"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/04/2019

Jurisprudência 2018 (210)


Taxa de justiça;
remanescente


1. O sumário de RE 20/12/2018 (748/14.2T8STR.E2) é o seguinte:

O n.º 7 do artigo 6.º do Regulamento das Custas Processuais constitui uma norma excepcional que visa atenuar a obrigação de pagamento da taxa de justiça, nas acções de valor superior a 275.000,00 euros, adequando esse valor à actividade processual desenvolvida, evitando a desproporcionalidade que poderia resultar da mera aplicação dos valores constantes nas tabelas.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A taxa de justiça é a prestação pecuniária que o Estado, em regra, exige aos utentes do serviço judiciário no quadro da função jurisdicional por eles causada ou da qual beneficiem, ou seja, trata-se do valor que os sujeitos processuais devem prestar como contrapartida mínima relativa à prestação daquele serviço.

Nas causas de valor superior a 275.000,00 euros, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento (artigo 6º, nº 7, do Regulamento das Custas Processuais).

O nº 7 do artigo 6º do Regulamento das Custas Processuais, que resulta da alteração legislativa promovida pela Lei nº 7/2012, de 13 de Fevereiro, constitui uma norma excepcional que visa atenuar, a obrigação de pagamento da taxa de justiça, nas acções de valor superior a 275.000,00 euros. Neste dispositivo estabeleceu-se a possibilidade de dispensa ou redução do valor da taxa de justiça, adequando esse valor à actividade processual desenvolvida, evitando a desproporcionalidade que poderia resultar da mera aplicação dos valores constantes nas tabelas. 

Todavia, esta possibilidade está subordinada à existência de determinados pressupostos habilitantes como sejam os relacionados com a ausência de complexidade da causa e com o momento da apresentação do pedido nos casos em que tal não seja oficiosamente determinado pelo Tribunal.

Sublinha-se que esta faculdade decorre necessariamente de uma decisão constitutiva proferida pelo juiz e daí que, não se pronunciando oficiosamente sobre esta matéria, é de inferir que o julgador toma posição implícita no sentido de que não estão preenchidos os elementos constitutivos que viabilizariam a dispensa ou a redução da taxa de justiça remanescente.

Aparentemente e no que toca ao requisito da eventual complexidade apenas se poderia afirmar que a mesma estaria potencialmente retratada no valor do pedido. No entanto, o factor decisivo no preenchimento do conceito deve estar indexado aos meios humanos, técnicos, logísticos e temporais disponibilizados pelos Tribunais que se pronunciaram sobre o objecto da causa, em associação com a substância qualitativa das diferentes peças processuais presentes nos autos e com a natureza das diligências de prova produzidas em sede de julgamento e nesse parâmetro avaliativo a causa não assume essa feição. 

Assim, com toda a propriedade, por via da concatenação entre as características da acção e os pressupostos constantes dos artigos 6º, nº 7 [...], do Regulamento das Custas Processuais e 530º, nº 7 [...], do Código de Processo Civil, o Juízo Central de Competência Cível de Santarém entendeu que existia fundamento para promover a redução da taxa de justiça remanescente a 50% do valor devido.

Aquilo que se pergunta é se, face às aludidas especificidades da causa, o Tribunal «ad quem» deve decidir no sentido da dispensa do pagamento da taxa de justiça remanescente? 

A questão fulcral está associada ao valor das custas a suportar e à sua relação com o princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa e com o direito de acesso à justiça previsto no artigo 20º da Lei Fundamental.

Nesta equação normativa é de considerar que as custas judiciais assumem a natureza de taxa e não de imposto [...], sendo que, tal como dita a jurisprudência constitucional, o facto do valor da taxa de justiça acompanhar automática e ilimitadamente o aumento do valor da causa não pode permitir que se atinjam «taxas de justiça de elevadíssimo montante, flagrantemente desproporcionadas relativamente ao custo do serviço prestado» [...]. 

É incontroverso que os critérios de cálculo da taxa justiça podem condicionar o exercício do direito fundamental de acesso à justiça, tal como ele é configurado pelo artigo 20º da Constituição da República Portuguesa [...].

Nesta ordem de ideias, embora não esteja consagrado o direito de acesso tendencialmente gratuito aos Tribunais, de harmonia com a Lei Fundamental o custo associado ao recurso aos Tribunais não pode ser tão elevado que da sua aplicação resulte uma verdadeira negação de Justiça aos cidadãos e às empresas [...].

Isto é, deve existir uma correspectividade mínima entre os serviços prestados e o custo razoável do sistema de justiça [...], sob pena de, assim não sendo, complementarmente, estar colocado em causa indirectamente o direito de propriedade relativamente às disponibilidades financeiras que, para além da medida do justo, são adjudicadas ao pagamento das custas processuais. 

E, assim, quando por via dessa normação abstracta o custo do acesso ao direito for notoriamente exagerado, cumpre aos Tribunais corrigir as eventuais distorções e reduzir o montante em causa à sua justa medida, promovendo uma interpretação conforme à Constituição no sentido do redimensionamento da proporcionalidade entre o serviço prestado pelo Estado e as utilidades que os utentes da Justiça retiram da actividade jurisdicional exercida pelos Tribunais, através da optimização da regra prevista no nº 7 do artigo 6º do Regulamento das Custas Processuais.

Com esta faculdade, como se retira da jurisprudência mais qualificada, pretende-se, pois, evitar a manifesta desproporção entre o valor cobrado de taxa de justiça e o custo implicado na acção, recorrendo, para tal, a critérios de razoabilidade, proporcionalidade e adequação, designadamente reportados à utilidade ou valor económico dos interesses atendidos, comportamento e lisura processual das partes e complexidade da tramitação processual [...][...] [...].

Assim, neste contexto, entende-se que, ao abrigo do direito constitucionalmente garantido de efectivo acesso à justiça, a interligação entre o valor da causa e o montante da taxa de justiça a cobrar a final torna-se excessivamente oneroso para as partes, em especial para aquelas que foram demandadas e que aliás obtiveram ganho na causa.

No caso concreto a taxa de justiça remanescente atinge o valor de cobrança da ordem dos € 160.000,00 (cento e sessenta mil euros), a repartir entre Autor e Réus, a uma razão média por interessado superior a 50.000,00 € (cinquenta mil euros), tal como está devidamente retratado nos pontos 6 a 8 dos factos com interesse para a resolução da presente hipótese judicanda. 

Donde, o intérprete deve fazer uso da filosofia e da intenção legislativas presentes naquela norma para corrigir a distorção aqui detectada. E, por conseguinte, face às características da presente acção, à projecção da situação económica dos visados e aos efeitos da exigência do pagamento na esfera jurídica dos demandados, em associação com o princípio da proporcionalidade e da proibição do excesso, este colectivo de Juízes Tribunal da Relação de Évora propenderia, no mínimo, a reduzir significativamente o valor da taxa de justiça remanescente a cobrar na conta final. 

Contudo, é iniludível a linha de continuidade existente entre a faculdade de redução da taxa de justiça presente no número 7 do artigo 6º do Regulamento das Custas Processuais e a questão da obrigatoriedade de pagamento da mesma a cargo do Réu que venceu totalmente o processo e que encontra a sua sede no número nº 9 do artigo 14º do mesmo diploma.

Recentemente, através do acórdão registado sob o nº 615/2018, datado de 21 de Novembro de 2018, o Tribunal Constitucional decidiu julgar inconstitucional, a norma que impõe a obrigatoriedade de pagamento do remanescente da taxa de justiça ao réu que venceu totalmente o processo, obrigando-a a pedir o montante que pagou em sede de custas de parte, resultante do artigo 14º, nº 9, do Regulamento das Custas Processuais.

É patente que a norma cuja conformidade constitucional foi apreciada é distinta daquela que neste recurso foi chamada à colação – neste aresto estava excluída a apreciação da questão da constitucionalidade da norma emanada no nº 7 do artigo 6º do Regulamento das Custas Processuais –, mas aquilo que importa é a consagração do princípio, que num tribunal conservador como é o Tribunal Constitucional exprime uma linha orientadora que vai contagiar toda a jurisprudência futura no domínio da fiscalização concreta. E com a qual aliás concordamos. 

Diz aquele aresto do Tribunal Constitucional que «a exigência do pagamento do remanescente da taxa de justiça ao réu que, por ser absolvido do pedido, venceu totalmente a acção civil e, por conseguinte, não é condenado em custas, obrigando-o a obter o montante que pagou em sede de custas de parte, revela-se, pois, uma solução inconstitucional porque comprime excessivamente o direito fundamental de acesso à justiça, previsto no artigo 20º, nº 1, da Constituição, impondo um ónus injustificado face ao interesse público em presença em violação do princípio da proporcionalidade decorrente do artigo 18º, nº 2, da Constituição».

Complementarmente, no alinhamento dos respectivos argumentos conclusivos, concordamos com o Tribunal Constitucional [Salvador da Costa critica a posição do Tribunal Constitucional no Comentário ao Acórdão do Tribunal Constitucional nº 615/2018, de 21 de Novembro, publicado no Blog do Instituto Português do Processo Civil, datado de 11/12/2018], quando assevera que «o réu é chamado à demanda, ficando designadamente sob o ónus de apresentação da contestação indispensável a prevenir a condenação no pedido. Se o réu que apenas dá resposta ao impulso processual do autor, meramente defendendo-se, obtém a absolvição a final relativamente à totalidade do pedido – o que significa o desmerecimento da causa que o levou aos tribunais –, não se pode sustentar que tenha causado custos significativos à administração da Justiça. Ora, quando se exige a quem não recorreu à justiça – nem dela procurou retirar qualquer benefício –, tendo sido absolvido da pretensão do autor, o pagamento de parte substancial dos seus custos, surge um problema de justificação ao nível do custo-benefício».

Importa referir que a parte vencedora da acção poderá obter a compensação dos valores que despendeu a título de taxas de justiça através de meios alternativos enunciados na lei como sejam a remessa à parte responsável da respetiva nota discriminativa e justificativa para que esta proceda ao pagamento (artigo 25º, nº 1, do RCP), a cobrança em execução de sentença (artigo 25º, nº 3, do RCP) ou a instauração de execução por custas que será apensada à execução por custas intentada pelo Ministério Público, nos termos do nº 3 do artigo 36º do RCP.

No entanto, estas vias de obtenção da compensação estão na prática afastadas na situação concreta, pois, para além do mais, a pessoa responsável pelo pagamento de custas goza do benefício de apoio judiciário. E, como tal, em tese, existe uma clara presunção da sua incapacidade para promover o pagamento de custas que rondavam os € 160.000,00 (cento e sessenta mil euros), antes da redução já efectuada pelo Juízo Central de Competência Cível de Santarém.

É certo que, à luz da legislação, ficam ressalvados os casos de insuficiência económica da parte a quem foi concedido apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo. Aqui, tal como resulta da disciplina consagrada no nº 6 do artigo 26º [...] do Regulamento das Custas Processuais, o legislador estabeleceu que o reembolso das taxas de justiça pagas pelo vencedor é suportado pelo Instituto de Gestão Financeira e das Infraestruturas da Justiça, I.P.

É assim perfeitamente inútil obrigar os recorrentes a um pagamento que, tendencialmente, nunca será satisfeito pelo Autor da acção, face à situação económica que determinou que lhe fosse concedido o benefício do apoio judiciário e que, a ser exigido esse adiantamento, o mesmo teria de ser, em momento posterior, reembolsado pelo Estado, através do Instituto de Gestão Financeira e das Infraestruturas da Justiça, I.P.

Se a ideia inicial de valorização dos princípios da razoabilidade e de equilíbrio prestacional, tendo em atenção os critérios da utilidade económica da causa, da complexidade do processado e do comportamento procedimental das partes, apontava de forma rectilínea para o excesso da taxa de justiça concretamente arbitrada, a jurisprudência entretanto emitida pelo Tribunal Constitucional justifica manifestamente que se dispensem os recorrentes do respectivo pagamento.

Neste envolvimento, face à plasticidade da norma, que permite a respectiva dispensa do pagamento da taxa de justiça remanescente não se torna necessário recusar a aplicação da norma com base na sua inconstitucionalidade. Na realidade, basta que o aplicador da lei salvaguarde uma solução que beneficie a interpretação conforme à Constituição da República Portuguesa. A não ser assim, de outro modo, emergiria uma clara violação dos princípios da proporcionalidade e da adequação decorrente do Estado de Direito consagrado no artigo 2º da Lei Fundamental e que beliscaria igualmente o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva depositado no artigo 20º do referido diploma. 

Em suma, nos casos em que o Autor goza do benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos, a exigência do pagamento do remanescente da taxa de justiça aos Réus que, por serem absolvido do pedido, venceram totalmente a acção civil e, por conseguinte, não são condenados no pagamento de custas, torna-se uma solução demasiado onerosa, não devendo os mesmos ficar a aguardar o reembolso através do Instituto de Gestão Financeira e das Infraestruturas da Justiça, I.P. 

Na realidade, por a falta de complexidade da acção assim o justificar, a situação concreta justifica que se dispense os Réus vencedores do pagamento dessa taxa de justiça remanescente por configurar a interpretação mais conforme aos princípios constitucionais que estão proclamados a propósito do Estado de Direito e da garantia de acesso ao Direito e à Justiça."

[MTS]