A ré insurge-se contra a sentença na parte em que fixou em € 28 500 o valor devido como indemnização pelo dano biológico/perda de ganho, em sede de dano patrimonial, considerando que deve ser reduzida para valor entre € 15 000 a € 20 000.
A autora alegou que, por causa do acidente, não pode mais exercer a sua atividade profissional, requerendo a condenação da Ré no pagamento de uma indemnização correspondente às perdas salariais sofridas até à data da propositura da presente ação, que quantificou em € 19 500, assim como noutra a liquidar em execução de sentença, por ser ainda imprevisível a data em que poderá retomar a sua atividade (artigos 57º e 58º, da petição inicial).
Não se tendo provado que a Autora exercesse, à data, a profissão de ama e que ganhasse a remuneração mensal de € 1.500,00, a sentença considerou improcedente o pedido de reconhecimento do direito à indemnização correspondente aos salários perdidos.
Todavia, arbitrou-lhe uma indemnização de € 28 500 pela dupla vertente de perda da capacidade de ganho e dano biológico.
Perante esta decisão, a primeira questão que se coloca é a de saber se o tribunal a quo, por força do princípio do dispositivo, se encontrava impedido de arbitrar esta indemnização, uma vez que a autora não formulou concreto pedido parcelar neste sentido, tendo-se limitado a pedir perdas salariais concretas e quantificadas, cuja prova não logrou obter.
Com efeito, o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes (art. 3º, nº 1, do CPC) e, na sentença, o juiz não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo os casos de matéria de conhecimento oficioso (art. 608º, nº 2, do CPC).
Todavia, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art 5º, nº 3, do CPC).
Ora, no caso sub judice, a autora invoca como causa de pedir a existência de um acidente sofrido com um kart, e considera que a ré é civilmente responsável pela indemnização dos danos sofridos em consequência desse acidente. Peticiona uma indemnização de um determinado valor global pelo conjunto de danos sofridos.
A circunstância de a autora ter invocado determinados danos que não se provaram atinentes a concretas perdas salariais não impede que o tribunal, perante os factos provados, considere a existência de um dano biológico que configura em si mesmo um dano indemnizável e arbitre a correspondente indemnização, pois esta decisão contém-se dentro dos limites da causa de pedir invocada e do pedido formulado, implicando unicamente um enquadramento jurídico distinto do que foi efetuado pela autora, o qual é permitido face à faculdade conferida ao juiz pelo art. 3º [5.º], nº 3, do CPC, que lhe confere liberdade de indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.
Consequentemente, não se vislumbra a existência de qualquer violação do princípio do dispositivo.
Neste mesmo sentido, considerou-se no Acórdão do STJ, de 3.11.2016, (in www.dgsi.pt) que “a circunstância de a A., na petição inicial, não ter configurado juridicamente a sua pretensão indemnizatória no âmbito desta peculiar categoria normativa do dano biológico não obsta a que o Tribunal, no exercício dos seus poderes de livre qualificação jurídica da factualidade invocada como causa de pedir, possa proceder – como procedeu efectivamente - a uma correcção da configuração jurídico normativa da pretensão, reconduzindo a matéria facto alegada ao quadro normativo que tenha por adequado.”
Aliás, apenas se aflorou esta questão face ao referido pela ré nas suas alegações. Todavia, é curioso notar que, embora a ré comece por se insurgir contra a sentença e invocar decisão surpresa e violação do princípio do dispositivo, no desenvolvimento das suas conclusões acaba por aceitar a admissibilidade do arbitramento da indemnização, pedindo apenas a sua redução por reputar exagerado o valor fixado.
Face ao exposto, entende-se que nada impedia a fixação pelo tribunal a quo da indemnização pelo dano biológico/perda de capacidade de ganho, importando, todavia, analisar se o montante fixado é ou não adequado. [...]
O dano biológico consiste numa lesão corporal que afeta a integridade físico-psíquica do lesado e que implica uma perda da plenitude das suas capacidades pessoais.
É um dano complexo posto que, traduzindo-se na ofensa da saúde e integridade física, tem repercussões quer a nível patrimonial, quer a nível não patrimonial.
No que respeita às consequências patrimoniais, tal dano pode implicar uma concreta perda de rendimentos, como ocorrerá nas situações em que o lesado deixou de auferir um determinado montante pecuniário durante o período de tempo em que esteve incapacitado para exercer a sua atividade profissional.
Porém, independentemente da concreta perda de rendimentos, o dano biológico enquanto défice funcional de que passou a padecer o lesado no plano específico das atividades profissionais, tem ainda uma dupla repercussão pois, por um lado, implica um esforço acrescido que o lesado terá que despender para compensar tal défice, de modo a prosseguir uma atividade laboral e, por outro lado, implica uma limitação de oportunidades profissionais pois “o lesado vê diminuída a amplitude ou o leque das atividades laborais que pode perspectivar exercer plenamente no futuro, ficando – por via da perda de capacidades funcionais- necessariamente condicionado e «acantonado» no exercício de actividades menos exigentes – o que naturalmente limita de forma relevante as suas potencialidades no mercado do trabalho (facto particularmente atendível numa organização económica que crescentemente apela à precariedade e à necessidade de mudança e reconversão na profissão exercida, a todo o momento susceptível de mutação ao longo da vida do trabalhador)” (cf. Acórdão do STJ, de 21.1.2016, in www.dgsi.pt).
Na verdade, a força de trabalho de uma pessoa é um bem capaz de propiciar rendimentos. Logo, a incapacidade funcional importa sempre diminuição dessa capacidade, obrigando o lesado a um maior esforço e sacrifício para manter o mesmo estado antes da lesão e, inclusivamente, provoca inferiorização, no confronto do mercado de trabalho, com outros indivíduos por tal não afetados (cf. Acórdão do STJ, de 7.6.2011, in www.dgsi.pt).
A doutrina e a jurisprudência estão de acordo em que pelo facto de o ofendido não exercer à data do acidente qualquer profissão, não está afastada a existência de dano patrimonial, compreendendo-se neste as utilidades futuras e as simples expectativas de aquisição de bens. Assim, a este título, merecem ressarcimento os lesados que se encontram fora do mercado do trabalho, seja a montante – caso das crianças e dos jovens ainda estudantes, ou não, que ainda não ingressaram no mundo laboral –, seja a jusante, como os reformados/aposentados, ou os desempregados (cf. Acórdão do STJ, de 25.11.2009, in www.dgsi.pt).
É de realçar a dificuldade e delicadeza subjacente ao cálculo do dano biológico na vertente patrimonial, enquanto perda futura de capacidade de ganho, pois exige a previsão, sempre problemática, de dados que apenas são constatáveis no futuro e por um muito longo período de tempo, como seja a evolução da economia, da produtividade, do emprego, dos salários ou da inflação (cf Acórdão da Relação de Guimarães, de 19.10.2017, in www.dgsi.pt).
Como se escreveu no Acórdão do STJ, de 10.11.2016 (in www.dgsi.pt) “constitui entendimento jurisprudencial reiterado que a indemnização a arbitrar por tais danos patrimoniais futuros deve corresponder a um capital produtor do rendimento de que a vítima ficou privada e que se extinguirá no termo do período provável da sua vida, determinado com base na esperança média de vida (e não apenas em função da duração da vida profissional ativa do lesado, até este atingir a idade normal da reforma, aos 65 anos).”
Sobre a determinação do valor indemnizatório correspondente ao dano biológico, na vertente de danos patrimoniais futuros, segue-se o Acórdão desta Relação de Guimarães, de 19.10.2017, (in www.dgsi.pt) onde se considera que “como é posição sucessivamente reiterada pelo nosso mais Alto Tribunal, o tribunal está apenas sujeito aos critérios que emergem do preceituado no Código Civil e, em particular ao critério da equidade, pois que os critérios consagrados na Portaria n.º 377/2008, de 26.05 (ou na Portaria n.º 679/2009, de 25.06, que procedeu à sua alteração/atualização), não obstante possam (ou devam) ser considerados pelo julgador, não se sobrepõem aos que decorrem do restante sistema substantivo e, sobretudo, em primeiro lugar, do Código Civil.
De facto, como se pode alcançar da nossa jurisprudência, é pacífico o entendimento de que os critérios previstos nas citadas Portarias não substituem os critérios de fixação da indemnização consignados no Código Civil e não vinculam os tribunais em tal tarefa casuística, visando, sobretudo, em sede de apresentação de proposta célere e razoável por parte das seguradoras ao lesado, servir de critério orientador para esse confessado fim.” [...]
Traçado o quadro normativo que deve presidir à fixação da indemnização, revertamos agora ao caso concreto.
Na situação sub judice, temos como assente que, à data dos factos, a autora tinha 32 anos (facto 21). Gozava de boa saúde física e mental, não apresentando qualquer defeito físico (facto 22).
Devido ao acidente, a autora ficou a padecer de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de nove pontos, por flexão dorsal da tibiotársica de 0º a 15º, flexão plantar de 0º a 20º da tibiotársica, rigidez da subtalar pé esquerdo, por analogia com edema permanente do tornozelo (facto 46).
Na decisão recorrida foi-lhe atribuída uma indemnização de € 28 500 com a seguinte fundamentação:
“A fixação da indemnização (na vertente de perda de capacidade de ganho; e na vertente de dano biológico) deve fazer-se por recurso à equidade, ponderando os critérios jurisprudenciais habitualmente seguidos: a idade da vítima à data do acidente (32 anos); a remuneração mínima garantida (por a Autora se encontrar desempregada); o défice funcional atribuído (9 pontos); a esperança média de vida para indivíduos do sexo feminino nascidos no ano de 1983 de 75 anos.
Para o cálculo da indemnização, partir-se-á da fórmula matemática aludida no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 04.04.1995, Colectânea de Jurisprudência, tomo II, p. 23, tendo em conta os elementos antes enunciados e uma taxa de juros de 3% e uma taxa de crescimento de 2%.
No entanto, o resultado final deve ser corrigido pela equidade, em função dos particulares circunstancialismos do caso concreto, a demandar, na presente situação, o seu ligeiro aumento, especialmente em razão de, por um lado, haver a probabilidade de a Autora vir a desenvolver necrose do osso (o que irá agravar o défice) e, por outro lado, de a lesão provocada afetar um membro essencial para o exercício de atividades profissionais de maior pendor físico (segmento em que aquela se inclui), já que sobre ele é exercida a carga do corpo (pelo que mais sentirá a necessidade de efetuar esforços acrescidos para manter um rendimento de trabalho atrativo para a sua entidade patronal).
Pelo que, tudo ponderado, entende-se adequada a atribuição da indemnização de € 28.500,00, pelo défice funcional consequente das sequelas (nas vertentes de perda da capacidade de ganho e dano biológico).”
Esta fundamentação encontra-se perfeitamente alinhada com as considerações que supra fizemos em matéria dos critérios jurídicos que devem presidir à fixação da indemnização pelo dano biológico, nas várias dimensões em que o mesmo se projeta.
A equidade não é sinónimo de arbitrariedade ou discricionariedade, sendo antes a aplicação da justiça ao caso concreto mediante ponderação, prudencial e casuística, das concretas circunstâncias da situação em análise. Nas palavras do Ac. do STJ, de 10/2/1998, (in CJ S. T., 1, p. 65) a equidade é "a justiça do caso concreto, flexível, humana, independente de critérios normativos fixados na lei", devendo o julgador "ter em conta as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida."
Para atingir o valor indemnizatório fixado, o tribunal a quo efetuou esta ponderação equitativa e o valor obtido está em perfeita consonância com os critérios jurisprudenciais mais recentes relativos a casos análogos.
Na verdade, ainda que se recorra à equidade, é importante que exista uma justiça relativa por forma a que se obtenham soluções idênticas para casos semelhantes, pois só assim se respeita o princípio da igualdade, plasmado no art. 13º, da CRP, e se acautela a imposição contida no art. 8º, nº 3, do CC, segundo o qual nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito. [...]
De referir ainda que, estando em causa critérios de equidade, as indemnizações arbitradas apenas devem ser reduzidas quando afrontem manifestamente as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das regras da vida, sendo que o valor indemnizatório deve ter carácter significativo, não podendo assumir feição meramente simbólica.
Por tudo quanto se vem de expor, e em síntese, considera-se adequada, proporcional, justificada e equitativa a fixação da indemnização em € 28 500 para ressarcir o dano biológico de uma lesada com 32 anos que ficou afetada numa perna com uma incapacidade de 9 pontos, que lhe condiciona o caminhar, agachar, sentar e levantar, estando tal valor perfeitamente alinhado e em consonância com as indemnizações atribuídas pelo Supremo Tribunal de Justiça para situações análogas, não se justificando reduzir tal valor, como pretendido pela recorrente."
*3. [Comentário] Tanto no acórdão em análise, como em STJ 3/11/2016 (5334/17.2T8GMR.G1) entende-se que perdas salariais não provadas podem ser substituídas pela indemnização do dano biológico. No fundo, substitui-se a não prova de um determinado efeito pela prova de uma causa que pode provar vários efeitos.
MTS