Excepção de caso julgado; direito à defesa:
acórdãos de uniformização de jurisprudência; valor
I - Não será de dar como verificada a excepção de caso julgado, quando a causa não se repita na tríplice identidade exigida pelo artigo 581/1 CPC: quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
II - Não se poderá falar de autoridade de caso julgado de decisão interlocutória, quando esta decisão aponte, formalmente, no sentido do funcionamento da presunção do registo a favor da R., mas depois, acabe por incorporar nos temas da prova, matéria que, ao invés, prenuncia a carga do ónus de prova sobre a mesma R..
III - Não é de considerar violado o princípio da defesa quando os autos mostrem que a R. apresentou requerimentos, juntou documentos, arrolou e ouviu testemunhas e foi ouvida em declarações de parte e interveio em julgamento, através do seu ilustre mandatário, sobre a matéria dos temas de prova, cujo ónus lhe cabia, sem quebra do mesmo princípio sobre a restante matéria discutida.
IV - No Ac. do STJ para Uniformização de Jurisprudência nº 1/2008, de 04.12.2007, fixou-se jurisprudência no sentido de que, no âmbito da acção de impugnação de escritura de justificação notarial, prevista pelo artigo 116º/1 do CRP e 89 e 101 do CN, tendo sido os RR. que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre o imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7º de CRP.
V - Não obstante a possibilidade de discussão legitimada em novos fundamentos e/ou argumentos não ponderados, os Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, apesar de não terem força obrigatória geral, têm “um valor reforçado” devido a um conjunto de circunstâncias, entre as quais se destacam: (i) serem proferidos pelo Pleno das secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça;(ii) o seu não acatamento pelos Tribunais de Primeira Instância e da Relação constituir motivo para admissibilidade especial de recurso, nos termos do artigo 629, nº 2, al.c) do CPC.
2. Na fundamentação do acórdão pode ler-se o seguinte:
"[...] a decisão interlocutória foi proferida em 13 de Janeiro de 2014 [...], altura em que já se dispunha de Jurisprudência Unificada no sentido que: “Na acção de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos artigos 116.º, n.º1, do Código do Registo Predial e 89.º e 101.º do Código do Notariado, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7.º do Código do Registo Predial (Ac. de Uniformização de Jurisprudência nº 1/2008), a qual, aliás, acabou por ser seguida, aquando do conhecimento da questão prévia, na decisão recorrida.
Sobre este ponto, diz o Supremo Tribunal de Justiça:
“1.-Os Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, conquanto não tenham força obrigatória geral […] têm um valor reforçado que deriva não apenas do facto de emanarem do Pleno das secções Cíveis do Supremo tribunal de Justiça, como ainda do seu não acatamento pelos Tribunais de Primeira Instância e Relação constituir motivo para admissibilidade especial de recurso, nos termos do artigo 629, nº 2, al.c) do CPC.
2.-Esse valor reforçado impõe-se ao próprio Supremo Tribunal de Justiça, sendo projectado, além do mais, pelo dever que recai sobre o relator ou os adjuntos de proporem ao presidente o julgamento ampliado de revista sempre que se projecte o vencimento de solução diversa da uniformizada” [Ac. STJ de 11.05.2016, relatado pelo Excelentíssimo Conselheiro Abrantes Geraldes].
Assim sendo e em ordem aos indicados valores, a recorrente não podia razoavelmente ignorar a jurisprudência unificada sobre esta mesma questão e, ainda que dúvidas o processo pudesse suscitar, elas teriam de ser resolvidas em conformidade com a mesma jurisprudência.
Com efeito, na esteira da mesma jurisprudência, “(...) se essa postura é exigida dos Tribunais, não podem as partes, através dos respectivos mandatários judiciais, agir nos processos como se não houvesse qualquer pronúncia uniformizadora relativamente à questão suscitada, alinhando num sistema sem balizas, a pretexto de que, como refere a reclamante, os Tribunais apenas estão sujeitos à lei e que a jurisprudência não é fonte normativa.
Tal argumentário ignora que os Tribunais devem respeitar o sistema legislativo em bloco, mas que neste também se inscrevem as regras de cariz adjectivo que foram mencionadas e que necessariamente condicionam a liberdade de decisão.
Por outro lado, tal posição passa ao lado do sentido e do valor da jurisprudência, enquanto fonte mediata da lei, na medida em que, através de proposições judiciais, se alcança a necessária concretização normativa, passando do plano da mera abstracção para o da resolução dos casos concretos.
Em sentido convergente também se tem pronunciado a doutrina: “a uniformidade da jurisprudência, como valor fundamental que deve ser assegurado, encontra diversas justificações, desde logo, a “exigência de assegurar a certeza do direito, dado que a jurisprudência uniforme evita a incerteza e a variação das decisões; a garantia de igualdade dos cidadãos perante a lei, de acordo com o princípio da stare decisistípico dos ordenamentos anglo-americanos, segundo o qual casos iguais devem ser decididos de um modo igual; a necessária previsibilidade das decisões futuras, com base na qual as partes devem poder confirmar no facto de que os juízes futuros se comportarão do mesmo modo dos juízes que os antecederam. A previsibilidade pode também desempenhar uma função económica, uma vez que, se a decisão for previsível, poderá evitar-se o recurso ao juiz. Enfim, uma jurisprudência constante pode ser conhecida com mais facilidade e, deste modo, orienta de forma mais eficaz o comportamento das pessoas em sociedade” [Michelle Taruffo, “A jurisprudência entre a casuística e a uniformidade”, Revista Julgar, nº 25, págs. 19 e 20, apud Acórdão citado].
Claro está que esta orientação não é incompatível com a salvaguarda de que - mediante a verificação de novos fundamentos e ou relevantes argumentos não ponderados no Acórdão uniformizador – possam justificar o afastamento da doutrina fixada.
O que vem acabado de dizer, leva-nos à conclusão que não será, de todo, legítimo convocar-se o efeito-surpresa, por estarmos muito longe de qualquer restrição ao direito de defesa plena da R..
Pelo contrário, como se deixou descrito, a R. apresentou requerimentos e documentos, arrolou testemunhas e foi ouvida em declarações de parte, o que abundantemente demonstra a sua sem razão.
Além disso interveio nas várias sessões, representada pelo seu ilustre mandatário, sem que se colha das actas das respectivas sessões que ela tivesse tido qualquer limitação do direito de defesa em razão da decisão interlocutória a que se aludiu.
Mais, a formulação do tema de prova aponta para uma prova positiva que só a ela cabia, mas que na realidade não logrou, face ao teor do descrito sob a al. B) dos factos não provados [...].
Por fim, mas não de menor importância consta-se que, bem vistas as coisas, a R. não chega a concretizar qualquer prejuízo para a sua defesa resultante do descrito iter destes autos.
Pelo contrário, os indicados argumentos apontam para uma defesa cabal, sem qualquer fissura de relevo."
[MTS]