"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



01/04/2019

Jurisprudência 2018 (208)


Decisão-surpresa; 
nulidade; excesso de pronúncia*


1. O sumário de RG 6/12/2018 (45/17.1T8MAC.G2) é o seguinte:

I - Nos termos dos artºs 591º nº 1 al. b) e 593º nº 1 do CPC a audiência prévia é obrigatória sempre o que o Juiz tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa.

II - O despacho que marque a audiência prévia deve indicar o seu objecto e finalidade (art.º 591º nº 2 do CPC).

III - A audiência prévia não foi convocada com vista a “facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa”, nem no seu decurso tal intenção foi comunicada às partes.

IV - Tal omissão, influindo no exame ou decisão da causa, configura uma nulidade processual (art.º 195º nº 1 do CPC), que inquina a própria decisão proferida (saneador sentença) e que pode ser arguida em sede de recurso a interpor da mesma (Ac. do STJ de 22.02.2017, proc. 5384/15.3T8GMR.G1.S1).

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Em face das conclusões dos apelantes a primeira questão que cumpre apreciar é a da alegada nulidade do despacho saneador/sentença por traduzir uma decisão-surpresa em violação do princípio do contraditório.

No caso em apreço, na sequência do nosso acórdão que, julgando não verificada a excepção do caso julgado, revogou o despacho saneador na parte em que absolvera a ré da instância, devolvidos os autos à 1ª instância, nesta foi exarado despacho do seguinte teor:

– «Muito embora na presente acção não se mostra obrigatória a audiência prévia, o certo é também que tal diligência se nos afigura, no caso, relevante para esclarecer qual a concreta pretensão dos autores, dado que, da leitura da petição inicial, não ficámos com a convicção de que visassem, salvo o devido respeito por opinião contrária, a extinção de qualquer aproveitamento de águas, mas sim a extinção das obras concretamente realizadas, furo e poço, reconhecidas por sentença transitada em julgado da propriedade da ré. Tal convicção nossa reside não apenas do teor do petitório, mas igualmente, a título exemplificativo, dos arts. 18.º, 26.º e do ponto 6. da carta alegada no art. 20.º, ambos da petição inicial.

Assim, designamos o dia 23/4/2018/, pelas 16h00m para realização de uma audiência prévia e não antes, por indisponibilidade de agenda, com vista a discutir as posições das partes, com vista à delimitação dos termos do litígio e, igualmente, realizar a tentativa de conciliação entre as partes.
 
Notifique, cumprindo o disposto no art. 151.º/1 do Código de Processo Civil.»


Realizada a audiência prévia foi proferido saneador sentença, isto é, conheceu-se do mérito da causa.

Nos termos dos artºs 591º nº 1 al. b) e 593º nº 1 do CPC a audiência prévia é obrigatória sempre o que o Juiz tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa.

O despacho que marque a audiência prévia deve indicar o seu objecto e finalidade (art.º 591º nº 2 do CPC).

No caso em apreço e como resulta do despacho acima reproduzido, a audiência não foi convocada com vista a “facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa” – citada al. b) do nº 1–, mas sim “com vista à delimitação dos termos do litígio e realizar a “tentativa de conciliação entre as partes” – als. a) e c) do nº 1.

Tão pouco na audiência prévia e como patenteia a respectiva acta, foi comunicada às partes a intenção de conhecer imediatamente do mérito da acção.

Assim, foi vedado às partes, em primeiro lugar, pronunciarem-se sobre a desnecessidade de produção de prova relativamente à matéria controvertida e sobretudo, de produzirem alegações finais sobre o mérito da causa, violando-se o princípio do contraditório, que é um dos pilares fundamentais do processo civil (art.º 3º nº3), de que o citado art.º 591º é mera emanação e concretização.

Tal omissão, influindo no exame ou decisão da causa, configura uma nulidade processual (art.º 195º nº 1 do CPC), que inquina a própria decisão proferida (saneador sentença) e que pode ser arguida em sede de recurso a interpor da mesma [Ac. do STJ de 22.02.2017 (5384/15.3T8GMR.G1.S1) :”Esta nulidade processual coberta pelo acórdão, ainda que não se configure como uma das nulidades previstas no art.º 615.º n.º 1 do CPC, acaba por inquinar o mesmo, ferindo-o de nulidade”].

Consequentemente impõe-se anular o saneador-sentença e reabrir-se a audiência prévia, desta feita comunicando-se às partes a intenção de conhecer do mérito da causa no saneador e respectivos fundamentos, nomeadamente sobre a desnecessidade de produção de prova relativamente à matéria que se encontra controvertida, permitindo-lhes pronunciarem-se sobre essa questão, bem como facultar-lhes a discussão de facto e de direito sobre o mérito da causa,

Fica prejudicada a apreciação das demais questões colocadas na presente apelação, nomeadamente por se ter decidido sem produção de prova.

*3. [Comentário] Apenas um comentário (talvez já esperado): ao contrário do que se afirma no acórdão, transcrevendo STJ 22/2/2017, o vício configura mesmo uma das nulidades previstas no art. 615.º, n.º 1, CPC (em concreto, o excesso de pronúncia previsto no art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC).

Aliás, não pode deixar de ser assim. O objecto de qualquer recurso não são nulidades processuais, mas antes decisões. O que o recorrente impugna é uma decisão e o que o tribunal ad quem aprecia, confirmando ou revogando, é essa mesma decisão. Portanto, se se verificou uma nulidade no processo que decorreu no tribunal a quo, o tribunal ad quem só pode conhecer dela se e na medida em que a mesma se reflicta num vício da decisão recorrida.

MTS