efetuadas “conferem ao documento a mesma força probatória que teria se tais atos tivessem sido realizados com intervenção notarial” (art. 38º, nº 2).

No entanto, por mor do disposto no nº 3 do citado art. 38º, o ato de autenticação apenas pode ser validamente praticado por advogado “mediante registo em sistema informático”, o qual veio a ser implementado pela Portaria nº 657-B/2006, de 29 de junho.

Por conseguinte, como deflui do descrito quadro normativo, o procedimento tendente à autenticação de um documento particular por advogado pressupõe três momentos ou etapas. Assim, num primeiro momento esse documento é outorgado e assinado pelas respetivas partes, sendo que o advogado - enquanto entidade autenticadora - não outorga nem subscreve o documento. Poderá, quando muito, não como entidade autenticadora mas enquanto profissional habilitado e no exercício da sua função de aconselhamento técnico-jurídico, auxiliar as partes na redação do documento ou redigir ele próprio o documento que depois será assumido e assinado apenas pelas partes.

Num segundo momento, o documento particular assinado pelas partes é apresentado ao advogado para autenticação, sendo que no exercício dessa função exige-se, como se notou, que as partes confirmem perante ele o conteúdo do documento particular, devendo subsequentemente o termo de autenticação ser lavrado com observância dos requisitos estabelecidos nos citados arts. 150º e 151º do Cód. do Notariado, contendo, nomeadamente, a declaração das partes de que procederam à leitura do documento ou estão inteiradas do seu conteúdo e que o mesmo exprime a vontade nele declarada.

Finalmente, num terceiro momento, deve ser efetuado o registo informático em conformidade com o que se mostra estabelecido na citada Portaria nº 657-B/2006, de 29.06, sendo que no concernente à oportunidade temporal da sua execução rege o seu art. 4º, que no nº 1 estipula que “o registo informático é efetuado no momento da prática do ato, devendo o sistema informático gerar um número de identificação que é aposto no documento que formaliza o ato”, acrescentando o nº 2 do mesmo normativo que “se, em virtude de dificuldades de caráter técnico, não for possível aceder ao sistema no momento da realização do ato, esse facto deve ser expressamente referido no documento que o formaliza, devendo o registo informático ser realizado nas quarenta e oito horas seguintes”.


Exposto, deste modo (ainda que em termos necessariamente sumários), o regime legalmente instituído para a autenticação de documentos particulares, cumpre agora avançar para a resolução da questão central que consubstancia o objeto do presente recurso.

Como se viu, na presença da “declaração de confissão de dívida e acordo de pagamento” que os exequentes utilizaram como título para desencadear a ação executiva, o tribunal de 1ª instância considerou que o mesmo não pode valer como título executivo, porque a sua autenticação não obedeceu aos requisitos legalmente exigidos, dado que «a circunstância de não ter sido feita referência expressa à impossibilidade de aceder ao sistema no momento da realização do ato e a circunstância de o registo informático não ter sido realizado nas quarenta e oito horas seguintes ao ato inquinam a validade da autenticação».

Como emerge das alegações recursórias que apresentaram, os apelantes não põem em crise que, efetivamente, no documento que suporta a execução que instauraram não foi feita a aludida menção e bem assim que o registo informático foi realizado mais de 48 horas depois da prática do ato.

Advogam, no entanto, que essa realidade não contende com a validade da autenticação, constituindo antes mera irregularidade que não afeta a força executória do documento em causa.

Não podemos, contudo, concordar com esse posicionamento, porquanto o descrito regime normativo aponta decisivamente no sentido de que a autenticação do documento particular somente será válida se for efetuada no prazo e com observância dos demais requisitos legalmente fixados.

Na verdade, o nº 3 do art. 38º do DL nº 76-A/2006, de 29 de março expressamente condiciona a validade do ato de autenticação de documento particular ao registo em sistema informático nos termos definidos na citada Portaria nº 657-B/2006, a qual, no seu art. 1º, reitera que a validade desse ato depende da efetivação do registo nas condições definidas nos arts. 3º (que estabelece os concretos elementos ou dados recolhidos que devem ser registados no sistema informático) e 4º (que concretiza o momento em que deve ser executado o registo nesse sistema).

Ora, a propósito da oportunidade temporal em que deve ser executado o registo na plataforma informática, a lei é clara no sentido de estabelecer que esse registo tem obrigatoriamente de ser efetuado “no momento da prática do ato”, ressalvando apenas a situação (excecional) de nesse momento ocorrer dificuldade de caráter técnico de acesso ao sistema, caso em que o ato é válido mesmo sem o registo, contanto que esse facto seja expressamente referido no documento que o formaliza e o registo seja efetuado nas 48 horas seguintes.
 
Perscrutando as razões que subjazem à imposição do imediato registo informático do termo de autenticação, afigura-se-nos que a mencionada determinação legal se ancora em razões de segurança e certeza jurídicas sobre a exata definição da data em que o documento particular adquiriu a natureza de documento particular autenticado, procurando, assim, salvaguardar a fé pública associada a este tipo de documento (que, como se referiu, passa a ter a força probatória do documento autêntico).

Como assim, dada a natureza cogente dos arts. 38º, nº 3 do DL nº 76-A/2006 e 1º e 4º da Portaria nº 657-B/2006, esse registo informático, ao invés do entendimento preconizado pelos apelantes, assume, na economia de tais diplomas, natureza de formalidade essencial (que não de mera irregularidade), cuja inobservância contende, pois, com a validade da autenticação realizada.

Daí que, sendo a autenticação efetuada fora do condicionalismo temporal definido no art. 4º da citada Portaria fica afetada a sua validade, pelo que o documento particular não chega sequer a adquirir a natureza de documento particular autenticado, não podendo, nessa medida, servir de base à ação executiva por não consubstanciar título passível de ser subsumido à fattispecie da al. b) do nº 1 do art. 703º do Cód. Processo Civil [...].

Consequentemente, considerando que, no caso sub judicio, no documento não foi feita expressa referência à impossibilidade de aceder à plataforma informática no momento da realização do registo e considerando outrossim que esse registo não foi efetuado nas 48 horas subsequentes à prática do ato, na decorrência das considerações expendidas, tal implica que os documentos que foram dados à execução carecem de exequibilidade extrínseca que legitime e suporte a démarche processual executiva."

[MTS[