Resolução em benefício da massa insolvente;
impugnação; caso julgado*
1. O sumário de STJ 19/12/2018 (930/13.0TVPRT.P1.S1) é o seguinte:
I. No processo de insolvência impera a par conditio creditorum e, por isso, no quadro dos instrumentos vocacionados para reagir contra os actos prejudiciais aos credores, a resolução em benefício da massa prevalece funcionalmente sobre a impugnação pauliana.
II. A resolução em benefício da massa visa a recuperação do bem ou valor em prol do colectivo dos credores[,] enquanto a impugnação pauliana opera apenas em benefício do credor impugnante.
III. Na norma excepcional do artigo 127.º, n.º 2, do CIRE prevê-se uma hipótese excepcional de caso julgado destinada a impedir que voltem a ser apreciadas e decididas na impugnação pauliana questões já apreciadas em sede de resolução.
IV. O disposto no artigo 127.º, n.º 2, do CIRE deve ser interpretado restritivamente de forma a excluir da força vinculativa referida na norma as situações em que os pressupostos da resolução tenham sido apreciados e decididos, na acção de impugnação da resolução, por mero efeito da falta de contestação do administrador da insolvência.
V. Esta interpretação é não só possível como exigível em face do princípio da tutela jurisdicional efectiva, tendo em consideração que, naquelas situações, o credor está absolutamente impedido de se substituir ao administrador da insolvência e de intervir, ele próprio, na acção.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"A questão de fundo a apreciar no presente recurso é [...] a seguinte: tendo a resolução em benefício da massa de determinado acto sido impugnada e julgada ineficaz por decisão definitiva, fica o tribunal absolutamente impedido de julgar procedente a impugnação pauliana que venha a ser proposta contra o mesmo acto?
No seu Acórdão de 10.05.2018, o Tribunal da Relação do Porto considerou verificada a excepção de caso julgado e decidiu absolver os recorridos da instância, fundamentando esta decisão no disposto no artigo 127.º, n.º 2, do CIRE. [...]
[...] analise-se, então, a norma cuja interpretação está no centro do caso presente, ou seja, a do artigo 127.º, n.º 2, do CIRE.
Determina ela que “as ações de impugnação pauliana pendentes à data da declaração de insolvência ou propostas ulteriormente não serão apensadas ao processo de insolvência, e, em caso de resolução do ato pelo administrador da insolvência, só prosseguirão os seus termos se tal resolução vier a ser declarada ineficaz por decisão definitiva, a qual terá força vinculativa no âmbito daquelas ações quanto às questões que tenha apreciado, desde que não ofenda caso julgado de formação anterior” [...].
Qual é, precisamente, o alcance da norma?
Sobre que questões susceptíveis de ser apreciadas em impugnação pauliana produz a declaração de ineficácia da resolução a força vinculativa referida na norma?
Para se fixar correctamente o alcance ou âmbito de aplicação da norma, é preciso que se compreenda bem a sua razão de ser, isto é, que se compreenda bem a norma nas suas origens (a sua razão genética) e na sua teleologia (a sua razão funcional), o que, por seu turno, pressupõe que se compreenda como se relacionam/articulam, no CIRE, a impugnação pauliana e a resolução em benefício da massa.
Ambos os instrumentos se inserem no quadro dos efeitos da declaração de insolvência, cujo princípio fundamentante é o princípio par conditio creditorum (princípio da igualdade dos credores)[...]. Acomodado, com carácter geral, no artigo 604.º, n.º 1, do CC, mas aplicável quase exclusivamente no processo de insolvência ou, pelo menos, em processos de tipo “concursual”[...], este corresponde a uma exigência de “justiça distributiva” e acarreta uma limitação generalizada dos direitos “naturais” dos credores (distribuição do sacrifício)[...]. [...]
Da disciplina actual dos instrumentos de reacção contra os negócios prejudiciais à massa resulta, claramente, que a impugnação pauliana constitui um instrumento subsidiário em relação à resolução em benefício da massa[...]. Bem se compreende que assim seja. Enquanto esta determina a reversão dos bens ou valores para a massa insolvente, sendo, assim, os seus efeitos susceptíveis de aproveitar a todos os credores, aquela detém um marcado carácter pessoal e dirige-se, como é seu timbre, à exclusiva tutela do interesse do credor impugnante (cfr. artigo 616.º do CC ex vi do artigo 127.º, n.º 3, do CIRE), desviando-se daquilo que, em rigor, se imporia em face da natureza universal do processo de insolvência, ou seja, a par conditio creditorum[...].
Veja-se melhor.
No artigo 127.º, n.º 1, do CIRE prevê-se que, a partir da declaração de insolvência, é vedada aos credores a instauração de novas acções de impugnação pauliana de actos praticados pelo devedor cuja resolução haja sido declarada pelo administrador da insolvência e, no n.º 2, que qualquer acção de impugnação pendente à data da declaração de insolvência ou proposta ulteriormente é suspensa no caso de resolução do acto, só prosseguindo os seus termos se a resolução vier a ser declarada ineficaz por decisão definitiva e, ainda assim, dentro de certos termos, produzindo a declaração de ineficácia da resolução força vinculativa quanto questões que tenha apreciado.
Proíbem-se, em suma, as acções novas (posteriores à declaração de insolvência) e suspendem-se as acções pendentes (em curso à data da declaração de insolvência) sempre que a resolução tenha sido/venha a ser declarada pelo administrador da insolvência[8]. A possibilidade de acções novas serem propostas ou poderem prosseguir as acções pendentes é meramente residual e, ainda assim, fica sujeita a determinadas condições.
Todas estas restrições se compreendem quando se lê o artigo 127.º, n.º 3, do CIRE: “julgada procedente a acção de impugnação, o interesse do credor que a tenha instaurado, é aferido, para efeitos do artigo 616.º do Código Civil, com abstracção das modificações introduzidas ao seu crédito por um eventual plano de insolvência ou de pagamentos”. Quer dizer: os efeitos das acções de impugnação pauliana procedentes aproveitam sempre só ao requerente.
Leia-se, por fim, para compreender definitivamente a relação de subordinação entre os dois instrumentos e a razão de ser das restrições consagradas no artigo 127.º do CIRE, o ponto 41 do Preâmbulo do DL nº 53/2004, de 18 de Março, que aprova o CIRE: “[a] finalidade precípua do processo de insolvência – o pagamento, na maior medida possível, dos credores da insolvência – poderia ser facilmente frustrada através da prática pelo devedor, anteriormente ao processo ou no decurso deste, de actos de dissipação da garantia comum dos credores: o património do devedor ou, uma vez declarada a insolvência, a massa insolvente. Importa, portanto, apreender para a massa insolvente não só aqueles bens que se mantenham ainda na titularidade do insolvente, como aqueles que nela se manteriam caso não houvessem sido por ele praticados ou omitidos aqueles actos, que se mostram prejudiciais para a massa. A possibilidade de perseguir esses actos e obter a reintegração dos bens e valores em causa na massa insolvente é significativamente reforçada no presente diploma. No actual sistema, prevê-se a possibilidade de resolução de um conjunto restrito de actos, e a perseguição dos demais nos termos apenas da impugnação pauliana, tão frequentemente ineficaz, ainda que se presuma a má fé do terceiro quanto a alguns deles. No novo Código, o recurso dos credores à impugnação pauliana é impedida, sempre que o administrador entenda resolver o acto em benefício da massa. Prevê-se a reconstituição do património do devedor (a massa insolvente) por meio de um instituto específico – a resolução em benefício da massa insolvente –, que permite, de forma expedita e eficaz, a destruição de actos prejudiciais a esse património”.
Confirmado que está que o legislador concentrou – e por que razão concentrou – as expectativas de reacção contra os actos prejudiciais à massa no instrumento da resolução em benefício da massa e que a impugnação pauliana desempenha – e as razões pelas quais desempenha – um papel meramente residual, estão reunidas as condições para esclarecer a dúvida sobre as restrições a que ficam sujeitas as acções que, excepcionalmente, podem prosseguir, ou seja, a referência contida na norma à “força vinculativa [da declaração de ineficácia da resolução] no âmbito [destas] acções quanto questões que [aquela] tenha apreciado”.
Manifestamente, não se pretendeu inviabilizar a apreciação de todas as acções de impugnação pauliana nem de todas as questões susceptíveis de ser apreciadas neste tipo de acções. Aquilo que se pretendeu foi apenas impedir que voltem a ser apreciadas em acção de impugnação pauliana as questões já apreciadas em sede de resolução em benefício da massa. A norma consagra, portanto, uma hipótese excepcional de caso julgado. [...]
A excepção de caso julgado tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer uma decisão anterior. Nesta vertente, o caso julgado compreende limites (subjectivos e objectivos): pressupondo o caso julgado uma repetição de causas, a repetição pressupõe, por sua vez, identidade dos sujeitos, identidade do pedido e identidade da causa de pedir (cfr. artigo 581.º do CPC).
Ora, se, nos casos típicos de resolução em benefício da massa e de impugnação pauliana, ainda é possível entender que ocorre identidade dos sujeitos e identidade da causa de pedir, é já duvidoso que exista identidade do pedido.
É possível entender – sem grandes dúvidas ou reservas – que existe identidade de causa de pedir. A pretensão deduzida tanto na resolução em benefício da massa como na impugnação pauliana procede do mesmo facto jurídico, a saber: o acto que é susceptível de importar prejuízo para a satisfação do(s) crédito(s).
É ainda possível entender que ocorre identidade dos sujeitos. Não obstante na resolução figurar, do lado activo, a massa insolvente, representada pelo administrador da insolvência, e não exactamente todos e cada um dos credores do insolvente, aquela é um património de afectação especial constituído para a satisfação dos interesses destes, dizendo-se, no artigo 46.º, n.º 1, do CIRE, que a massa insolvente se destina à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas. Os interesses da massa coincidem, pois, com os interesses da colectividade dos credores. Estes ficam, aliás, e como se viu, consideravelmente limitados no seu poder de reagir contra os actos prejudiciais à massa, pouco mais lhes restando do que de confiar na atenção e na diligência do administrador.
Daqui resultará, aliás, que os credores abrangidos naquela identidade (entre a massa e os credores do insolvente) não são apenas os credores da insolvência, ou seja, aqueles que obtiveram o reconhecimento do seu crédito no processo de insolvência; são todos os credores do insolvente. Não seria compreensível que os credores cujos créditos não tivessem sido reconhecidos, designadamente por terem decidido não reclamar o seu crédito, pudessem escapar à força vinculativa da decisão de ineficácia da resolução. É de entender, pois, que estão todos limitados, nos mesmos termos, no poder de usar da impugnação pauliana[...].
Já quanto ao pedido, esse não é, em rigor, o mesmo. Enquanto na resolução o efeito jurídico que o administrador da insolvência pugna por obter é, em conformidade com o artigo 126.º, n.º 1 do CIRE, invariavelmente, a reconstituição da situação que existiria se o acto não tivesse sido praticado, restituindo-se à massa o valor que devia integrá-la, em benefício da colectividade dos credores, na impugnação pauliana o efeito jurídico visado pelo credor abrange, tal como previsto no artigo 616.º, n.º 1, do CC, a restituição dos bens ou valores na medida do seu interesse (individual) e, eventualmente, a execução do bem no património do obrigado à restituição e a prática dos actos de conservação da garantia patrimonial legalmente autorizados.
A norma consagra, então, uma situação excepcional de caso julgado, em que ocorre o caso julgado apesar de falhar um dos seus requisitos. [...]
A norma do artigo 127.º, n.º 2, do CIRE visará, justamente, evitar que, nos casos em que a ineficácia da resolução em benefício da massa se deveu à não verificação de certo pressuposto substantivo (maxime: a prejudicialidade à massa), o pressuposto que lhe corresponde na impugnação pauliana (a susceptibilidade de o acto ter como resultado a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade) venha, posteriormente, a ser dado como verificado nesta última acção.
Mas o propósito desta norma excepcional – porque, depois do caso excepcional que ela prevê, não pode deixar de ser, ela própria, uma norma excepcional – não é tanto o de evitar os habituais prejuízos para a estabilidade e a segurança jurídicas decorrentes da contradição de julgados (para isso existem e presumivelmente são suficientes as normas gerais) mas mais o de preservar uma certa organização/hierarquia no quadro de instrumentos contra os actos prejudiciais à massa [Cfr., neste sentido, Carvalho Fernandes / João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado. Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial (SIREVE) Anotado. Legislação Complementar, Lisboa, Quid Juris, 2015 (3.ª edição), p. 157, e Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Coimbra, Almedina, 2018, p. 245 e p. 252]. Estes foram especialmente gizados para o processo de insolvência e para funcionar no processo de insolvência; aquela organização/hierarquia visa, em última análise, garantir o tratamento igualitário dos credores. [...]
A mesma lógica presidiu à concepção das outras regras estabelecidas no preceito, também elas limitadoras dos poderes de acção dos credores. Verifica-se isto quando se diz, no n.º 1, que é “[é] vedada a instauração de novas ações de impugnação pauliana de atos praticados pelo devedor cuja resolução haja sido declarada pelo administrador” e, no n.º 2, que “[a]s ações de impugnação pauliana pendentes só prosseguirão os seus termos se tal resolução vier a ser declarada ineficaz (…)”, querendo com isto dizer-se, além do que explicitamente se diz (o condicionamento que se impõe no segmento final da norma às acções que podem prosseguir e que está em discussão nesta revista), que as restantes acções pendentes se suspendem e, eventualmente, se extinguem[...].
Compreendido isto, poder-se-á afirmar que a declaração de ineficácia da resolução por decisão definitiva preclude em absoluto a possibilidade de se apreciarem os pressupostos substantivos da impugnação pauliana?
A resposta é negativa.
Precisando: a declaração de ineficácia da resolução por decisão definitiva só precludirá a possibilidade de se apreciarem os pressupostos substantivos da impugnação pauliana quando os pressupostos correspondentes da resolução tenham sido previamente apreciados no julgamento que conduziu àquela declaração. [...]
O que sucede na presente situação é que a impugnação da resolução em benefício da massa não foi contestada pelo administrador da insolvência, tendo o juiz decidido julgar procedente a impugnação por mero efeito da aplicação dos artigos 784.º e 483.º e s. do CPC e, sobretudo, sem que tenha sido dada ao recorrido a oportunidade de discutir os pressupostos da resolução, em especial a questão da diminuição da garantia patrimonial.
A primeira norma, regulando o julgamento nas acções não contestadas no âmbito do processo sumário, foi revogada, o que é sintomático quanto à vontade do legislador português em eliminar as consequências perigosas do efeito cominatório pleno. Dispunha-se aí que “[q]uando os factos reconhecidos por falta de contestação determinem a procedência da acção, pode o juiz limitar-se a condenar o réu no pedido, mediante simples adesão aos fundamentos alegados pelo autor na petição inicial”[...].
As restantes normas correspondem às normas dos artigos 566.º e s. do CPC, regulando a matéria (sempre sensível) da revelia do réu e os seus efeitos, destacando-se o artigo 567.º do CPC, que retira da falta de contestação do réu o efeito da confissão (confissão ficta) dos factos articulados pelo autor em determinadas circunstâncias, a saber: se o réu não contestar e tiver sido ou dever considerar-se citado regularmente na sua própria pessoa ou tiver juntado procuração a mandatário judicial no prazo da contestação.
Por outras palavras, aquilo que acontece na presente situação é que, por causa da falta de contestação do administrador da insolvência, o tribunal, apoiando-se nas normas referidas, deu por confessados os factos articulados pelo impugnante da resolução[...]. Tudo isto – repete-se – sem que houvesse qualquer possibilidade de intervenção pessoal dos credores.
Os interesses em que assenta o caso julgado excepcional previsto no artigo 127.º, n.º 2, do CIRE confrontam-se, nesta hipótese, com o princípio da tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 20.º da CRP.
Será legítimo considerar-se que se constituiu, nestes termos, uma situação de caso julgado para o efeito de limitar quem não teve, na acção anterior, a oportunidade de discutir e provar os pressupostos do seu direito?
Não obstante poder e dever considerar-se que o administrador da insolvência interveio na acção de impugnação da resolução em benefício da massa, como em outros momentos do processo de insolvência, enquanto representante dos credores e defensor dos interesses destes e, portanto, também do credor recorrente, seria muito difícil compreender que a inércia daquele precludisse a possibilidade de este provar, mais tarde, em acção de impugnação pauliana, os factos constitutivos do seu direito.
Como qualquer caso julgado, o caso julgado excepcional do artigo 127.º, n.º 2, do CIRE visa evitar – já se disse – que a estabilidade das decisões judiciais seja perturbada. Visa ainda evitar, em particular, que a organização/hierarquia legal do quadro de instrumentos contra os actos prejudiciais à massa seja subvertida.
São interesses relevantes, sem sombra de dúvida.
Nenhum deles pode prevalecer, contudo, sobre a garantia da tutela jurisdicional efectiva.
Esta assegura o direito a um processo equitativo, isto é, a um processo legal, justo e adequado, materialmente informado pelos princípios da justiça, assente no princípio da igualdade de armas (ou igualdade processual), bem como no direito de defesa e no princípio do contraditório. Em processo civil, o direito ao processo equitativo reclama que cada parte tenha uma possibilidade razoável de defender as suas razões em posição que não seja menos vantajosa do que a da parte adversária, sob o ponto de vista tanto dos meios dispostos como da atenção dispensada pelos órgãos processuais.
Razões ponderosas exigem, portanto, uma interpretação restritiva da norma do artigo 127.º, n.º 2, do CIRE – e que a norma claramente consente, não fosse excepcional o caso julgado nela previsto. Devem, pois, considerar-se excluídos da força vinculativa aí referida os casos (que serão raros) em que as questões tenham sido apreciadas e decididas por mero efeito da falta de contestação do administrador da insolvência, atendendo a que o credor estava impedido de exercer pessoalmente o seu direito fundamental de defesa.
Partindo do princípio de que esta é, como se tentou demonstrar, a única interpretação em que o disposto na norma do artigo 127.º, n.º 2, do CIRE se concilia, de facto, com o sistema jurídico, era admissível que o recorrente alegasse e provasse os pressupostos da impugnação pauliana e que o tribunal procedesse à respectiva apreciação, dando-os, a final, como provados."
*3. [Comentário] a) Salvo o devido respeito, não se acompanha a orientação defendida no acórdão.
No fundo, o que o acórdão faz é desvalorizar ou enfraquecer o caso julgado de uma decisão proferida num processo em que se verificou uma situação de revelia (operante). A solução não tem, segundo se julga, nenhuns antecedentes na doutrina e jurisprudência portuguesas, pelo que a mesma, a ser justificada, tem de decorrer de argumentos muito sólidos.
O acórdão parece assentar na ideia de que, se houver revelia do réu, não se pode dizer que o tribunal tenha apreciado questões e, por isso, não há, nos termos do art. 127.º, n.º 2, CIRE, questões decididas que possam ser vinculativas na acção de impugnação pauliana. Note-se que esta lógica também vale para a hipótese em que, em vez de se ter verificado uma situação de revelia, o administrador de insolvência tenha confessado o pedido e o tribunal tenha homologado esta confissão (art. 283.º, n.º 1, e 290.º, n.º 3, CPC). Também aqui se pode dizer, segundo a orientação defendida no acórdão, que não há questões apreciadas e decididas.
O argumento utilizado no acórdão parece ser algo formal. Suponha-se, por exemplo, que, em face dos fundamentos alegados pelo impugnante da resolução (nomeadamente, o terceiro adquirente do bem), o administrador da insolvência se convence de que, realmente, esse terceiro não actuou de má fé e, por isso, não contesta a acção de impugnação da resolução; não é claro o motivo pelo qual, no contexto do art. 127.º, n.º 2, CIRE, se há-de entender que a decisão do tribunal não é vinculativa nas acções de impugnação pauliana que se encontrem pendentes, impedindo-se, assim, que esse terceiro beneficie da decisão proferida no processo de impugnação da resolução.
Acresce ainda que qualquer interpretação que se faça do art. 127.º, n.º 2, CIRE no sentido de limitar a vinculação da decisão proferida no processo de impugnação da resolução em qualquer acção de impugnação pauliana beneficia o credor impugnante, mas, exactamente na mesma medida, prejudica o terceiro adquirente, dado que a circunstância de ter obtido ganho de causa na acção de impugnação da resolução nada lhe assegura na acção de impugnação pauliana. Não é evidente o motivo pelo qual o art. 127.º, n.º 2, CIRE deve ser interpretado num sentido favorável aos credores do insolvente e desfavorável ao terceiro adquirente.
Aliás, é nesta óptica que o argumento do processo equitativo invocado no acórdão deve ser considerado. Se não é equitativo que os credores fiquem vinculados ao caso julgado da decisão da acção de impugnação da resolução quando nesta se tenha verificado a revelia do administrador da insolvência, é equitativo que o terceiro adquirente não possa beneficiar do caso julgado daquela decisão? Pode realmente questionar-se por que razão se há-de impor ao terceiro adquirente que defenda duas vezes em dois processos distintos que não actuou de má fé na aquisição do bem.
O critério do processo equitativo exige sempre uma ponderação entre a posição das partes e a posição do juiz e entre o interesse do autor e o interesse do réu. Ao contrário do que o acórdão faz, não é possível -- e menos ainda desejável -- utilizar o critério do processo equitativo apenas pela óptica dos interesses de uma das partes e, portanto, sem qualquer ponderação dos interesses da outra parte. Visto por esta perspectiva integrada (que é a única possível), o disposto no art. 127.º, n.º 2, CIRE está longe de conter uma solução que necessite de uma interpretação restritiva.
Refira-se ainda que a doutrina defendida no acórdão conduz a um resultado paradoxal. Repare-se que a revelia do administrador da insolvência na acção de impugnação da resolução em benefício da massa é tanto mais provável quanto mais convincente for a argumentação do terceiro adquirente como autor dessa acção. Então, é precisamente quando o terceiro adquirente tem uma argumentação convincente na acção de impugnação da resolução que não beneficia da caso julgado na acção de impugnação pauliana? Em contrapartida, se o terceiro adquirente obtiver ganho de causa na acção de impugnação com base num non liquet, então, porque houve discussão e decisão, já não há nenhum problema em beneficiar do caso julgado? Há aqui algo que não é coerente.
b) O acórdão afasta-se, com base em argumentos algo formais, de uma orientação aparentemente firme na jurisprudência e doutrina portuguesas. Se é verdade que pouco há de indiscutível na área do caso julgado, também parece certo que, para defender, de forma convincente e coerente, a posição adoptada no acórdão, teria sido necessário bastante mais do que foi invocado.
MTS