"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



11/04/2019

Jurisprudência 2019 (3)


Providência cautelar;
convolação


1. O sumário de RL 10/1/2019 (315/18.1T8OER-A.L1-6) é o seguinte:

– O preceito legal constante do art.º 376.º n.º3 do CPC impõe ao Juiz o poder/dever de convolar a providência concretamente requerida para a que considere legalmente adequada ou mais eficaz à prevenção do dano receado, cumprindo-lhe, assim, corrigir, mesmo oficiosamente, o erro na forma do processo, consistente em se requerer procedimento cautelar comum quando a situação é subsumível aos pressupostos de determinado procedimento nominado, ou vice-versa.

 2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Tendo em conta as conclusões de recurso que delimitam o respectivo âmbito de cognição deste Tribunal, a única questão a apreciar consiste em saber se existe fundamento legal para o indeferimento liminar do procedimento cautelar instaurado pelo Requerente.

De acordo com o alegado e comprovado pelos documentos juntos pelo Requerente, este é titular de um crédito relativamente aos Requeridos, relativo a salários devidos pelo trabalho prestado pelo ora Apelante, por conta da Projectório, Arquitectos Consultores, Lda.. No âmbito de um processo instaurado pelo Requerente, no Tribunal de Trabalho de Lisboa, foi celebrado um acordo, homologado por sentença transitada em julgado, mediante o qual o requerente reduziu o pedido para € 30.000,00 que aceitou receber em prestações .

Para garantir o cumprimento do referido acordo, os ora Requeridos B e C constituíram-se fiadores e principais pagadores do montante acordado, renunciando ao benefício da excussão prévia. Contudo, nem a sociedade nem os Requeridos cumpriram o acordo que tinham celebrado com o trabalhador, ora Requerente.

Conforme alega, o Requerente aguardou o pagamento, pois os sócios gerentes, ora Requeridos sempre prometeram que iriam pagar apenas precisavam de mais tempo. Contudo, o tempo que precisaram foi para “esvaziar” a sociedade de todos os bens que possuía, tendo esta vindo a ser declarada insolvente, por sentença de 13 de Março de 2017.

Do montante de € 30.000,00 que acordaram pagar, os Requeridos apenas pagaram ao Requerente, a quantia de € 3.150,00.

Os Requeridos, não pagam qualquer quantia ao Requerente, desde Fevereiro de 2015.

Ora, estabelece o art.º 362.º do Código de Processo Civil, referente ao âmbito das providências cautelares não especificadas, o seguinte:

“Procedimento cautelar comum

Artigo 362.º

Âmbito das providências cautelares não especificadas

1- Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado. 

2- O interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou em direito emergente de decisão a proferir em ação constitutiva, já proposta ou a propor.

3- Não são aplicáveis as providências referidas no n.º 1 quando se pretenda acautelar o risco de lesão especialmente prevenido por alguma das providências tipificadas no capítulo seguinte. (…)” 

Destaca-se especialmente, para a análise que importa, o disposto no art.º 362.º n.º3 do supra citado preceito legal. Nos termos daquela norma, se existir providência especialmente adequada a acautelar o risco de lesão do direito do requerente, não deverá ser requerida uma providência cautelar não especificada.

Ora, no caso em apreço, a pretensão do requerente traduz-se num pedido de apreensão de depósitos bancários, com vista a que os mesmos possam vir a ser penhorados e satisfaçam o crédito do mesmo Requerente, ora Apelante. Existe no código de processo civil uma providência cautelar que é a adequada para dar resposta à pretensão do Requerente: é o arresto, tipificado no art.º 391.º do CPC.

Artigo 391.º

Fundamentos

1- O credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor. 

2- O arresto consiste numa apreensão judicial de bens, à qual são aplicáveis as disposições relativas à penhora, em tudo o que não contrariar o preceituado nesta secção.
São, pois, requisitos fundamentais desta providência cautelar:

(i) - A probabilidade séria da existência de um crédito;

(ii)- O justificado receio de perda da garantia patrimonial.

Os factos alegados pelo Apelante enquadram-se perfeitamente neste tipo de providência.

Quanto ao primeiro requisito, resulta da prova documental. O crédito está declarado por sentença judicial que homologou o acordo das partes.

Quanto ao justificado receio de perda de garantia patrimonial, o mesmo resulta patente, por um lado, da declaração de insolvência da sociedade que foi entidade patronal do requerente e, por outro, do facto de os fiadores, ora Requeridos, não obstante se terem comprometido a pagar a dívida, no âmbito de processo judicial, decorridos vários anos, não demonstraram qualquer intenção de cumprir, nem enquanto obrigação voluntariamente assumida, nem enquanto condenação por sentença de homologação judicial, transitada em julgado.

Ora, estando em causa bens especialmente voláteis – como é o caso de quantias monetárias – é previsível, tal como refere o Apelante que, uma vez que aos Requeridos sejam entregues as quantias que se encontram penhoradas, os mesmos as salvaguardem de uma também previsível penhora, atenta a pendência da execução contra eles. Ao contrário do que se refere na sentença recorrida, não se trata de “meras conjecturas”, mas sim de uma probabilidade forte, em face dos factos já ocorridos, analisados à luz dos dados da experiência comum.

Também nos parece, que a pretensão do Requerido em nada subverte a decisão judicial de levantar a penhora decretada noutro processo. Do que se trata é de acautelar a eficácia da decisão de decretar a penhora na execução, já proposta, a que se refere este procedimento cautelar.

Cremos, assim, que os factos alegados integram suficientemente os requisitos legais da providência cautelar do arresto.

É certo que o ora Apelante não requereu essa providência, mas uma providência cautelar não especificada, embora o pedido tenha o exacto conteúdo de um pedido de arresto. O vício que, no máximo, poderá considerar-se que o requerimento inicial enferma será de erro no meio processual utilizado.

Ora, nos termos do art.º 193.º do CPC:

“O erro na forma do processo importa unicamente a anulação dos atos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei.” 

No caso em apreço, basta que se ordene o prosseguimento dos actos relativos ao arresto, já que nenhum acto foi praticado que importe anular.

Por outro lado, conforme estipula o art.º 376.º n.º3 do CPC, “ o Tribunal não está adstrito à providência concretamente requerida (…)”.

Este preceito impõe ao Juiz «o poder-dever de convolar a providência concretamente requerida para a que considere legalmente adequada ou mais eficaz à prevenção do dano receado, cumprindo-lhe, pois, “corrigir, mesmo oficiosamente, o erro na forma do processo, consistente em se requerer procedimento cautelar comum quando a situação é subsumível aos pressupostos de determinado procedimento nominado, ou vice-versa, bem como em ter-se requerido um destes, quando seja legalmente aplicável outro à hipótese sub judicio” (Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, pág. 288).» [...]

Todavia, “tal correcção oficiosa só é possível desde que os autos comportem os elementos fundamentais da providência que se mostre adequada”. [...]

E, no caso em análise, já vimos que se mostram perfeitamente verificados os requisitos do arresto.

Cremos, assim, inteiramente procedentes as conclusões de recurso, não havendo motivo legal para o indeferimento liminar do procedimento cautelar."

MTS