"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



08/04/2019

Jurisprudência 2018 (213)

 
Decisão; impugnação;
reclamação; admissibilidade

1. O sumário de STJ 19/12/2018 (10864/15.8T8LSB.L1.S1-A) é o seguinte:

I - Compete ao primitivo Relator, a quem o Recurso para Uniformização de Jurisprudência é distribuído para exame liminar, e, em caso de rejeição e reclamação, à Conferência, analisar os pressupostos de admissibilidade do recurso, incluindo a invocada oposição jurisprudencial - art. 692.º, n.os. 1 e 2, do CPC.

II - Sendo a própria lei que determina a competência do Relator e da Conferência para os efeitos referidos em I, é destituído de sentido invocar o impedimento previsto no art. 115.º, n.º 1, al. e), do CPC.

III - A interpretação referida em I não viola o disposto nos arts. 18.º, 20.º, n.os 1 e 4, 203.º, todos da CRP.

2. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"I. Relatório [...]
 
2.1. Face ao teor da reclamação apresentada, são as seguintes as questões suscitadas que cumpre decidir:

a) Saber se verifica uma situação de impedimento do Relator (que proferiu a decisão singular que é objecto da presente reclamação), bem como do colectivo (isto é, dos Conselheiros que integram a Conferência e que conheceram da revista), para conhecerem agora da fase liminar do recurso para uniformização de jurisprudência, nos termos dos artigos 115.°, n.º1, alínea e), e 116.°, n.º 1, 2ª parte, do Código de Processo Civil;

b) Saber se se verifica a invocada inconstitucionalidade do art.º 692.°, n.º1, 3 e 4 do Código de Processo Civil, por alegada violação dos artigos 18.º, 20.°, n.º 1 e 4 e 203.° da Constituição da República Portuguesa; [...].

II. Fundamentação

3. Como já foi expresso por este STJ em decisões em que se suscitavam as mesmas questões colocadas na presente reclamação para a conferência, muito em especial no Acórdão de Revista n.º 24412/02.6TVLSB.Ll.Sl-A, posição que aqui se segue e em parte se reproduz, resulta do regime contido no artigo 688.° e seguintes do Código de Processo Civil, que o recurso para uniformização de jurisprudência comporta dois momentos distintos:

(i) um primeiro que se traduz na apresentação do recurso extraordinário, com observância dos requisitos ínsitos nos artigos 688.° a 690.°, cabendo ao Relator do acórdão recorrido a sua apreciação liminar e o correspondente saneamento (tanto mais que o recurso, uma vez interposto, é autuado por apenso aos autos no qual o referido aresto foi proferido); e

(ii) um segundo momento, que apenas se verificará se o recurso for admitido pelo Relator ou, eventualmente, pela conferência (na hipótese de ter havido reclamação da decisão singular daquele e de esta assim o ter determinado), caso em que o processo será enviado à distribuição, nos termos do n.º 5 do citado normativo, a fim de, então, ser apreciado pelo Pleno das Secções Cíveis.

Será, pois, esta nova distribuição que permitirá assegurar, quanto ao acórdão de uniformização, o factor de aleatoriedade no que concerne ao seu relato para um colectivo diferente [...].

Esta nova distribuição constitui, de resto, uma inovação do novo Código de Processo Civil de 2013, já que no regime pretérito, mesmo depois de admitido o recurso, o primitivo Relator (isto é, o do acórdão recorrido) se mantinha.

Regressou-se, assim, com o novo Código de Processo Civil (sobretudo por força do aditamento do n.º 5 ao artigo 692.°, feito pela Comissão) à solução do antigo recurso para o Tribunal Pleno porquanto, como se disse, uma vez admitido o recurso (e não antes), o relator envia o processo à distribuição, havendo,então, um novo relator.

Eliminaram-se, desta forma, as críticas por parte de alguma doutrina à solução introduzida em 2007 que parecia pôr em causa a garantia de imparcialidade do relator [...] já que, nesse caso, o mesmo não se limitava a aferir da verificação dos pressupostos da admissibilidade do recurso, cabendo-lhe igualmente a apreciação da questão de mérito.

Tendo presente este quadro normativo, dúvidas não restam que é ao primitivo Relator, ao qual o processo é concluso para exame liminar, que compete analisar os pressupostos de admissibilidade do recurso, impondo-se a sua rejeição sempre que se verifiquem as situações enunciadas no artigo 692.°, n.° 1, do Código de Processo Civil, caso em que a parte poderá reclamar para a Conferência e em que competirá, então, a esta decidir da verificação dos ditos pressupostos, incluindo a invocada oposição jurisprudencial.

Se é a própria lei que determina que a competência para aferir desses pressupostos pertence ao Relator do acórdão recorrido ou, eventualmente, em caso de reclamação, à Conferência (isto é, ao Colectivo que proferiu a decisão posta em crise), é mais do que evidente que não existe qualquer impedimento por parte daqueles para fazerem essa apreciação, sendo, por conseguinte, destituído de sentido convocar para o caso o disposto no artigo 115.°, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Civil. É, por isso, inequívoco que o caso vertente não é subsumível à previsão legal. Na verdade, mal se compreenderia que pudessem estar impedidos para o exercício das suas funções precisamente o juiz ou os juízes aos quais, por expressa determinação da lei, compete proceder ao exame liminar do recurso a que se vem fazendo referência.

Por razões indicadas, inexiste qualquer impedimento - quer por parte do Relator, quer por parte Colectivo (isto é, da Conferência) - para proceder ao exame liminar do recurso para uniformização de jurisprudência, impondo-se, em consequência, o indeferimento da requerida reclamação nesse sentido.

4. Da invocada inconstitucionalidade - do artigo 692.°, n.ºs 1, 3 e 4, e 688.°, n.º 1, todos do Código de Processo Civil.

Conforme este STJ já teve oportunidade de decidir (cf. acórdão supra indicado, que se continua a seguir), do princípio do Estado de Direito democrático, consagrado no artigo 2.° da Constituição da República Portuguesa, decorre o princípio da protecção jurídica, deduzindo-se do mesmo, a exigência de um procedimento justo e adequado de acesso ao direito e de realização do direito.

O direito a um processo equitativo, ínsito no artigo 20.°, n.ºs 1 e 4, da Constituição, impõe que todo o processo deva estar informado pelo princípio da equitatividade em sentido amplo, o que significa que o processo deve ser justo não apenas na sua conformação legislativa, mas também estar informado, nos vários momentos processuais, pelos princípios materiais da justiça.

A garantia da imparcialidade do juiz constitui um corolário do direito a um processo equitativo (importando que o juiz que julga o faça com isenção e imparcialidade), é certo, mas não se vislumbra que, in casu, se verifiquem quaisquer das inconstitucionalidades que o reclamante suscitou.

A garantia de imparcialidade dos juízes está estabelecida no artigo 216.° da Constituição da República Portuguesa e traduz-se essencialmente em o cidadão poder confiar em que os seus assuntos submetidos à apreciação dos tribunais merecerão uma decisão imparcial, mantendo-se os juízes equidistantes em relação aos interesses particulares, devendo os juízes precaverem-se que perante a hipótese de conflito de interesses a sua decisão seja considerada como violadora dos seus deveres pessoais e funcionais.

Em relação à formação da conferência, nos termos acima assinalados, não se vê como essa garantia pode ser considerada violada.

Na verdade, não é pressuposto que quaisquer dos juízes que a compõem tenham qualquer interesse particular na questão a apreciar.

Nomeadamente, o facto de já ter havido uma decisão do relator, não significa que a decisão da conferência tenha de ser tida como parcial, uma vez que, sendo aquela constituída por três juízes, ela é tomada por maioria, após discussão - n.º 3 do artigo 659.° do Código de Processo Civil. Ou seja, a decisão tomada em conferência não é proferida da mesma forma da decisão tomada pelo relator. Ali trata-se de uma decisão colegial, antecedida de discussão. Aqui, de uma decisão singular, obviamente sem discussão anterior. Acresce que, in casu, a conferência nem tem a mesma composição, em virtude da nova composição do tribunal, com dois novos adjuntos.

Concluímos, pois, não haver violação de qualquer princípio ou preceito constitucional.

Adicionalmente, ainda se poderia acrescentar: é um facto que a decisão do relator de não admissão do recurso apenas é passível de reclamação para a conferência; porém, não é menos verdade que tal opção legislativa - de atribuir ao próprio tribunal recorrido a actividade judiciária de verificação dos pressupostos de admissão do recurso - não constitui uma solução que afecte, de modo desproporcionado ou excessivo, o direito de acesso aos tribunais previsto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, tanto mais que, conforme se vem afirmando repetidamente, é reconhecida ao legislador uma ampla margem de conformação na definição do regime procedimental que devem seguir os meios específicos para dirimir litígios e a reclamação para a conferência já oferece suficientes garantias de controlo jurisdicional da legalidade da decisão.

Repare-se que a reclamação para a conferência é o meio normal de reacção contra os despachos do relator, sendo corolário da ideia de que o verdadeiro titular do poder jurisdicional nos tribunais superiores é o órgão colegial. E, entre nós, o juiz designado como relator é sempre membro da formação de julgamento e intervém no acórdão em que a conferência aprecia a reclamação de decisões por si proferidas, quer a decisão singular que é objecto desse pedido de reapreciação resulte dos tradicionais poderes de preparar o processo para julgamento, quer consista no exercício dos mais alargados poderes que, após a reforma de 1995-1996 do Código de Processo Civil, se lhe reconhecem de decidir quaisquer questões prévias ou incidentais, bem como o próprio julgamento do recurso quando este seja manifestamente infundado ou verse sobre questões simples ou repetitivas. Assim não pode afirmar-se que a atribuição aos juízes recorridos da decisão de admissibilidade do recurso constitua uma restrição a esse direito, desnecessária ou desproporcionada, já que o que está em causa é somente uma escolha legislativa quanto aos juízes competentes para proceder à referida apreciação: os mesmos ou outros.

O facto de a escolha ter recaído nos primeiros não traduz a consagração de pressupostos processuais adicionais ou mais intensos; os pressupostos são exactamente os mesmos, quer a apreciação seja feita pelos mesmos juízes ou por outros. Por isso, a convocação destes parâmetros constitucionais é absolutamente impertinente para a conformidade da norma.

E nem se diga que o tribunal recorrido se está a pronunciar em "causa própria” ao tomar posição sobre a admissibilidade do recurso contra uma sua anterior decisão, já que, tal como acima se deixou dito, nessa fase procedimental o que está em causa é tão só e apenas a aferição acerca da verificação (ou não) dos requisitos de admissibilidade do recurso o que, como é evidente, não envolve a aplicação de quaisquer conceitos indeterminados, antes correspondendo a um exercício vinculado de avaliação de elementos objectivos, como sejam a legitimidade do recorrente, a tempestividade do recurso e, em concreto, a identidade da questão fundamental de direito sobre que existe divergência jurisprudencial, que pressupõe, naturalmente, a identidade dos respectivos pressupostos de facto (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 403/2008).

Estando os tribunais sujeitos a critérios de isenção, objectividade e imparcialidade no exercício da sua actividade, não deixam de agir, em cada caso, de acordo com o direito, sob pena de, não o fazendo, poderem ficar sujeitos a sanções disciplinares ou incorrer em responsabilidade civil e criminal.

Não existem razões objectivas para considerar que o Relator não procede, na preparação da decisão liminar do recurso para uniformização de jurisprudência e na subsequente deliberação, com a mesma disposição de aplicar o direito ao caso concreto que teria se estivesse a exercer a sua competência de apresentar um projecto para decisão primária pelo órgão colegial. De igual forma, também não existem razões para concluir que os demais juízes que intervêm no Colectivo não tenham a disposição ou a capacidade necessárias para proceder a um exame autónomo das razões aduzidas pelo reclamante.

Como todos os pedidos de reponderação, ( ... ) a reclamação para a conferência repousa no pressuposto, indispensável ao funcionamento dos tribunais num Estado de Direito em que o estatuto dos juízes está dotado das necessárias garantias de independência e organização, de que o juiz possui em permanência a humildade e fortaleza de ânimo necessárias para examinar novos argumentos ou argumentos apresentados de modo mais convincente (cf. Acórdão n.º 281/2011) .

Pelas razões aduzidas, forçoso é concluir, na senda do que tem sido decidido pelo Tribunal Constitucional que, na situação que se vem analisando e face ao tipo de intervenção do juiz e às questões analisadas na primeira fase do processo, não há qualquer ofensa das normas e princípios constitucionais invocados por, na realidade, não estar em causa uma diminuição das garantias formais do processo, mas antes uma hipotética suspeição sobre os juízes a quem a lei atribui a competência legal para decidir.

Nesta conformidade, afigura-se que, não existindo violação de quaisquer das normas e dos princípios constitucionais que o reclamante invoca (dado que a Constituição não impede os juízes membros do colégio, autores do acórdão recorrido, de participarem na decisão de saber se tal acórdão se encontra em oposição com outro proferido anteriormente), os argumentos do reclamante em defesa da inconstitucionalidade têm necessariamente de naufragar."

*3. [Comentário] A invocação do impedimento do relator não deixa de revelar alguma imaginação, mas está, naturalmente, condenada ao fracasso. A seguir-se a perspectiva do reclamante, nenhuma reclamação seria admissível em nenhum processo. A reclamação é a impugnação da decisão perante o próprio órgão que a proferiu, o que, naturalmente, pressupõe que o juiz decidente não está impedido de apreciar a reclamação.
 
Se o juiz que proferiu a decisão impugnada estivesse impedido de conhecer da reclamação, então a única forma de impugnação das decisões que restaria seria o recurso, que é a impugnação da decisão perante um órgão distinto daquele que proferiu a decisão impugnada.

MTS