Prova documental; junção de documentos;
taxa sancionatória excepcional
I. O art.º 423º do CPC regula tão só e apenas o direito que assiste às partes de fazerem juntar ao processo documentos, independentemente da sua pertinência, da sua relevância e da apreciação do seu valor probatório;
II. Ele não invalida que a junção dos mesmos documentos possa ser ordenada pelo juiz ao abrigo dos poderes inquisitoriais previsto no art.º 411º do CPC;
III. É, aliás, essa possibilidade que afasta eventuais objecções de inconstitucionalidade, por violação da garantia do processo equitativo (fair trial), da norma do nº 3 do art.º 423º do CPC;
IV. As circunstâncias que tornam admissível a apresentação de documentos depois dos 20 dias que antecedem a audiência final têm de ser alegadas e provadas pela parte que pretende a junção do documento;
V. A impossibilidade da prévia apresentação haverá de ser apreciada segundo critérios objectivos e de acordo com padrões de normal diligência;
VI. A necessidade de apresentação deve surgir de uma circunstância posterior, ou seja, de uma circunstância que ocorra depois do vigésimo dia anterior à audiência final;
VII. O grau dessa necessidade não tem de ser significativo, bastando que a apresentação do documento se revele útil como meio de prova;
VIII. A ocorrência posterior deve ser relacionada com a dinâmica do desenvolvimento do próprio processo, designadamente tendo em vista a dialéctica que se desenvolve durante o processo de produção de prova no julgamento da causa, e consistirá, na generalidade dos casos, na revelação de factos instrumentais, complementares ou concretizadores;
IX. É passível de taxa sancionatória excepcional a conduta do recorrente que imputa à mesma decisão impugnada de forma manifestamente infundada plúrimos vícios – nulidade, falta de fundamentação, inconstitucionalidade – dando azo a um desnecessário acréscimo de complexidade do recurso com o consequente desperdício dos meios alocados ao tribunal.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"O actual regime da prova através de documentos mantém a maioria dos seus traços essenciais que já vinham do anterior CPC. Assim, os documentos devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes (art.º 523º, nº 1, do CPC; art.º 423º, nº 1, do NCPC), na prestação de depoimento de parte esta pode socorrer-se de documentos para responder às perguntas (art.º 561º, nº 2, do CPC; art.º 461º, nº 2, do NCPC); igualmente as testemunhas podem apresentar documentos destinados a corroborar o seu depoimento, só sendo recebidos e juntos aos processo os documentos que a parte respectiva não pudesse ter oferecido (art.º 638º, nºs 6 e 7 do CPC; art.º 516º, nºs 6 e 7 do NCPC).
Onde os dois diplomas divergem é nas consequências da não apresentação do documento com o articulado em que são alegados os factos correspondentes.
No anterior CPC permitia-se que os documentos fossem incondicionalmente apresentados até ao encerramento da discussão em 1ª instância, embora a parte fosse sujeita a multa não provando que não tinha podido oferecer o documento com o articulado (art.º 523º, nº 2).
No NCPC os documentos só podem ser incondicionalmente apresentados até 20 dias da data da audiência final, embora o apresentante fique sujeito a multa se não provar que os não pode oferecer com o articulado; depois daquele limite temporal (20 dias antes da audiência) só são admissíveis os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento e aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior (art.º 423º, nºs 2 e 3).
Este regime mais restritivo de admissão de documentos a partir do vigésimo dia anterior à audiência final constitui, em nosso modo de ver, uma alteração legislativa contraproducente, quer porque não é apta a alcançar o resultado pretendido quer porque, fundamentalmente, contende com princípios estruturantes do processo judicial.
Visou-se com tal alteração legislativa, segundo o expresso na correspondente exposição de motivos, disciplinar a produção de prova, assegurando-se o oportuno contraditório e obviando a intuitos exclusivamente dilatórios. Ou seja, pretendia-se eliminar a possibilidade de retardar o encerramento da discussão da causa mediante a apresentação de documentos em plena audiência de julgamento, levando à necessidade de conceder prazo à parte contrária para se pronunciar sobre o documento.
Mas ao eliminar essa possibilidade (que o legislador não demonstrou que fosse um expediente dilatório de uso relevante, e que a nossa experiência não identifica como tal) o legislador veio criar maiores dificuldades e constrangimentos processuais do que aqueles que pretendeu afastar.
Em vez da sumária alegação, prova e decisão sobre a verificação do fundamento para a não aplicação da multa, tem agora o tribunal de se confrontar com as questões da contagem do prazo de ‘20 dias antes da data em que se realize a audiência final’ (da data inicialmente marcada, da data em que efectivamente se realizou, da data da 1ª sessão ou de diversas sessões se a elas houver lugar?) e com a dedução de incidentes de alegação e demonstração de que a apresentação não foi possível em momento anterior ou de que a apresentação se tornou necessária em virtude de ocorrência posterior (e como definir essa necessidade e a sua causa), e a consequente dedução do correspondente procedimento incidental [...], bem como a proliferação de recursos quanto à aplicação desse regime [...].
Por outro lado a inadmissibilidade de apresentação de prova documental depois dos 20 dias que antecedem a data da audiência final contende com a garantia do processo equitativo decorrente do art.º 20º, nº 4, da Constituição da República e 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Segundo a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a garantia de processo equitativo (‘fair trial’) coloca o tribunal sob o dever de levar a cabo um exame aprofundado dos pedidos, fundamentos e provas aduzidos pelas partes; e se se reconhece uma larga margem de apreciação aos legisladores e tribunais nacionais para estabelecerem as regras de admissibilidade e apreciação das provas, não se deixa de afirmar que as restrições à apresentação de provas não podem ser arbitrárias ou desproporcionadas, antes têm de ser consistentes com a exigência de julgamento equitativo e que sempre se deve exigir que o procedimento na sua globalidade, incluindo os aspectos relativos à admissibilidade das provas, seja equitativo [...]. E nesse sentido haverá de interpretar-se, também, o disposto no art. 20º, nº 4, da Constituição da República por força do disposto no art.º 16º, nº 2, do mesmo diploma.
A regra da não admissão de prova documental após o vigésimo dia anterior à audiência final, baseada apenas nesse limite temporal, pode, assim, levantar questões de conformidade com o princípio do processo equitativo (em particular quando o documento cuja junção se pretende seja relevante para o apuramento dos factos).
Se as primeiras apontadas situações se situam no campo das opções legislativas que, ainda que contraproducentes ou incorrectas, devem os tribunais respeitar, já o mesmo não acontece no caso da última referida situação, por estarem em causa direitos fundamentais, devendo os tribunais interpretar os normativos em causa em conformidade com os direitos fundamentais ou, mesmo, recusar a aplicação dos mesmos.
Segundo o n.º 3 do art.º 423º do CPC, após o vigésimo dia anterior à audiência final a parte só é admitida a apresentar documento cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento ou se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.
Desde logo haverá de ter em conta que o referido art.º 423º regula tão só e apenas a possibilidade de apresentação de documentos pelas partes; ou seja, o direito que assiste às partes de fazerem juntar ao processo documentos, independentemente da sua pertinência, da sua relevância e da apreciação do seu valor probatório.
Tratando-se as apontadas circunstâncias de excepções à regra da proibição de apresentação de documentos, sendo por conseguinte constitutivas da possibilidade dessa apresentação, têm as mesmas de ser alegadas e demonstradas pela parte que requer a junção do documento depois de ultrapassado aquele limite temporal.
A impossibilidade da prévia apresentação haverá de ser apreciada segundo critérios objectivos e de acordo com padrões de normal diligência, que será aquela para que aponta o art.º 487º do CCiv – a diligência de um bom de família em face das circunstâncias do caso [...].
Já a junção ter-se tornado necessária em virtude de ocorrência posterior se afigura de mais problemática definição, designadamente por ser susceptível de abranger plúrimas e diversificadas situações.
De qualquer forma essa circunstância é integrada por um elemento factual bem definido: a necessidade de apresentação deve surgir de uma circunstância posterior, ou seja, de uma circunstância que ocorra depois do vigésimo dia anterior à audiência final. O normativo em causa não é susceptível de aplicação se a necessidade de apresentação do documento já se verificava anteriormente àquela data.
Continuando na tentativa de definir o conteúdo do conceito legal em causa – necessidade em virtude de ocorrência posterior – dir-se-á que o grau dessa necessidade não tem de ser significativo, uma vez que da economia do preceito legal não se descortina uma especial intenção de reforçada excepcionalidade; não é necessário que o documento cuja junção se pretende seja o único (ou principal) meio de prova, bastando que a apresentação do documento se revele útil como meio de prova. Nesse sentido afigura-se-nos ocorrer equivalência entre necessidade e utilidade.
A ocorrência posterior deve ser relacionada com a dinâmica do desenvolvimento do próprio processo, designadamente tendo em vista a dialéctica que se desenvolve durante o processo de produção de prova no julgamento da causa (relativamente a alterações factuais exteriores ao processo a forma adequada de as tornar relevantes é a dedução de articulado superveniente, não se levantando aí qualquer problemática quanto à possibilidade de com esse articulado se apresentarem os correspondentes documentos). E nesse conspecto haverá de ter em conta o regime legal relativamente ao apuramento dos factos relevantes.
As partes apenas estão adstritas à alegação dos factos essenciais (artigos 5º, nº 1, 552º, nº 1, al. d), e 572º, al. c), do NCPC); mas o tribunal, para além desses, pode considerar os factos instrumentais e complementares ou concretizadores que resultem da discussão da causa (art.º 5º, nº 2, do NCPC). Ora será aquando da revelação desses factos decorrentes da produção de prova na audiência que poderá surgir a necessidade, no apontado sentido de utilidade, de confirmação desses factos mediante prova documental. E a essa situação se reportará, na generalidade dos casos, o conceito de ocorrência posterior.
Apreciando em concreto as situações em causa nos autos:
Os Réus alegaram, com facto essencial de excepção que invocam, que estavam impedidos de usar o locado porquanto a Autora não havia procedido à instalação de um sistema de extracção de gases. Competiria aos Réus a prova desse facto; mas assiste também à Autora a faculdade de fazer contraprova. No exercício dessa faculdade a Autora afirmou ter mandado proceder a expensas suas à instalação do sistema de extracção de gases. Esse depoimento, que é uma ocorrência posterior, fez surgir a utilidade da sua comprovação por documento, em particular a factura/recibo pela execução desses trabalhos.
Os Réus alegaram, mais genericamente, que o imóvel arrendado não se encontrava apto para os fins do arrendamento. No exercício da sua faculdade de contraprova a Autora indicou testemunha que no seu depoimento referiu ter sido concedida licença de utilização ao imóvel de que o arrendado constitui fracção autónoma, atribuindo a essa fracção autónoma uma utilização para bar e restauração. A invocação dessa licença de utilização é uma ocorrência posterior que fez surgir a utilidade da sua apresentação.
Do que decorre estarem, no caso, preenchidos os requisitos do art.º 423º, nº 3, do NCPC para a admissibilidade da junção dos apontados documentos, não se descortinando erro de julgamento nas decisões que ordenaram a respectiva junção.
Mas ainda que tal se não verificasse, ainda assim não estava excluída de todo a possibilidade de junção de tais documentos, uma vez que para além do direito/ónus das partes a apresentarem documentos, impende sobre o juiz o poder/dever de, quantos aos factos que lhe é lícito conhecer – factos notórios, essenciais alegados, instrumentais, complementares e concretizadores desses - promover todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio (art.º 411º do NCPC). Não estaria, pois, descartada a possibilidade de ser ordenada a junção desses documentos por o juiz da causa entender que os mesmos se mostravam relevantes para o julgamento da causa (sendo que essa actividade do juiz corresponde, em nosso modo de ver, ao uso legal de um poder discricionário, pelo que das correspondentes decisões não cabe recurso – art.º 630º, nº 1, do CPC).
Vem esta consideração a propósito da questão da constitucionalidade da solução normativa estabelecida no nº 3 do art.º 423º do NCPC, na sequência do que acima foi expendido, e para afirmar que é esse poder inquisitorial do juiz que faz em abstracto (e sem prejuízo de apreciação casuística) de contraponto às eventuais áreas de iniquidade eventualmente originadas pelo nº 3 do art.º 423º do NCPC, afastando as objecções de legitimidade constitucional.
Por seu turno os Recorrente invocam a inconstitucionalidade da interpretação normativa aplicada no caso por violação dos artigos 20º, 204º e 205º da Constituição.
Ocorre, porém, que não específica a violação da lei constitucional que invoca, sendo que lhe competia, até pela gravidade do vício invocado, que explicitasse minimamente como se consubstanciaria a infracção imputada.
Por outro lado o tribunal não vislumbra qualquer vício de constitucionalidade nessa interpretação normativa; até porque, como explicitou, o que lhe poderia suscitar dúvidas de constitucionalidade era a interpretação normativa contrária à que foi seguida."
3. [Comentário] a) Salvo o devido respeito, a afirmação de que "a
inadmissibilidade de apresentação de prova documental depois dos 20
dias que antecedem a data da audiência final contende com a garantia do
processo equitativo decorrente do art.º 20º, nº 4, da Constituição da
República e 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem" não encontra nenhuma justificação.
Uma coisa é restringir, de forma inadmissível, a apresentação do documento pela parte, outra completamente diferente é estabelecer que a parte tem o ónus de apresentar um documento de que -- note-se -- tem a posse até 20 dias antes da audiência final.
Desde logo, isso é algo inerente a um comportamento diligente e de boa fé (art. 8.º CPC) perante o tribunal e a contraparte. A falta de diligência da parte (que não cuida de saber os documentos de que dispõe para prova dos factos que alega) e a produção de qualquer "efeito-surpresa" pela parte (que, depois de ter dado a entender à contraparte que não possuía o documento e de ter conformado a estratégia de defesa dessa parte, vem afinal apresentar o documento) são incompatíveis com os parâmetros actuais do processo civil português. Mais o é ainda quando a apresentação de um documento na audiência final pode levar ao adiamento desta, depois de o juiz e os advogados terem disponibilizado as respectivas agendas e de as testemunhas estarem presentes para depor.
Acresce ainda que considerar que o art. 423.º, n.º 2, CPC, ao consagrar o ónus de a parte apresentar os documentos que tem em seu poder até 20 dias antes da realização da audiência final, é incompatível com o art. 6.º CEDH levaria a concluir que a preclusão de alegação de factos que podiam ter sido invocados nos articulados seria igualmente incompatível com aquele preceito. Se o problema se levanta quanto à preclusão de meios de prova de factos, por maioria de razão haveria de se colocar quanto aos próprios factos. Na verdade, se se entende que o ónus de a parte apresentar os documentos que tem em seu poder até um momento da tramitação da causa contraria os parâmetros do processo equitativo, não se vê como é que a imposição de a parte alegar os factos de que tem conhecimento nos articulados não implica uma idêntica violação desses parâmetros. Se é incompatível com o processo equitativo estabelecer restrições à apresentação ou junção dos meios de prova destinados a provar os factos alegados, então, a fortiori, é incompatível estabelecer quaisquer restrições quanto à alegação dos factos que esses meios de prova se destinam a demonstrar.
Tal como a alegação de factos (incluindo aqueles que fundamentam a contestação e que ficam abrangidos pelo ónus estabelecido no art. 573.º, n.º 1, CPC) está sujeita -- melhor, tem de estar sujeita -- a determinadas regras, também a junção ou o requerimento de provas têm de estar sujeitos a certas regras. Nenhuma destas regras pode ser considerada contrária à garantia do processo equitativo se os ónus que as mesmas impõem não puderem ser qualificados como arbitrários, isto é, se tiverem como justificação uma tramitação ordenada do processo e a exigência de uma condução diligente e de boa fé do processo pelas partes.
b) Em contrapartida, a RL andou bem ao ponderar condenar o recorrente na taxa sancionatória excepcional (cf. art. 531.º CPC). Isto confirma que, como acima se referiu, a diligência da parte é, realmente, um parâmetro de aferição da conduta da parte no actual processo civil português.
MTS