Cônjuges; dívidas comuns;
incidente de comunicabilidade*
Se do título executivo extrajudicial apenas figura como devedor o cônjuge marido, o exequente não pode mover a execução também contra a mulher (arts. 10/5, 53/1 e 703/1-d, todos do CPC). O que pode fazer é invocar a comunicabilidade da dívida no requerimento executivo, para os efeitos do art. 741 do CPC. A invocação da comunicabilidade da dívida não pode ser feita na contestação aos embargos.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"A decisão recorrida tem a seguinte fundamentação, em síntese: a executada não figura no título como devedora, pois que não outorgou no contrato de arrendamento em apreço; não está em causa a perda da casa de morada de família, pois que o locado, que alegadamente terá constituído a casa de morada de família dos executados, foi já entregue ao exequente, não visando a execução a sua entrega, pelo que não é aplicável o disposto no art. 34/3, última parte, do CPC; o exequente no requerimento executivo não invocou a comunicabilidade da dívida, o que apenas veio a concretizar em sede de contestação aos embargos deduzidos, chamando à colação o disposto no art. 1691/1-b do CC; só o fez na contestação aos embargos; não tendo alegado tal comunicabilidade no meio e no momento previstos na lei de processo, caduca o respectivo poder processual.
O exequente diz, contra isto, o seguinte:
i- Pouco importa que o contrato de arrendamento surja apenas assinado pelo executado porque a notificação avulsa da executada, que também compõe o título executivo, dá suprimento bastante à qualquer insuficiência formal que pudesse ser apontada ao contrato;
ii- Podendo ter sido a própria executada, em exclusivo ou em concerto de vontades com o executado, a dar causa à insuficiência formal apontada ao contrato de arrendamento, correr-se-ia o risco de admitir, por esta via meramente formal, a alegação de factos que a lei quis impedir que beneficiassem quem lhes deu causa (cfr. art. 334 do CC);
iii- por força do art. 34, n.ºs 1 e 3, do CPC, o exequente apresentou o requerimento executivo contra ambos os cônjuges, sendo certo que caso o exequente apenas tivesse apresentado o requerimento executivo contra o cônjuge que assinou o contrato de arrendamento, poderia o tribunal, eventualmente, entender não estar preenchido o pressuposto da legitimidade, por violação de litisconsórcio necessário, nos termos dos arts 576/2 e 577/-e do CPC, porventura até conduzindo à absolvição da instância do executado;
iv- o exequente pretende ver executados na acção bens próprios da executada, atento o facto de inexistirem bens comuns, por vigorar entre os cônjuges executados o regime da separação de bens; estão em causa dívidas relacionadas com a fruição da casa de morada de família, tendo que se entender que a acção tem pelo menos de forma indirecta por objecto a casa de morada de família;
v- não está em causa qualquer dívida comum, mas uma dívida própria da responsabilidade de ambos e cada um dos cônjuges; são dívidas plurais conjuntas, sendo cada cônjuge responsável pela sua quota-parte da prestação;
vi- no contrato de arrendamento para habitação de ambos os cônjuges e não obstante apenas um deles figurar como arrendatário, a falta de pagamento das respectivas rendas é da responsabilidade de ambos os cônjuges caso essa renda constitua um encargo normal da vida familiar ou vise o proveito comum do casal; o proveito comum afere-se, não pelo resultado mas antes pelo fim visado pelo cônjuge que contraiu a respectiva dívida; para a comunicabilidade dessa dívida, é suficiente a alegação e a prova de que tais rendas não foram pagas, de que os devedores são casados entre si bem como que o locado se destinou à habitação de ambos.
vii- Mas mesmo que a alegação tivesse sido de que a dívida era “comum” (e não foi, nem é), e que a presente execução só tivesse sido apresentada contra o executado (e não foi) o exequente poderia sempre, de acordo com o que prevê o art. 741 do CPC, alegar a comunicabilidade da dívida até ao início das diligências para venda ou adjudicação, pelo que ainda não estaria precludida a possibilidade de invocar tal alegação.
Decidindo:
Sendo o contrato de arrendamento celebrado só com um dos cônjuges, casado no regime de separação de bens, a dívida pode ser comunicável ao outro cônjuge se se verificar alguma das hipóteses previstas no art. 1696/1 do CC, sendo frequente a verificação da prevista em b.
Mas a questão da comunicabilidade da dívida é diferente da questão do título da dívida que pode servir de base à execução (arts. 10/5, 53/1 e 703/1-d, ambos do CPC). Ora, esse título, no caso, só diz respeito ao cônjuge marido, porque foi o único que celebrou o contrato de arrendamento e porque o direito daí resultante não se comunicou ao outro dado o regime de separação de bens (art. 1068 e 1735 do CC), pelo que só ele pode ser demandado como executado.
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O art. 14-A do NRAU dispõe que o contrato de arrendamento, quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida, é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa correspondente às rendas, aos encargos ou às despesas que corram por conta do arrendatário.
Por força da conjugação das normas dos arts. 12/1 e 10/2-b do NRAU, o título executivo para pagamento das rendas em dívida, quando o local arrendado constituir casa de morada de família, integra uma carta dirigida também ao cônjuge do arrendatário, sob pena de ineficácia.
Poderia, por isso, pensar-se que o título executivo, constituído pelo contrato de arrendamento mais o comprovativo da comunicação da dívida ao arrendatário do montante da dívida, que também teve de ser dirigida ao cônjuge do arrendatário, constituiria título executivo, não só contra o arrendatário, mas também contra o cônjuge.
Mas, como resulta do seu teor, o art. 12/1 do NRAU estabelece apenas uma condição da eficácia da comunicação do montante da dívida e, por isso, da formação do título executivo. Assim sendo, não é uma forma de tornar extensível o título ao cônjuge do arrendatário.
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O que o exequente/credor/senhorio podia ter feito, no requerimento executivo, era levantar a questão da comunicabilidade da dívida, alegando os factos necessários para o efeito (art. 741/ do CPC). No caso, poderia pois dizer que o arrendamento, de cujo incumprimento decorre a dívida das rendas, foi celebrado pelo executado com o consentimento da mulher, ou que foi celebrado para que o locado constituísse a casa de morada da família (art. 1691/1-a-b do CC). Mas o permitir-se-lhe isso – que o exequente não aproveitou – ou seja, que dê origem a um incidente de comunicabilidade da dívida, não é permitir-lhe que requeira a execução, desde o início, contra o cônjuge do arrendatário. Na sequência daquela alegação, o cônjuge do arrendatário iria ser citado, não para os termos da execução em que não seria parte, mas para, no prazo de 20 dias, declarar se aceitava a comunicabilidade da dívida com base no fundamento alegado.
O incidente em causa, como diz a decisão recorrida, não pode, logicamente, iniciar-se na contestação aos embargos em que se esteja a discutir a legitimidade da executada para a execução com outros fundamentos já que, naturalmente, a questão da comunicabilidade não se levantava até então (para além de que os embargos não comportam mais do que a petição e a contestação – art. 732/2 do CPC -, pelo que não poderia, depois, o embargante replicar à matéria do incidente que fosse então iniciado).
É certo que o exequente poderá ainda, já no decurso da execução, que passou a correr apenas contra o arrendatário, fazer um requerimento autónomo para o efeito, isto é, para originar o incidente de comunicabilidade, com posterior citação do cônjuge do executado, mas de novo, como decorre do que antecede, como cônjuge e não como executado, que não é (daí que o artigo 741/3 fale no “cônjuge não executado”).
Nada disto legitima pois que o cônjuge do arrendatário seja colocado, logo no início da execução, como executado, sendo certo que é só isto que se está a discutir neste recurso, pois que o objecto do mesmo é apenas a decisão que julgou a executada parte ilegítima."
*3. [Comentário] Apenas uma observação com espírito didáctico. O receio do exequente de que, se não demandasse ambos os cônjuges, o tribunal poderia considerar que havia uma preterição de litisconsórcio necessário nunca poderia ser justificado. Dado que, na acção executiva, a legitimidade se define em função dos sujeitos que constam do título executivo (53.º, n.º 1, CPC), não constando um dos cônjuges do título executivo, nunca a execução poderia ser proposta contra ambos os cônjuges. A consequência não poderia deixar de ser a ilegitimidade do cônjuge que foi demandado sem constar do título executivo.
No entanto, como se refere no acórdão, a circunstância de o exequente não ter deduzido o incidente de comunicabilidade da dívida no requerimento executivo, não obsta a que o mesmo possa ser deduzido depois do reconhecimento do cônjuge como parte ilegítima. Efectivamente, segundo o disposto no art. 741.º, n.º 1, CPC, esse incidente pode ser deduzido até ao início das diligências para venda ou adjudicação, ou seja, até ao início das diligências do agente de execução para a realização da venda (art. 812.º, n.º 1, CPC) ou até o exequente ou qualquer credor reclamante requerer a adjudicação de bens penhorados (art. 799.º, n.º 1 e 2, CPC).
MTS