"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



21/04/2017

Jurisprudência (603)



Deserção da instância;
dever de advertência do tribunal



1. O sumário de RL 20/12/2016 (3422/15.9T8LSB.L1-7) é o seguinte:

I. A conduta negligente conducente à deserção da instância consubstancia-se numa omissão que não resulta de facto de terceiro (estranho à parte) ou de força maior que impeça o demandante de praticar o ato.
 
II. A decisão que declara a deserção da instância tem efeito declarativo e não constitutivo.
 
III. De modo que, após a ocorrência da deserção (inércia de seis meses e um dia) e antes de ser ela judicialmente reconhecida, os atos putativamente processuais praticados, de forma espontânea, pela parte anteriormente relapsa são potencialmente desprovidos do seu efeito jurídico processual típico, sendo inidóneos a precludir a declaração da deserção.
 
IV. Em decorrência dos princípios da gestão processual, cooperação processual e dever de prevenção emergente daqueles, deve o juiz sinalizar por despacho que a omissão da prática do ato devido para efeitos de impulso processual será, oportunamente, sancionada nos termos do Artigo 281º, nº1, do Código de Processo Civil .
 
V. A omissão de tal despacho integra nulidade que deve ser arguida pela parte sob pena de não ser, posteriormente, passível de recurso por inexistência de despacho a sancionar a nulidade.
 
VI. No intuito de aquilatar se a imposição de ónus processuais e respetivas sanções pela sua inobservância colide com o direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva, haverá que efetuar um juízo de proporcionalidade tendo em consideração três vetores essenciais: a justificação da exigência processual em causa; a maior ou menor onerosidade na sua satisfação por parte do interessado; e a gravidade das consequências ligadas ao incumprimento dos ónus.
2. Na fundamentação do acórdão pode ler-se o seguinte:

"A questão em causa nos autos enquadra-se num conjunto vasto de casos, que o Tribunal já foi chamado a apreciar, em que é imposto um ónus processual às partes e em que a lei prevê uma determinada cominação ou consequência processual para o incumprimento de tal ónus.

Ora, a respeito das exigências decorrentes da garantia constitucional de acesso ao direito e à justiça, quando estejam em causa normas que impõem ónus processuais, o Tribunal tem afirmado que tal garantia não afasta a liberdade de conformação do legislador na concreta estruturação do processo, não sendo incompatível com a imposição de ónus processuais às partes (cf., neste sentido, entre outros, por exemplo, os Acórdãos n.ºs 122/02 e 46/05).

No entanto, com também tem sido salientado pelo Tribunal, a ampla liberdade do legislador no que respeita ao estabelecimento de ónus que incidem sobre as partes e à definição das cominações e preclusões que resultam do seu incumprimento está sujeita a limites, uma vez que os regimes processuais em causa não podem revelar-se funcionalmente inadequados aos fins do processo (isto é, traduzindo-se numa exigência puramente formal e arbitrária, destituída de qualquer sentido útil e razoável) e têm de se mostrar conformes com o princípio da proporcionalidade. Ou seja, os ónus impostos não poderão, por força dos artigos 13.º e 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição, impossibilitar ou dificultar, de forma arbitrária ou excessiva, a atuação procedimental das partes, nem as cominações ou preclusões previstas, por irremediáveis ou insupríveis, poderão revelar-se totalmente desproporcionadas face à gravidade e relevância, para os fins do processo, da falta cometida, colocando assim em causa o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva (cf., sobre esta matéria, Carlos Lopes do Rego, “Os princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos ónus e cominações e o regime da citação em processo civil”, in «Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa», Coimbra Editora, 2003, pp. 839 e ss. e, entre outros, os Acórdãos n.ºs 564/98, 403/00, 122/02, 403/02, 556/2008, 350/2012, 620/13, 760/13 e 639/14 do Tribunal Constitucional).

O Tribunal Constitucional, procurando densificar, na sua jurisprudência, o juízo de proporcionalidade a ter em conta quando esteja em questão a imposição de ónus às partes, tem reconduzido tal juízo à consideração de três vetores essenciais:

- a justificação da exigência processual em causa;

- a maior ou menor onerosidade na sua satisfação por parte do interessado;

- e a gravidade das consequências ligadas ao incumprimento dos ónus (cf., neste sentido, os Acórdãos n.ºs 197/07, 277/07 e 332/07).»

Ora, o dever de impulsionar o processo, no que tange à habilitação de herdeiros e citação de Réus residentes no estrangeiro, constitui consequência direta do princípio do dispositivo, segundo o qual o processo se encontra na disponibilidade das partes, tendo estas a liberdade e a responsabilidade de definir o “se” e o “como” da tutela dos seus próprios interesses – cf. Teixeira de Sousa, Introdução ao Processo Civil, pp. 58-59. A este dever de diligência das partes, acresce mesmo a circunstância de a parte poder e dever indagar de motu proprio sobre o paradeiro dos Réus e sobre a existência de herdeiros de uma parte falecida, assistindo-lhe ainda o direito de – simplesmente – desistir do pedido quanto a tais Réus. Em virtude de relações prévias à propositura da ação, as partes normalmente têm outras fontes de informação sobre o que ocorreu, entretanto, com o paradeiro da contraparte, cabendo-lhe carrear tal informação para o processo ou requerer a intervenção do tribunal para suprir o défice de informação (cf. Artigos 7º, nº4, 417º, 418º, 432º do Código de Processo Civil).

A satisfação de tal ónus não é onerosa para a Autora porquanto, consoante se acaba de ver, a Autora podia solicitar a intervenção do tribunal para demover obstáculos ou dificuldades na obtenção de informações tendo em vista a habilitação ou a citação. Em última instância, a habilitação pode ser instaurada contra desconhecidos e a citação pode ser edital – cf. Artigos 355º, nº1 e 240º, nº1, do Código de Processo Civil.

Finalmente, a sanção para o incumprimento do ónus não é desproporcionalmente gravosa porquanto a Autora pode repropor a ação contra os réus uma vez que a deserção da instância não forma caso julgado material (Artigos 620º, nº1 e 285º, nº1, do Código de Processo Civil), ou seja, o efeito é transitório e não necessariamente definitivo.

Infere-se do exposto que não ocorrem os pressupostos necessários para que a sanção correspondente à inobservância do ónus processual integra uma ofensa ao princípio constitucional de acesso à justiça."

[MTS]