"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



15/04/2019

Jurisprudência 2019 (5)

 
Providência cautelar;
suspensão da deliberação social; reenvio prejudicial


1. O sumário de RL 10/1/2019 (20767/18.9T8LSB.L1-6) é o seguinte:
 
I - A dedução de incidente de Direito da União, suscitada perante tribunal de cujas decisões seja admitido recurso, não impede o indeferimento liminar do requerimento em que o mesmo pedido se encontra inserido, sobretudo quando outra razão de indeferimento, que não apenas a questão relativamente à qual se pede o reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça, se verifica. 
 
II - O juízo de antecipação de improcedência manifesta contido em despacho liminar de indeferimento de procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais afigura-se correctamente formulado quando se não pode inferir, a partir do ordenamento jurídico nacional e internacional a que Portugal está vinculado e que consagra o direito a uma justiça imparcial, norma que proíba a participação de magistrados judiciais e do Ministério Público nos corpos sociais de uma associação desportiva, nem são alegados factos concretos da parcialidade activa ou contaminante de tais magistrados.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Nos termos conjugados dos artigos 380º, 376º, 365º, 548º e 546º nº 2, 2ª parte, e 590º nº 1, todos do CPC, a petição é indeferida, no despacho liminar, quando o pedido seja manifestamente improcedente.
 
O tribunal recorrido, invocando os requisitos de procedência do procedimento cautelar nominado de suspensão de deliberações sociais – a saber, a qualidade de sócio do requerente, a tomada de deliberação por associação ou sociedade contrária à lei, aos estatutos ou ao contrato e a existência de dano apreciável na execução da deliberação, conforme da decisão recorrida melhor consta e que nesta elucidação de direito não foi impugnada – passou a cotejar quanto no requerimento inicial se alinhou, e concluiu que tal alinhamento não iria integrar com sucesso o segundo pressuposto ou requisito e que não tinham sido alegados factos consubstanciadores do terceiro pressuposto, sendo por isso manifestamente previsível que a decisão a proferir fosse a de improcedência, do que, resultando a inutilidade do prosseguimento dos autos, se impunha indeferir liminarmente o requerimento inicial.
 
É desta decisão que vem interposto o presente recurso, em cujo petitório final se especifica que a decisão deve ser declarada nula e em consequência devem os autos ser remetidos à primeira instância para que julgue em conformidade ao Direito aplicável.
 
Nos termos do artigo 665º do CPC, sendo a decisão declarada nula, o tribunal de recurso substitui-se ao tribunal recorrido, quando evidentemente o possa fazer, isto é, quando esteja munido dos factos provados, após a correspondente actividade probatória a desenvolver na primeira instância. Significa isto que o sentido do petitório apresentado na sequência das conclusões do recurso tem o alcance de que a nulidade da decisão deve determinar que este tribunal de recurso determine ao tribunal recorrido que ordene o normal prosseguimento dos autos. 
 
Significa isto também que não compete a este tribunal de recurso proferir uma decisão de mérito, que afirme o bem fundado das posições factuais e jurídicas alegadas no requerimento inicial, mas sim, em primeira linha, escrutinar se tinha ou não o tribunal recorrido razões para indeferir liminarmente o requerimento inicial, e mais concretamente se era ou não manifesta a improcedência da providência requerida. [...]
 
Dizer agora que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação, nos termos dos artigos 635º, nº 3 e 639º nº 1, ambos do CPC aprovado pela Lei 41/2013 de 26 de Junho, pelo que, sem prejuízo dos casos de conhecimento oficioso, as questões que delas não constem se têm de considerar definitivamente decididas.
 
Ponderando a argumentação constante do requerimento inicial e do recurso, a questão da destituição da Direcção, enquanto deliberação tomada na Acta da Assembleia da 23 de Junho de 2018, estará a ser alvo de procedimento cautelar e eventualmente acção principal no âmbito do processo ao qual os requerentes logo indicarem irem requerer a apensação deste. Nos termos do relato também feito pelos requerentes e recorrentes, e que parece não oferecer dúvidas, a suspensão dos requerentes terá sido decidida em 2 de Agosto de 2018. Reitera-se portanto que se estamos num procedimento cautelar que visa a suspensão de uma deliberação tomada em Assembleia de 8 de Setembro, e se da respectiva acta nada consta, naturalmente porque as deliberações e decisões foram tomadas antes da sua data de realização, relativamente a elas não é no âmbito deste processo que se pode pedir a sua suspensão e portanto nada há a dizer. De igual modo, quanto à deliberação ou decisão que não admitiu a sufrágio a lista de que faziam parte os requerentes, porque ela não consta – aliás compreensivelmente porque a exclusão de uma lista de candidatura se faz previamente ao acto eleitoral e a Acta de 8 de Setembro se reporta precisamente ao acto eleitoral – da referida Acta. 
 
Julgamos outrossim que o interesse da alegação “impedimento ilegítimo, violador dos estatutos e da Lei pelo qual se vedou a apresentação a sufrágio da lista integrada pelos aqui requerentes (sob o fundamento de uma suspensão nula em si própria, mas mesmo que assim não fosse, jamais uma suspensão sem a sanção acessória da inelegibilidade prevista no nº 4 do pretenso Regulamento Disciplinar invocado (…) poderia servir de base ao impedimento de uma candidatura eleitoral” é o de demonstrar a existência dum conflito, entre os requerentes e os seus opositores, que assim melhor se apresenta como base do argumento da nulidade da eleição – e repare-se que é esta a deliberação em causa, e não a prévia admissão da lista em causa – de uma lista que integra magistrados judiciais e do Ministério Público.
 
Antes de entrarmos nesta questão, afaste-se ainda outro fundamento invocado contra a decisão recorrida, no sentido que a mesma nunca poderia ter decidido pelo indeferimento liminar do requerimento inicial porque nele havia sido deduzido incidente de Direito da União, pois que para o indeferimento deste incidente (obviamente decorrente do indeferimento liminar do requerimento inicial), o juiz nacional não tem competência, mostrando-se violado o artigo 267º do Tratado de Funcionamento da União Europeia. 
 
É que, e independentemente das questões que o recorrido sustenta nas conclusões das suas contra-alegações, o tribunal recorrido não decide em última instância, esta sua decisão de indeferimento liminar total (e não apenas do incidente) não é uma decisão que não admita recurso, e por isso, para o tribunal recorrido, o reenvio ao Tribunal de Justiça não é obrigatório, antes se insere numa sua faculdade, cuja ponderação lhe pertence e compete, de acordo com a atribuição de competência feita pelo próprio artigo 267º do Tratado de Funcionamento da União Europeia. 
 
Dispõe com efeito o artigo 267º do Tratado de Funcionamento da União Europeia o seguinte: 
 
“O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial:
a) Sobre a interpretação dos Tratados;
 
b) Sobre a validade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.
 
Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie.
 
Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal.
 
Se uma questão desta natureza for suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional relativamente a uma pessoa que se encontre detida, o Tribunal pronunciar-se-á com a maior brevidade possível”.
 
Pode até defender-se que a faculdade de suscitar a decisão do Tribunal de Justiça, a título prejudicial, sobre uma determinada questão constitua um poder-dever do tribunal nacional cuja decisão é susceptível de recurso, e até se admite que há pouca elaboração doutrinária e jurisprudencial sobre a questão do que fica vedado a magistrados judiciais em função da imparcialidade a que estão sujeitos, mas a ponderação da oportunidade do reenvio está ainda sujeita a uma outra ordem de consideração, mais concretamente, à habilitação da decisão do Tribunal de Justiça à decisão global da causa. Com isto significamos que num caso, como é o dos autos, em que o tribunal recorrido considerou que, além de não resultar violação de estatutos nem lei na presença dos magistrados judiciais na lista vencedora, a manifesta improcedência resultava ainda da não alegação de factos concretos que integrassem o dano, tal improcedência manifesta resultando assim não apenas da questão sobre a qual se suscitou o incidente de Direito da União, mas de um outro fundamento, suscitar o reenvio prejudicial e obter uma decisão do Tribunal de Justiça não traria qualquer resultado útil, na medida em que não impediria a decisão de manifesta improcedência pelo fundamento sobrante. 
 
Em rigor, a possibilidade de reenvio prejudicial não constitui uma oportunidade aberta de construção de jurisprudência, uma ocasião de consultar o Tribunal de Justiça, antes se encontra vinculada à integração da decisão do Tribunal de Justiça na decisão do processo. 
 
Anote-se que nas conclusões do recurso não vem renovado o incidente, e que de resto não cumpriria a um tribunal de recurso que aprecia se o requerimento inicial não devia, ou devia ter sido liminarmente indeferido, o objecto do recurso não nos permite sequer pensar na oportunidade de ser este tribunal de recurso a determinar o dito reenvio. 
 
Em conclusão, não é a decisão nula por falta de competência do tribunal recorrido para indeferir o incidente de Direito da União enquanto consequência da sua decisão de indeferir liminarmente todo o requerimento inicial do presente procedimento cautelar, e não era a dedução desse incidente que obrigava o tribunal recorrido a não ter indeferido liminarmente o requerimento inicial."
 
[MTS]