"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



02/04/2019

Jurisprudência 2018 (209)


Documento autêntico; força probatória;
incapacidade acidental

1. O sumário de STJ 11/12/2018 (342/15.0T8VPA.G1.S1) é o seguinte:

I - A força probatória material dos documentos autênticos restringe-se, nos termos do art. 371.º, n.º 1, do CC, aos factos, praticados ou percepcionados pela autoridade ou oficial público, que emanam dos documentos, já não abarcando, porém, a veracidade e eficácia jurídica das declarações que deles constam.

II - O juízo probatório resultante da apreciação crítica da prova feita pela Relação à luz do critério da livre convicção nos termos do art. 607.º, n.º 5, do CPC, aplicável por via do art. 663.º, n.º 2, desse Código e dentro do poder de cognição que lhe é conferido pelo art. 662.º, n.º 1, do mesmo diploma, não é sindicável pelo STJ em sede de revista (arts. 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 2, do CPC).

III - Resulta do art. 257.º, n.º 1, do CC, que o acto será anulável com fundamento em incapacidade acidental se a incapacidade for notória, no sentido de manifesta a uma pessoa de normal inteligência, ou conhecida da outra parte. São, assim, anuláveis as declarações que constam de documento autêntico quando o declarante delira, referindo factos desconexos com a realidade, exteriorizando sinais de tal estado.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"4. Defende por fim a recorrente que, no acórdão recorrido, se decidiu mal quanto ao mérito, ao invocar-se como fundamento o disposto no art. 246º do CC. Devia a Relação, acrescenta, ter aplicado o regime do art. 257º do CC (incapacidade acidental).

A este respeito, consta da fundamentação do acórdão:

III. E, relativamente a tal decisão de mérito afasta-se este Tribunal de recurso, por um lado, e desde logo, e como bem referem os apelantes, por não decorrer dos factos provados a verificação de qualquer contrato ou acordo entre as partes com vista a remissão de dívida nos termos do artº 863º-nº1 do Código Civil, tendo, aliás, a Ré negado frontalmente na contestação a existência de qualquer montante em dívida, não se mostrando verificada a previsibilidade do artº 863º do citado código, não se demonstrando a verificação da figura jurídica de “Remissão”.

Por outro lado, atento o pedido e os factos provados nº 3 a 8 se concluindo pela aplicabilidade ao caso sub judice da previsibilidade do artº 246º do Código Civil, por via do mesmo sendo nula e de nenhum efeito a declaração do falecido AA constante do “Certificado” de 28/1/2013, a que se alude no facto provado nº 3, tendo resultado provado que “No circunstancialismo referenciado em 3), AA apresentava-se em estado de delírio, não compreendendo o sentido das palavras que proferiu perante a Notária do concelho de ...”, e, “A Ré EE apenas pagou a quantia global de 22.200,00€ (vinte e dois mil e duzentos euros) por conta do empréstimo indicado em 1).” (cfr. factos provados nº 8 e 7, supra, concluindo-se não ter o declarante consciência de fazer uma declaração negocial á data do acto, consequentemente, procedendo os pedidos formulados em b), e c), e, relativamente á al.d) o pedido de condenação da Ré no valor remanescente em divida, sendo este no montante de € 22.800,00, devendo tal quantia ser acrescida dos juros moratórios devidos desde a data da citação e até integral pagamento, nos termos dos artº 804º- nº 2 e 805º-nº1 do Código Civil ( cfr. pedido deduzido).

A qualificação jurídica acolhida no acórdão recorrido não parece realmente a mais correcta.

Dispõe o art. 246º do CC que a declaração não produz qualquer efeito, se o declarante não tiver consciência de fazer uma declaração negocial ou for coagido pela força física a emiti-la; mas, se a falta de consciência da declaração foi devida a culpa, fica o declarante obrigado a indemnizar o declaratário.

Tem sido reconhecido que a falta de consciência da declaração negocial engloba quer a falta de vontade de acção – isto é, a consciência e vontade de um comportamento declarativo –, quer a falta de vontade da declaração – ou seja, a vontade de emitir a declaração como declaração negocial [...].

A falta de consciência da declaração abrange, assim, "a falta de vontade de acção ou a falta de vontade ou, pelo menos, a consciência da declaração" e tem por consequência que o negócio não produz qualquer efeito, "mesmo que a falta de consciência da declaração não seja conhecida ou cognoscível do declaratário" [...].

Trata-se de um dos casos mais graves de divergência (não intencional) entre a vontade e a declaração, em que, podendo existir vontade de acção, "falta a vontade de acção como declaração, a consciência de se assumir um comportamento declarativo ou a aparência de uma declaração"[...],[...].

Nos termos do art. 257º do CC:

1. A declaração negocial feita por quem, devido a qualquer causa, se encontrar acidentalmente incapacitado de entender o sentido dela ou não tinha o livre exercício da sua vontade é anulável, desde que o facto seja notório ou conhecido do declaratário.

2. O facto é notório, quando uma pessoa de normal diligência o teria podido notar.

A anulação da declaração negocial por incapacidade acidental depende da verificação e prova destes requisitos:

a) Que o autor da declaração, no momento em que a faz, se encontrava, ou por anomalia psíquica, ou por qualquer outra causa (embriaguez, estado hipnótico, droga, etc.), em condições psíquicas tais que não lhe permitiam o entendimento do acto que praticou ou o livre exercício da sua vontade;

b) Que esse estado psíquico era notório ou conhecido do declaratário [...].

Na medida em que estas situações afectam a formação correcta da vontade do declarante, traduzindo-se também numa falta de vontade da declaração, coloca-se o problema de compatibilização do regime da incapacidade acidental com o de outras faltas ou vícios da vontade, como a falta de consciência da declaração, prevista no citado art. 246º.

Menezes Cordeiro refere que "ele (art. 257º) parece sobrepor-se ao artigo 246º e às figuras nele contempladas da coacção física e da falta de consciência da declaração: em qualquer destas duas hipóteses, o declaratário ou está acidentalmente incapacitado de entender o sentido da declaração ou não tem o livre exercício da sua vontade. De seguida, ele usa uma linguagem centrada na pessoa do declarante e não na sua declaração. E, por fim, ele fixa um regime dissonante: a (mera) anulabilidade, contra a nulidade – há doutrina que fala mesmo em inexistência – originada pela coacção ou pela falta de consciência da declaração" [Menezes Cordeiro (Tratado de direito Civil Português, I, Tomo I, [508]].

Por seu turno, C. Mota Pinto sublinha que a incapacidade acidental não é regulada na secção das incapacidades por não traduzir uma condição permanente do sujeito, tendo sido incluída entre os casos de falta ou vícios da vontade. Acrescenta que o problema de saber se se trata rigorosamente de uma falta (como no caso do art. 246º) ou de um vício não tem interesse prático, uma vez que o tratamento é sempre o do art. 257º [ C. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª ed. (Pinto Monteiro/P. Mota Pinto), [ 499 (n. 671)[],[...].

O art. 257º abrange as chamadas incapacidades naturais, que não reflectem uma situação permanente do declarante, existindo apenas nos momentos em que se verificam as suas causas.

Constitui um tipo particular de falta de vontade da declaração, pois prevê especificamente os casos em que o declarante se encontra privado da capacidade necessária para entender o sentido da sua declaração.

Daí que já se tenha entendido que "o art. 246º é preceito aplicável (apenas) a pessoas capazes, no sentido de não incapacitadas, isto é, dotadas de discernimento ou capacidade necessária para entender o sentido da declaração", assim se distinguindo o âmbito de aplicação dos dois regimes [Acórdão do STJ de 04.10.2001, CJ STJ IX, 3, 61. Cfr., também, os Acórdãos da Relação de Coimbra de 11.07.2000, CJ XXV, 4, 6 e da Relação de Lisboa de 19.11.2009, em www.dgsi.pt.. No mesmo sentido, Revista dos Tribunais, Ano 88-94].

Repare-se, por outro lado, que, ao regular o regime jurídico aplicável aos negócios celebrados pelo incapaz, antes de anunciada a acção de interdição, o art. 150º do CC remete expressamente para o disposto acerca da incapacidade acidental. [...]

No caso, ficou provado que AA apresentava uma situação de delírio, não compreendendo o sentido das palavras que proferiu perante a Sra. Notária.

Assim, por essa razão, estava, nesse momento, temporariamente privado de discernimento ou da capacidade de entender o sentido da declaração que emitiu.

A questão que aqui se coloca deve, pois, ser resolvida no âmbito da incapacidade acidental (art. 257º) e não no da falta de consciência da declaração negocial (art. 246º)."
 
[MTS]