"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



12/04/2019

Jurisprudência 2019 (4)


Caso julgado;
limites subjectivos*

1. O sumário de RP 21/2/2019 (857/14.8T8STS.P1) é o seguinte:

I - A autoridade de caso julgado impede que uma questão, ou conjunto de questões, antes apreciada(s) em decisão transitada em julgado, possa(m) ser de novo submetida(s), em ulterior acção, ao conhecimento do tribunal.

II - Terceiros, que não tenham, a qualquer título, intervindo em processos em que haja sido proferida sentença declarativa, com efeitos meramente obrigacionais, não estão vinculados à autoridade de caso julgado formado com o trânsito em julgado das anteriores sentenças, não precludindo, quanto a eles, o direito de discutir de novo questão que haja sido conhecida em processos em que não foram vencidos, nem sucederam a quem o tenha sido.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

2.1. Autoridade de caso julgado.

"A decisão transita em julgado quando não seja susceptível de recurso ordinário ou de reclamação, e a excepção de caso julgado destina-se a “evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior” [...].

Segundo o artigo 619.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, “transitada julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580º e 581º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696º a 702.°.”

Dispõe, por seu turno o artigo 621.º do mesmo diploma legal que, “a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga: se a parte decaiu por não estar verificada uma condição, por não ter decorrido um prazo ou por não ter sido praticado determinado facto, a sentença não obsta a que o pedido se renove quando a condição se verifique, o prazo se preencha ou o facto se pratique”.

De acordo com o n.º 1 do artigo 580.º do CPC, “as excepções de litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à excepção do caso julgado”. [...]

Segundo Teixeira de Sousa [
“Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, 1997, págs. 590-594], “além da eficácia «inter partes» - que o caso julgado possui sempre -, o caso julgado também pode atingir terceiros. Tal sucede através de uma de duas situações: a eficácia reflexa do caso julgado e a extensão do caso julgado a terceiros. Aquela eficácia verifica-se quando a acção decorreu entre todos os interessados directos (quer activos, quer passivos) e, portanto, esgotou os sujeitos com legitimidade para discutir a tutela judicial de uma situação jurídica, pelo que aquilo que ficou decidido entre os legítimos contraditores (…) deve ser aceite por qualquer terceiro”. [...]

Concluindo, finalmente, que “a eficácia do caso julgado realiza-se sempre que as partes da acção sejam todos os interessados directos. É uma situação frequente na área contratual, dado que nela as partes da acção coincidem normalmente com todos os contraentes. Por exemplo: o reconhecimento da qualidade de arrendatário que é obtida numa acção instaurada contra o locador é oponível a terceiros (…), porque a acção correu entre todos os interessados directos – o locador e o locatário”.

Em sentido idêntico concluiu o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.01.2016 [Processo n.º 126/12.8TBPTL.G1.S1www.dgsi.pt]: “A sentença proferida numa acção em que estejam em discussão direitos absolutos e subjectivamente vinculantes (como é o caso dos direitos reais, entre os quais, o direito de propriedade) não expande a sua eficácia para além dos sujeitos intervenientes no processo, não podendo vincular e abranger todos quanto à exclusão de domínio (sobre a coisa), mas tão só aqueles entre quem a sentença atribuiu e delimitou a exclusão da turbação do direito perturbado”.

Os aqui Réus não intervieram a qualquer título, principal ou mesmo acessório, em nenhuma das anteriores acções propostas pelos também aqui Autores: processo n.º 7037/11.2TBMTS-A e processo n.º 2114/13.8TBVCD.

Sendo terceiros em ambas as acções, sem que nelas tenham exercido qualquer direito de defesa ou feito valer os seus interesses, e não tendo natureza constitutiva as sentenças nelas proferidas, tendo efeitos meramente obrigacionais, não estão os Réus vinculados ao decidido naquelas duas anteriores acções, e não estando abrangidos pela autoridade de caso julgado por elas formado, não lhes é vedado o direito de discutir de novo questão que haja sido conhecida em processos em que não foram vencidos, nem sucederam a quem o tenha sido."

*3. [Comentário] a) Concorda-se com a conclusão da RP quanto ao âmbito subjectivo do caso julgado, dado que a quantificação da responsabilidade decorrente da confissão da dívida realizada pelo pai dos réus e pelos réus não pode deixar de impor a participação de todos os confitentes. Sendo um direito relativo, não é possível defini-lo de forma vinculativa para todos os interessados sem a presença em juízo de todos eles. 

Portanto, dado que o montante peticionado na presente acção foi definido numa acção em que apenas participou o pai dos réus da presente acção, estes não podem estar vinculados a aceitar que o montante que têm de pagar aos autores corresponde àquele que foi definido numa acção em que não foram partes.

b) Nesta perspectiva, estranha-se que a RP tenha igualmente concluído que "reclamando os Autores nesta acção aquele valor pelo seu pagamento[,] respondem os Réus, que assumiram, em benefício daqueles, a responsabilidade que se deixa enunciada, através da declaração emitida no documento designado “Confissão de Dívida”, que subscreveram". Se o caso julgado não é oponível aos réus, não se percebe como é os mesmos podem ser responsabilizados pelo pagamento de uma quantia que foi apurada numa acção em que não foram partes e cujo caso julgado não se lhes estende.

O raciocínio da RP parece ter sido o de que, se é verdade que os réus não estão vinculados ao caso julgado, estão, no entanto, obrigados a cumprir a "confissão de dívida". É verdade que esta obrigação existe, mas o que não se pode dizer é que os réus estejam obrigados a prestar o montante que ficou estabelecido numa acção em que não participaram. 

c) Porque as duas conclusões da RP são incompatíveis entre si, tem de se admitir que tenha escapado algum elemento relevante ou que haja um qualquer lapso na construção do acórdão.

MTS