"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/01/2021

O que é um "acto postulativo"?


1. Em 1925, James Goldschmidt publicou uma monografia intitulada "Der Prozess als Rechtslage / Eine Kritik des prozessualen Denkens." (há uma tradução espanhola de 2015 com o título "El Proceso como Situación Jurídica / Una crítica al pensamiento procesal"). A monografia é uma das mais significativas obras processuais de sempre e pode ser considerada a última grande representante da chamada "época construtiva do doutrina processual civil alemã".

A obra -- que tem claras influências kelseneanas -- ficou conhecida, essencialmente, por quatro razões:

-- Pela crítica à concepção de Oskar Bülow do processo como uma relação jurídica; se é verdade que a Ciência Processual Civil nasceu em 1858 com a obra de Bülow "Die Lehre von den Processeinreden und die Processvoraussetzungen" e com a construção da relação jurídica processual, também se pode dizer que essa Ciência foi refundada por Goldschmidt através da construção da situação processual;

-- Pela construção da admissibilidade como valor essencial e característico do processo e, portanto, pela sedimentação da figura dos pressupostos processuais como um instituto processual;

-- Pela construção do ónus como situação subjectiva típica do processo; aliás, a crítica à relação jurídica processual assenta precisamente, na perspectiva de Goldschmidt, na inexistência de direitos e deveres em processo;

-- Finalmente, pela distinção, nos actos das partes, entre os "Bewirkungshandlungen" e os "Erwirkungshandlungen"; a correspondente tradução corrente é, respectivamente, actos constitutivos e actos postulativos (a partir de postular, como significando solicitar, requerer ou pretender).
 
2. A distinção, dentro dos actos das partes, entre actos constitutivos e actos postulativos baseia-se essencialmente, segundo o actual entendimento corrente, no seguinte:

-- Os actos constitutivos são aqueles que produzem, por eles mesmos, efeitos em juízo; é o caso, por exemplo, da desistência ou da confissão do pedido;

-- Os actos postulativos são aqueles em que a parte formula um pedido e em que os efeitos produzidos no processo decorrem da decisão que o juiz venha a proferir.

Embora a distinção não deva ser entendida como significando que os actos postulativos não produzem efeitos em processo antes de qualquer decisão do juiz (a petição inicial é um acto postulativo que implica, entre outros efeitos, a citação do réu), a verdade é que ela é intuitiva pelo menos no sentido de que há actos que apenas são constitutivos e há outros actos que, além de constitutivos, são também postulativos, porque contêm um pedido formulado pela parte ao tribunal.

3. Tudo isto vem a propósito da circunstância de, num recente acórdão de uma das Relações, se falar de "acto postulativo recorrido".

Do que já se disse resulta que a expressão é duplamente infeliz:

-- A decisão de um tribunal não cabe na classificação dos actos em constitutivos e postulativos, dado que essa classificação respeita apenas aos actos das partes; os actos do tribunal não podem ser abrangidos por essa classificação;

-- Um acto postulativo é um acto em que se formula um pedido; pela sua essência e natureza, nenhuma decisão do tribunal contém um pedido.

MTS


29/01/2021

Do direito de remição (artigo 842.º do Código de Processo Civil)



[Para aceder ao texto clicar em Urbano A. Lopes Dias]



Jurisprudência 2020 (137)


Suspensão de deliberações sociais;
requisitos; "dano apreciável"


1. O sumário de RL 14/7/2020 (2253/20.9T8VNG.P1) é o seguinte:

I - O “dano apreciável” causado pela execução da deliberação – o “periculum in mora” do procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais – tem que ser alegado e provado, não sendo a sua existência de presumir; porém, tal concreta prova pode/deve resultar da apreciação que o tribunal deve fazer da globalidade dos concretos factos que estão alegados/provados.

II - Sendo o “dano apreciável” a prevenir um dano futuro, tal acontece, só por si, pelos efeitos duma deliberação de exclusão de sócio, já que, quando alguém é excluído de sócio, não perde apenas e só a sua participação social, mas também tudo que isso significa e representa, em termos de efeitos jurídicos, estando o “dano apreciável” nos direitos sociais que se retiram ao sócio excluído, em ver-se afastado da vida da sociedade, não podendo participar e influir nas decisões, passando os restantes sócios a poder deliberar, da forma como bem entenderem, sobre o destino da sociedade.

III - Nestas situações, tendo sido alegada a exclusão do sócio (requerente do procedimento cautelar) e a irregularidade dessa deliberação social, deve considerar-se que essa alegação, a ser provada, pode conduzir à conclusão de serem significativos os prejuízos decorrentes da perda de qualidade de sócio, ou seja, que a alegação pode preencher o perigo do “dano apreciável”, tanto mais que, no caso concreto, o requerente continua alegadamente a assumir responsabilidades bancárias/cambiárias de montante significativos, apesar de ter deixado de poder controlar o destino e a gestão da sociedade/requerida em face da referida exclusão de sócio.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Dispõe o artigo 380º do CPC, no seu nº 1, que “se alguma associação ou sociedade, seja qual for a sua espécie, tomar deliberações contrárias à lei, aos estatutos ou ao contrato, qualquer sócio pode requerer, no prazo de 10 dias, que a execução dessas deliberações seja suspensa, justificando a qualidade de sócio e mostrando que essa execução pode causar dano apreciável”.

O deferimento da providência cautelar de suspensão de deliberação social depende, portanto, da verificação cumulativa dos seguintes requisitos:

a) O requerente tem que ser sócio da sociedade que a tomou;

b) A deliberação tem que ser contrária à lei ou ao pacto social; e

c) Há-de resultar da execução da deliberação dano apreciável.

O primeiro dos referidos requisitos é um pressuposto de legitimidade e o segundo satisfaz-se com um juízo de probabilidade e verosimilhança que é próprio das providências cautelares[...].

Porém, a alegação e prova do terceiro pressuposto – que é o que está aqui em causa - tem sido vista com maior exigência na doutrina e na jurisprudência, de molde a permitir a manutenção de um clima de equilíbrio no funcionamento da sociedade e no relacionamento dela com os sócios e daí o estatuído no nº 2 do artigo 381º, do CPC, ao permitir que o juiz deixe de suspender a deliberação social, ainda que ilegal ou contrária aos estatutos ou ao contrato se o prejuízo resultante da suspensão for superior ao que pode advir da respectiva execução.

Dúvidas, não existem de que a providência cautelar serve para obviar às consequências do periculum in mora, exigindo como requisito a alegação e prova de que resulte, antes da acção ser proposta ou na pendência dela, lesão grave ou dificilmente reparável ao direito do requerente.

O ónus da prova é do requerente (artigo 342.º, nº 1, do CC), e o zelo e cautela do seu direito pressupõe, desde logo, no requerimento da providência, a alegação de factos concretos reveladores do perigo de ocorrência de determinadas consequências danosas de relevo que se mostrem sérias e certas ou quase inevitáveis, muito fortemente prováveis[...].

Abrantes Geraldes [In “Temas do processo civil”, Vol. IV, págs. 96 e 97. No mesmo sentido, v. “CPC anotado”, Vol. I (A. Geraldes, Luís P. Sousa, Paulo Pimenta), págs. 450/1] explica que a expressão “dano apreciável” é um conceito indeterminado carecido de densificação através de alegação e prova de factos dos quais se possa extrair que a execução da deliberação no seio da pessoa colectiva (ou dos seus sócios) acarretará um prejuízo significativo, de importância relevante, mas sem ser uma situação de irrecuperabilidade ou de grave danosidade.

O legislador pretende, pois, compatibilizar os interesses do requerente e da sociedade ou associação, procurando uma menor interferência na vida da sociedade ou associação, procurando suspender deliberações quando apesar de feridas de alguns vícios atendíveis, os efeitos da suspensão sejam superiores aos da execução.

Assim, refere aquele autor que “o modo como está arquitectada a suspensão de deliberações sociais revela que o legislador pretendeu compatibilizar os interesses contrapostos do requerente e da sociedade requerida: aquele a exigir a suspensão da deliberação invocando o risco de ocorrência de dano apreciável; e esta a reclamar a menor interferência jurisdicional na sua actividade, de modo a evitar a suspensão de deliberações quando, apesar das feridas de alguns dos vícios atendíveis, os efeitos da suspensão sejam superiores aos da execução”.

Como se refere no acórdão da Relação de Lisboa de 28.02.2008[...], “o dano apreciável é o dano significativo que pode resultar da execução da deliberação social ilegal, que a própria providência visa esconjurar reconhecendo o periculum in mora na obtenção de uma decisão através da acção judicial de oposição a uma determinada deliberação”.

Exige-se, portanto, um juízo de forte probabilidade de dano iminente, bem como da medida e extensão do mesmo, que permitam tomá-lo por considerável, não sendo suficiente a alegação de mera possibilidade de prejuízo cujo volume não possa aquilatar-se [Como escreve Lobo Xavier, in Revista de Direito e Estudos Sociais, XXII, pág. 215 “não é toda e qualquer possibilidade de prejuízo que a deliberação, ou a sua execução, em si mesmas comportem, mas sim a possibilidade de prejuízos imputáveis à demora no processo de anulação. Não faria sentido que o legislador desse relevo, para efeitos de concessão de providência à eventualidade de danos diferentes dos originados pelo retardamento da sentença naquela acção preferida”. No mesmo sentido, v. Marco Gonçalves, in “Providências cautelares” (e-book), notas 903 e 904.].

“O dano patrimonial ou não, de sócio(s) e/ou da sociedade, é apreciável quando significativo (não insignificante). Não tem de ser julgado irreparável para que a suspensão seja decretada. Mas, porque o dano apreciável aqui relevante é o que pode resultar da demora do processo principal, há-de ser dificilmente reparável sem a suspensão. Se a tutela conferida pela acção principal (procedente) é suficiente para a reparação dos danos, não há razões para decretar a suspensão de deliberação”[In “Cód. Sociedades Comerciais em comentário”, Vol. I, págs. 698 e 699 (anotação de J. M. Coutinho de Abreu)].

Neste âmbito, importa, pois, que não se olvide o que nos parece ser aqui de considerar da maior importância: enquanto a providência em causa visa apenas evitar o dano resultante da deliberação tomada, quando imputável à demora na resolução do litígio, a acção de anulação ou declaração de nulidade (a acção principal de que aquela é dependente), é que se destina, verdadeiramente, a apreciar da própria legalidade do acto. Não pode, portanto, entender-se a providência como uma mera antecipação provisória da sentença de anulação [Cfr. Palma Carlos, in Revista dos Tribunais, 62/212 e Vasco Xavier Rev. Dir. Est. Sociais, pág. 268].

“A lei criou um expediente que, em regra, precede esta acção (de anulação ou de declaração da nulidade) e que permite uma apreciação tão rápida quanto possível da eventual desconformidade da deliberação social. Esse expediente – que pretende assegurar um conteúdo útil e imediato e relevante à impugnação a propor – é um procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais e contra-se regulado no CPC, nos arts. 380º a 382º, tendo como finalidade paralisar com celeridade a deliberação social viciada, de modo a evitar que seja concretizada a deliberação social (inválida) que se pretende impugnar e a assegurar que num futuro próximo não se vão perdurar ou alicerçar na mesma outras deliberações, com natural e óbvio prejuízo para a própria sociedade” [Paulo Olavo da Cunha, in “Impugnação de deliberações sociais”, pág. 204].

Neste contexto, a simples aparência de invalidade da deliberação social deverá ser tida como suficiente ao decretamento da suspensão dos efeitos dessa deliberação se o dano necessário estiver devidamente configurado."

[MTS]


28/01/2021

Jurisprudência 2020 (136)


Acção de reivindicação;
aquisição originária; ónus da prova*


1. O sumário de RL 21/5/2020 (12917/17.9T8SNT.L1-2) é o seguinte:

I - Nas máximas da experiência parte-se do pressuposto de que, em casos semelhantes, existe um idêntico comportamento humano e este relacionamento permite afirmar um facto histórico, não com plena certeza mas como uma possibilidade mais ou menos ampla.

II - Não é de todo uma regra da experiência comum que as partes formulam pedidos bem fundados para não incorrerem em despesas judiciais em vão.

III - O uso de uma presunção judicial não pode servir de desvio às regras de distribuição do ónus de prova.

IV - Na ação de reivindicação prevista no artigo 1311.º do CC, a pretensão não se poderá fundar exclusivamente na invocação de um título de aquisição derivada do direito peticionado.

V - Nesse domínio, em consonância com a teoria da substanciação subjacente ao disposto no artigo 581.º, n.º 4, do CPC, torna-se necessário que o adquirente demonstre que o direito existia na esfera do alienante, alegando e provando os factos que consubstanciam a sua causa genética - usucapião, ocupação ou acessão.

VI - Contudo, num caso em que ambas as partes admitem inequivocamente o direito de propriedade do transmitente, não é exigível que o Autor alegue e prove a aquisição originária daquele direito.

VII - A admissão pelas partes da existência desse direito de propriedade na esfera do transmitente reconduz-se a uma situação jurídica consolidada, face à qual restará provar a subsequente celebração do acordo de partilha com o Autor.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"c) Estamos perante uma ação de reivindicação, tal como é definida no artigo 1311.º do Código Civil, segundo o qual o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade (ou outro) e a consequente restituição do que lhe pertence.

Quanto à questão da prova do direito de propriedade na ação de reivindicação, a jurisprudência maioritária tem-se pronunciado no sentido de que cabe ao demandante a prova daquele direito, a qual terá de ser feita através de factos dos quais resulte demonstrada a aquisição originária do domínio, por sua parte ou por qualquer dos antepossuidores. Quando a aquisição for derivada, têm de ser provadas as sucessivas aquisições dos antecessores até à aquisição originária, exceto nos casos em que se verifique a presunção legal da propriedade, como a que resulta da posse ou do registo (artigos 1268.º do Código Civil e 7.º do Código de Registo Predial) - cf., a título exemplificativo, o acórdão do TRL de 21.6.2012 (p. 7213/11.8TBOER.L1-2) e o acórdão do TRC de 14.1.2014 (p. 224/12.8TBCTB-C.C1), ambos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt. 

Quanto aos bens móveis sujeitos a registo, como os veículos automóveis, de acordo com o artigo 7.º do Código de Registo Predial, ex vi do artigo 29.º do Código do Registo da Propriedade Automóvel, o registo definitivo faz presumir a existência do direito e a sua pertença ao titular inscrito.

O registo não surte eficácia constitutiva, pois destina-se a dar publicidade ao ato registado, funcionando como mera presunção ilidível (presunção juris tantum) da existência do direito (artigos 1.º, n.º 1, e 7.º do Código do Registo Predial e 350.º, n.º 2, do Código Civil), bem como da respetiva titularidade.

Acresce que o contrato de compra e venda de veículo automóvel é meramente consensual (artigo 219.º do Código Civil) e quoad effectum (artigos 408.º e 874.º, alínea a), do mesmo diploma), sendo a obrigatoriedade do registo declarativa ou funcional.

Compulsada a factualidade apurada, sob o ponto 20 dos factos provados, ficou provado que «O veículo Peugeot a que o autor faz referência na sua p.i. foi adquirido pelo mesmo antes de se juntar com a ré, em data não concretamente apurada.»

Da análise conjugada dos artigos 5.º, l), e 7.º da petição inicial com o artigo 22.º da contestação, retira-se que esta factualidade está provada por acordo das partes, ao abrigo dos artigos 574.º, n.º 2, e 607.º, n.º 4, do CPC.

Na verdade, no artigo 22.º da sua contestação, a Ré admitia que «O veículo Peugeot a que o A faz referência na sua p.i. foi adquirido pelo mesmo apenas cerca de 6 meses antes de se juntar com a R (…).»

Do exposto ressalta que assiste razão ao Apelante quando afirma que a aquisição da propriedade do Peugeot em data anterior à vida em comum com a Ré está assente entre as partes.

Cumpre, pois, ponderar se, mesmo sem a certidão comprovativa da incrição no registo do veículo automóvel, tal documento seria desnecessário uma vez que ambas as partes admitem o direito de propriedade àquela data.

Na verdade, ou o Autor juntava tal documento, beneficiando da presunção registal, ou teria de demonstrar a aquisição originária do veículo ou toda a corrente do trato sucessivo na sequência de eventuais aquisições derivadas.

Entendemos que tal não seria necessário.

Neste sentido, respigamos aqui as palavras do acórdão do STJ de 9.11.2017 (p. 1964/14.2TCLRS.L1.S1, in www.dgsi.pt), ainda que a propósito de um bem não sujeito a registo, assim sumariado:

«I - Segundo a doutrina e jurisprudência dominantes, nas ações reais - maxime na ação de reivindicação prevista no artigo 1311.º do CC -, a pretensão não se poderá fundar exclusivamente na invocação de um título de aquisição derivada do direito peticionado.

II. Nesse domínio, em consonância com a teoria da substanciação subjacente ao disposto no atual artigo 581.º, n.º 4, do CPC, torna-se necessário que o adquirente demonstre que o direito existia na esfera do alienante, alegando e provando os factos que consubstanciam a sua causa genética - usucapião, ocupação ou acessão.

III. Todavia, num caso em que ambas as partes admitem, inequivocamente, o direito de propriedade do transmitente que interveio no contrato de compra e venda alegado pelo autor, estando apenas questionada a celebração deste contrato, não se mostra exigível que o autor alegue e prove a aquisição originária, por via usucapião, daquele direito por parte do transmitente.

IV. A admissão pelas partes da existência desse direito de propriedade na esfera do transmitente reconduz-se a uma situação jurídica consolidada, face à qual restará provar a subsequente celebração do contrato de compra e venda com o autor.»

Sem embargo, mesmo considerando que o Autor era o proprietário do referido veículo, também não se pode escamotear o acordo de partilha provado sob o ponto 22 da decisão sobre a matéria de facto.

Assim, ficou demonstrado que, aquando da separação, o Autor e a Ré acordaram que o Autor ficaria com o veículo da marca Ford, uma vez que é de cinco lugares e o mesmo tem dois filhos e que a Ré ficaria com o veículo Peugeot, que é de dois lugares, pois esta tem um filho, em comum com o Autor. [...]

Na situação em apreço, ficou demonstrada a celebração de um acordo de partilha relativamente aos veículos automóveis Ford e Peugeot, livremente acordado entre as partes, ao abrigo do artigo 405.º do Código Civil. Ressalta desse acordo que a propriedade do veículo Peugeot se transmitiu para a Ré por mero efeito do contrato (cf. artigo 408.º do Código Civil).

É certo que, como decorre do facto provado sob o ponto 26 da facturalidade provada, não foi assinada a declaração de venda por forma a permitir a transferência da propriedade do veículo Peugeot para a Ré.

Porém, como é sabido, um contrato que envolva a transmissão da propriedade de um veículo é consensual (artigo 219.º do Código Civil).

Logo, não estando demonstrada a propriedade atual do veículo Peugeot a favor do Autor, improcede também esta alegação do Recorrente."

*3. [Comentário] A RL decidiu bem.

b) Não se põe em causa que, quando não exista uma presunção de titularidade do direito, se exige habitualmente que, numa acção de reivindicação, o autor faça prova de um título de aquisição originária. O que não se pode aceitar é que isto possa colocar o autor perante a necessidade de realizar uma probatio diabolica.

A solução deve, por isso, ser repensada à luz dos parâmetros actuais do processo civil. Uma solução possível consiste em exigir a prova dessa aquisição originária apenas quando, através de uma contestação substanciada do réu, esta parte alegue factos que possam colocar em causa essa aquisição. 

MTS

Jurisprudência constitucional (194)


Advogados estagiários;
incompatibilidades

-- TC 10/12/2020 (741/2020), DR 18/2021, Série II de 2021-01-27, decidiu o seguinte:

Não julga inconstitucional a norma extraída do artigo 188.º, n.º 1, alínea d), do Estatuto da Ordem dos Advogados, interpretada no sentido de se aplicarem aos advogados estagiários as incompatibilidades para o exercício da advocacia; não conhece do objeto do recurso quanto à interpretação da norma do artigo 82.º, n.º 1, alínea k), segunda parte, do Estatuto da Ordem dos Advogados, segundo a qual a GNR é uma força militarizada



Jurisprudência constitucional (193)


Sigilo bancário;
decisão; recurso


Não julga inconstitucional a interpretação normativa segundo a qual a decisão do Tribunal da Relação que se pronuncia, nos termos do artigo 135.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, sobre a quebra do sigilo bancário, na sequência de uma decisão de primeira instância que afere da legitimidade da escusa ao abrigo do artigo 135.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não constitui uma decisão proferida em primeira instância, para efeitos do disposto no artigo 644.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil, nem decisão proferida sobre decisão da primeira instância, para efeitos do disposto no artigo 671.º, n.º 1, do Código de Processo Civil 


27/01/2021

Jurisprudência 2020 (135)


Poderes probatórios; 
princípio inquisitório; âmbito


1. O sumário de RL 21/5/2020 (217/18.1T8MTA.L1-2) é o seguinte:

I) O princípio do dispositivo, consagrado no art.º 3.º do CPC, além de fazer impender sobre os interessados o ónus da iniciativa processual, estende-se à conformação do objecto do processo integrado, não só pela formulação do pedido, como ainda pela alegação da matéria de facto que lhe sirva de fundamento.

II) De acordo com tal princípio, a lei faz recair sobre a parte onerada com o ónus da prova os meios necessários a convencer o Tribunal da realidade dos factos alegados.

III) O princípio do inquisitório deve ser interpretado como um poder-dever limitado, restringindo-se, em matéria probatória, na busca pelas provas dentro dos factos alegados pelas partes (factos essenciais), com vista à justa composição do litígio e ao apuramento da verdade.

IV) Não pode o juiz ao abrigo do princípio do inquisitório suprir o incumprimento de formalidades essenciais pelas partes, permitir o atropelo de normas legais e postergar o princípio da auto-responsabilização das partes.

V) Como decorre do artigo 51.º, n.º 6, do NRAU, no caso de ser invocado que o arrendatário é uma “microentidade”, o ónus da junção com a resposta ao senhorio da comprovação de tal qualidade, incorre sobre o arrendatário que não poderá prevalecer-se da circunstância invocada.

VI) O “protestar” juntar documento não tem qualquer consequência, pois, a intenção de praticar um acto processual não equivale à sua prática, não podendo advir daí consequências jurídicas, como se o acto que não foi praticado, o tivesse sido.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"[...] a ré reporta-se a documento que comprove a sua qualidade de microentidade, para a produção dos efeitos do disposto no artigo 51º, n.º 4, alínea a) e n.º5 do NRAU, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro (na redação conferidas pelas Lei 31/2012 de 14 de agosto e Lei 79/2014 de 19 de dezembro, Lei 42/2017 de 14 de junho e Lei 43/2017 de 14 de junho).

De acordo com o mencionado n.º 5 do artigo 51.º do NRAU, para efeitos dessa lei, “microentidade” é “a empresa que, independentemente da sua forma jurídica, não ultrapasse, à data do balanço, dois dos três limites seguintes: a) Total do balanço: (euro) 2 000 000; b) Volume de negócios líquido: (euro) 2 000 000; c) Número médio de empregados durante o exercício: 10”.

Nos termos do artigo 51.º, n.º 6, do NRAU, o arrendatário que invoque uma das circunstâncias previstas no n.º 4 do mesmo artigo “faz acompanhar a sua resposta de documento comprovativo da mesma, sob pena de não poder prevalecer-se da referida circunstância”.

Como decorre desta norma, no caso de ser invocado que o arrendatário é uma “microentidade”, o ónus da junção com a resposta ao senhorio da comprovação de tal qualidade, incorre sobre o arrendatário que não poderá prevalecer-se da circunstância invocada.

Ora, no caso, a ré não promoveu – tanto quanto é dada conta nos autos - a junção do documento que agora considera essencial.

A circunstância de, em determinado momento processual, ter manifestado “protestar” juntar o documento comprovativo da sua situação de “microentidade” não tem qualquer consequência, pois, a intenção de praticar um acto processual não equivale à sua prática, não podendo advir daí consequências jurídicas como se o acto que não foi praticado, o tivesse sido.

Por outro lado, como se assinalou, não tendo a ré, por qualquer modo, manifestado como essencial o documento que, agora, considera que revestia tal natureza, não se pode considerar que tenha ocorrido alguma “inércia” do Tribunal recorrido no facto de não ter determinado às partes a sua junção aos autos.
Mas, como se disse, atento o que consta do artigo 7.º, n.º 4, do CPC, não foi alegada, no decurso dos autos, alguma justificada dificuldade na apresentação do documento em questão, que determinasse algum condicionamento da ré no exercício dos seus direitos ou faculdades e que pudesse inculcar ter o Tribunal recorrido omitido o cumprimento do princípio da cooperação processual expresso nesse preceito legal. Não se afigura que algum dos demais princípios invocados pela recorrente impusesse diversa solução.

Conforme se concluiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10-07-2019 (Processo 68/12.7TBCMN-C.G1, rel. CONCEIÇÃO SAMPAIO):

“I - O princípio do inquisitório deve ser interpretado como um poder-dever limitado, restringindo-se, em matéria probatória, na busca pelas provas dentro dos factos alegados pelas partes (factos essenciais), com vista à justa composição do litígio e ao apuramento da verdade.

II - O princípio da cooperação deve ser conjugado com o princípio da auto-responsabilidade das partes, que não comporta o suprimento por iniciativa do juiz da omissão da apresentação dos meios de prova no momento processualmente determinado.

III - O juiz não se encontra obrigado a determinar a junção de um documento só porque a parte, que não o apresentou oportunamente, invoca a importância daquele para a descoberta da verdade. A não se entender assim, perdia sentido a obrigação de apresentação da prova em momentos processuais determinados, pois restaria sempre à parte a possibilidade de invocar a sua essencialidade”.

Apreciando uma situação em que o arrendatário procurou comprovar, em sede de recurso, a qualidade de microentidade, nos termos e para os efeitos consignados no artigo 51.º do NRAU, considerou-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15-11-2018 (Processo 10909/17.7T8LSB.L1-6, rel. MANUEL RODRIGUES) que não deveria ser admitida a junção probatória do documento que visava comprovar tal qualidade da arrendatária, designadamente, pelos seguintes motivos:

“Em primeiro lugar, não se pode dizer que a Recorrente, não podia razoavelmente contar com o objecto da sentença recorrida e respectiva fundamentação porquanto era expectável, que o Tribunal a quo se pronunciasse sobre a verificação da circunstância prevista na alínea a) d n.º 4 do artigo 51.º do NRAU, na redacção dada pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto [“Que existe no locado um estabelecimento comercial aberto ao público e que é uma microempresa”], a qual foi, aliás, invocada pela própria Recorrente.

E, como decorre dos artigos 51.º, n.º 4 e 54.º, n.º 1, do NRAU, na redacção dada pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto [versão em vigor e a que respeitam as posteriores referencias ao NRAU, sem outra menção], e da regra geral do art.º 342.º do Cód. Civil, era sobre a Recorrente que incumbia o ónus da prova relativo ao número médio de pessoas empregues durante o exercício «critério de efectivos» e dos limites máximos de volume de negócios ou dos limites máximos do balanço no exercício contabilístico encerrado imediatamente anterior «critério de volume de negócios ou de balanço total» ao da comunicação do senhorio a que alude o art.º 50.º do NRAU.

Tal invocação e prova tinha de ser feita no prazo de 30 dias a contar da recepção da comunicação do senhorio para actualização da renda [art.º 51.º, n.º 1, do RAU] (…).

E, em caso de desacordo e litígio entre as partes contratantes, sob pena de violação dos princípios do dispositivo e da auto-responsabilidade das partes, a actividade do Tribunal tem de incidir sobre as circunstâncias alegadas pelo senhorio como fundamento da caducidade do contrato de arrendamento e as circunstâncias que, em resposta, forem invocadas pelo arrendatário como obstativas da caducidade (…)”.

Ora, todas estas circunstâncias são perfeitamente transponíveis para a situação dos autos, em que a ré considera que o Tribunal recorrido a deveria ter notificado para juntar o documento de comprovação da sua qualidade de microentidade.

Não se vê que a ré estivesse impossibilitada de juntar, em tempo, tal documento; nem, como se disse, que tenha ocorrido justificada dificuldade na sua oportuna junção; tal como, perante a demanda apresentada pelos autores, certamente, que a ré, usando da necessária diligência, configuraria como conveniente, para a defesa da argumentação que desenvolvesse, a junção do documento em questão, que, aliás, como se disse, protestou juntar, assim admitindo, claramente, que o mesmo poderia ser pertinente para a defesa dos seus interesses.

Certo é que, não ficou patenteado, junto do Tribunal recorrido que este tivesse incumprido algum dever processual, pelo facto de não ter determinado a junção do documento em questão, não prevalecendo, no caso em apreço, o princípio da cooperação, do inquisitório ou da descoberta da verdade material, sobre o princípio da auto-responsabilização da ré, relativamente à sua posição processual."

[MTS]



26/01/2021

Bibliografia (961)


-- Tiscini, R. (Ed.), Titolo esecutivo ed efficienza della tutela giurisdizionale (Jovene: Napoli 2020)


Jurisprudência 2020 (134)


Causa de pedir;
qualificação*


1. O sumário de RG 18/6/2020 (5334/17.2T8GMR.G1) é, na parte agora relevante, o seguinte: 

I - Numa ação de responsabilidade civil por facto ilícito, a circunstância de a autora ter invocado determinados danos que não se provaram atinentes a concretas perdas salariais não impede que o tribunal, perante os factos provados, considere a existência de um dano biológico que configura em si mesmo um dano indemnizável e arbitre a correspondente indemnização, pois esta decisão contém-se dentro dos limites da causa de pedir invocada e do pedido formulado, implicando unicamente um enquadramento jurídico distinto do que foi efetuado pela autora, que não viola o princípio do dispositivo e é permitido face à faculdade conferida ao juiz pelo art. 3º [5.º], nº 3, do CPC, que lhe confere liberdade de indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.

II - O dano biológico consiste numa lesão corporal que afeta a integridade físico-psíquica do lesado e que implica uma perda da plenitude das suas capacidades pessoais.

É um dano complexo posto que, traduzindo-se na ofensa da saúde e integridade física, tem repercussões quer a nível patrimonial, quer a nível não patrimonial.

II - O facto de o ofendido não exercer à data do acidente qualquer profissão, não afasta a existência de dano patrimonial, compreendendo-se neste as utilidades futuras e as simples expectativas de aquisição de bens, merecendo ressarcimento os lesados que se encontram fora do mercado do trabalho como é o caso das crianças e dos jovens que ainda não ingressaram no mundo laboral ou dos reformados/aposentados ou desempregados.

III - Estando em causa critérios de equidade, as indemnizações arbitradas apenas devem ser reduzidas quando afrontem manifestamente as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das regras da vida, sendo que o valor indemnizatório deve ter carácter significativo, não podendo assumir feição meramente simbólica.

IV – No caso de indemnização por danos não patrimoniais deve ainda atender-se à natureza mista de reparação do dano e punição que caracteriza tal indemnização.

V - Considera-se adequada, proporcional, justificada e equitativa a fixação da indemnização em € 28 500 relativamente ao dano biológico/perda de capacidade ganho e em € 25 000 relativamente aos danos não patrimoniais sofridos por uma lesada com 32 anos que foi vítima de um acidente quando se encontrava de férias em Portugal, o qual implicou a necessidade de realização de exames e cirurgia, tendo ficado afetada numa perna com uma incapacidade de 9 pontos, que lhe condiciona o caminhar, agachar, sentar e levantar, sofreu um quantum doloris de 5 numa escala de 1 a 7, esteve condicionada a uma cama durante 4 meses, ficou em situação de incapacidade funcional durante 366 dias, período durante o qual deixou de poder realizar as suas atividades pessoais e domésticas, tendo de socorrer-se do auxílio de terceiro inclusivamente para se lavar e vestir, continua a ter necessidade de tratamentos no futuro, continua a ter dores, ficou abatida e frustrada por não poder desempenhar as suas atividades e acompanhar os seus filhos, situação que afetou o seu seio familiar. [...]


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"I – Redução da indemnização pelo dano biológico, fixada em € 28 500, para valor entre € 15 000 a € 20 000

A ré insurge-se contra a sentença na parte em que fixou em € 28 500 o valor devido como indemnização pelo dano biológico/perda de ganho, em sede de dano patrimonial, considerando que deve ser reduzida para valor entre € 15 000 a € 20 000.

A autora alegou que, por causa do acidente, não pode mais exercer a sua atividade profissional, requerendo a condenação da Ré no pagamento de uma indemnização correspondente às perdas salariais sofridas até à data da propositura da presente ação, que quantificou em € 19 500, assim como noutra a liquidar em execução de sentença, por ser ainda imprevisível a data em que poderá retomar a sua atividade (artigos 57º e 58º, da petição inicial).

Não se tendo provado que a Autora exercesse, à data, a profissão de ama e que ganhasse a remuneração mensal de € 1.500,00, a sentença considerou improcedente o pedido de reconhecimento do direito à indemnização correspondente aos salários perdidos.

Todavia, arbitrou-lhe uma indemnização de € 28 500 pela dupla vertente de perda da capacidade de ganho e dano biológico.

Perante esta decisão, a primeira questão que se coloca é a de saber se o tribunal a quo, por força do princípio do dispositivo, se encontrava impedido de arbitrar esta indemnização, uma vez que a autora não formulou concreto pedido parcelar neste sentido, tendo-se limitado a pedir perdas salariais concretas e quantificadas, cuja prova não logrou obter.

Com efeito, o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes (art. 3º, nº 1, do CPC) e, na sentença, o juiz não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo os casos de matéria de conhecimento oficioso (art. 608º, nº 2, do CPC).

Todavia, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art 5º, nº 3, do CPC).

Ora, no caso sub judice, a autora invoca como causa de pedir a existência de um acidente sofrido com um kart, e considera que a ré é civilmente responsável pela indemnização dos danos sofridos em consequência desse acidente. Peticiona uma indemnização de um determinado valor global pelo conjunto de danos sofridos.

A circunstância de a autora ter invocado determinados danos que não se provaram atinentes a concretas perdas salariais não impede que o tribunal, perante os factos provados, considere a existência de um dano biológico que configura em si mesmo um dano indemnizável e arbitre a correspondente indemnização, pois esta decisão contém-se dentro dos limites da causa de pedir invocada e do pedido formulado, implicando unicamente um enquadramento jurídico distinto do que foi efetuado pela autora, o qual é permitido face à faculdade conferida ao juiz pelo art. 3º [5.º], nº 3, do CPC, que lhe confere liberdade de indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.

Consequentemente, não se vislumbra a existência de qualquer violação do princípio do dispositivo.

Neste mesmo sentido, considerou-se no Acórdão do STJ, de 3.11.2016, (in www.dgsi.pt) que “a circunstância de a A., na petição inicial, não ter configurado juridicamente a sua pretensão indemnizatória no âmbito desta peculiar categoria normativa do dano biológico não obsta a que o Tribunal, no exercício dos seus poderes de livre qualificação jurídica da factualidade invocada como causa de pedir, possa proceder – como procedeu efectivamente - a uma correcção da configuração jurídico normativa da pretensão, reconduzindo a matéria facto alegada ao quadro normativo que tenha por adequado.”

Aliás, apenas se aflorou esta questão face ao referido pela ré nas suas alegações. Todavia, é curioso notar que, embora a ré comece por se insurgir contra a sentença e invocar decisão surpresa e violação do princípio do dispositivo, no desenvolvimento das suas conclusões acaba por aceitar a admissibilidade do arbitramento da indemnização, pedindo apenas a sua redução por reputar exagerado o valor fixado.

Face ao exposto, entende-se que nada impedia a fixação pelo tribunal a quo da indemnização pelo dano biológico/perda de capacidade de ganho, importando, todavia, analisar se o montante fixado é ou não adequado. [...]

O dano biológico consiste numa lesão corporal que afeta a integridade físico-psíquica do lesado e que implica uma perda da plenitude das suas capacidades pessoais.

É um dano complexo posto que, traduzindo-se na ofensa da saúde e integridade física, tem repercussões quer a nível patrimonial, quer a nível não patrimonial.

No que respeita às consequências patrimoniais, tal dano pode implicar uma concreta perda de rendimentos, como ocorrerá nas situações em que o lesado deixou de auferir um determinado montante pecuniário durante o período de tempo em que esteve incapacitado para exercer a sua atividade profissional.

Porém, independentemente da concreta perda de rendimentos, o dano biológico enquanto défice funcional de que passou a padecer o lesado no plano específico das atividades profissionais, tem ainda uma dupla repercussão pois, por um lado, implica um esforço acrescido que o lesado terá que despender para compensar tal défice, de modo a prosseguir uma atividade laboral e, por outro lado, implica uma limitação de oportunidades profissionais pois “o lesado vê diminuída a amplitude ou o leque das atividades laborais que pode perspectivar exercer plenamente no futuro, ficando – por via da perda de capacidades funcionais- necessariamente condicionado e «acantonado» no exercício de actividades menos exigentes – o que naturalmente limita de forma relevante as suas potencialidades no mercado do trabalho (facto particularmente atendível numa organização económica que crescentemente apela à precariedade e à necessidade de mudança e reconversão na profissão exercida, a todo o momento susceptível de mutação ao longo da vida do trabalhador)” (cf. Acórdão do STJ, de 21.1.2016, in www.dgsi.pt).

Na verdade, a força de trabalho de uma pessoa é um bem capaz de propiciar rendimentos. Logo, a incapacidade funcional importa sempre diminuição dessa capacidade, obrigando o lesado a um maior esforço e sacrifício para manter o mesmo estado antes da lesão e, inclusivamente, provoca inferiorização, no confronto do mercado de trabalho, com outros indivíduos por tal não afetados (cf. Acórdão do STJ, de 7.6.2011, in www.dgsi.pt).

A doutrina e a jurisprudência estão de acordo em que pelo facto de o ofendido não exercer à data do acidente qualquer profissão, não está afastada a existência de dano patrimonial, compreendendo-se neste as utilidades futuras e as simples expectativas de aquisição de bens. Assim, a este título, merecem ressarcimento os lesados que se encontram fora do mercado do trabalho, seja a montante – caso das crianças e dos jovens ainda estudantes, ou não, que ainda não ingressaram no mundo laboral –, seja a jusante, como os reformados/aposentados, ou os desempregados (cf. Acórdão do STJ, de 25.11.2009, in www.dgsi.pt).

É de realçar a dificuldade e delicadeza subjacente ao cálculo do dano biológico na vertente patrimonial, enquanto perda futura de capacidade de ganho, pois exige a previsão, sempre problemática, de dados que apenas são constatáveis no futuro e por um muito longo período de tempo, como seja a evolução da economia, da produtividade, do emprego, dos salários ou da inflação (cf Acórdão da Relação de Guimarães, de 19.10.2017, in www.dgsi.pt).

Como se escreveu no Acórdão do STJ, de 10.11.2016 (in www.dgsi.pt) “constitui entendimento jurisprudencial reiterado que a indemnização a arbitrar por tais danos patrimoniais futuros deve corresponder a um capital produtor do rendimento de que a vítima ficou privada e que se extinguirá no termo do período provável da sua vida, determinado com base na esperança média de vida (e não apenas em função da duração da vida profissional ativa do lesado, até este atingir a idade normal da reforma, aos 65 anos).”

Sobre a determinação do valor indemnizatório correspondente ao dano biológico, na vertente de danos patrimoniais futuros, segue-se o Acórdão desta Relação de Guimarães, de 19.10.2017, (in www.dgsi.pt) onde se considera que “como é posição sucessivamente reiterada pelo nosso mais Alto Tribunal, o tribunal está apenas sujeito aos critérios que emergem do preceituado no Código Civil e, em particular ao critério da equidade, pois que os critérios consagrados na Portaria n.º 377/2008, de 26.05 (ou na Portaria n.º 679/2009, de 25.06, que procedeu à sua alteração/atualização), não obstante possam (ou devam) ser considerados pelo julgador, não se sobrepõem aos que decorrem do restante sistema substantivo e, sobretudo, em primeiro lugar, do Código Civil.

De facto, como se pode alcançar da nossa jurisprudência, é pacífico o entendimento de que os critérios previstos nas citadas Portarias não substituem os critérios de fixação da indemnização consignados no Código Civil e não vinculam os tribunais em tal tarefa casuística, visando, sobretudo, em sede de apresentação de proposta célere e razoável por parte das seguradoras ao lesado, servir de critério orientador para esse confessado fim.” [...]

Traçado o quadro normativo que deve presidir à fixação da indemnização, revertamos agora ao caso concreto.

Na situação sub judice, temos como assente que, à data dos factos, a autora tinha 32 anos (facto 21). Gozava de boa saúde física e mental, não apresentando qualquer defeito físico (facto 22).

Devido ao acidente, a autora ficou a padecer de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de nove pontos, por flexão dorsal da tibiotársica de 0º a 15º, flexão plantar de 0º a 20º da tibiotársica, rigidez da subtalar pé esquerdo, por analogia com edema permanente do tornozelo (facto 46).

Na decisão recorrida foi-lhe atribuída uma indemnização de € 28 500 com a seguinte fundamentação:

“A fixação da indemnização (na vertente de perda de capacidade de ganho; e na vertente de dano biológico) deve fazer-se por recurso à equidade, ponderando os critérios jurisprudenciais habitualmente seguidos: a idade da vítima à data do acidente (32 anos); a remuneração mínima garantida (por a Autora se encontrar desempregada); o défice funcional atribuído (9 pontos); a esperança média de vida para indivíduos do sexo feminino nascidos no ano de 1983 de 75 anos.

Para o cálculo da indemnização, partir-se-á da fórmula matemática aludida no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 04.04.1995, Colectânea de Jurisprudência, tomo II, p. 23, tendo em conta os elementos antes enunciados e uma taxa de juros de 3% e uma taxa de crescimento de 2%.

No entanto, o resultado final deve ser corrigido pela equidade, em função dos particulares circunstancialismos do caso concreto, a demandar, na presente situação, o seu ligeiro aumento, especialmente em razão de, por um lado, haver a probabilidade de a Autora vir a desenvolver necrose do osso (o que irá agravar o défice) e, por outro lado, de a lesão provocada afetar um membro essencial para o exercício de atividades profissionais de maior pendor físico (segmento em que aquela se inclui), já que sobre ele é exercida a carga do corpo (pelo que mais sentirá a necessidade de efetuar esforços acrescidos para manter um rendimento de trabalho atrativo para a sua entidade patronal).

Pelo que, tudo ponderado, entende-se adequada a atribuição da indemnização de € 28.500,00, pelo défice funcional consequente das sequelas (nas vertentes de perda da capacidade de ganho e dano biológico).”

Esta fundamentação encontra-se perfeitamente alinhada com as considerações que supra fizemos em matéria dos critérios jurídicos que devem presidir à fixação da indemnização pelo dano biológico, nas várias dimensões em que o mesmo se projeta.

A equidade não é sinónimo de arbitrariedade ou discricionariedade, sendo antes a aplicação da justiça ao caso concreto mediante ponderação, prudencial e casuística, das concretas circunstâncias da situação em análise. Nas palavras do Ac. do STJ, de 10/2/1998, (in CJ S. T., 1, p. 65) a equidade é "a justiça do caso concreto, flexível, humana, independente de critérios normativos fixados na lei", devendo o julgador "ter em conta as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida."

Para atingir o valor indemnizatório fixado, o tribunal a quo efetuou esta ponderação equitativa e o valor obtido está em perfeita consonância com os critérios jurisprudenciais mais recentes relativos a casos análogos.

Na verdade, ainda que se recorra à equidade, é importante que exista uma justiça relativa por forma a que se obtenham soluções idênticas para casos semelhantes, pois só assim se respeita o princípio da igualdade, plasmado no art. 13º, da CRP, e se acautela a imposição contida no art. 8º, nº 3, do CC, segundo o qual nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito. [...]

De referir ainda que, estando em causa critérios de equidade, as indemnizações arbitradas apenas devem ser reduzidas quando afrontem manifestamente as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das regras da vida, sendo que o valor indemnizatório deve ter carácter significativo, não podendo assumir feição meramente simbólica.

Por tudo quanto se vem de expor, e em síntese, considera-se adequada, proporcional, justificada e equitativa a fixação da indemnização em € 28 500 para ressarcir o dano biológico de uma lesada com 32 anos que ficou afetada numa perna com uma incapacidade de 9 pontos, que lhe condiciona o caminhar, agachar, sentar e levantar, estando tal valor perfeitamente alinhado e em consonância com as indemnizações atribuídas pelo Supremo Tribunal de Justiça para situações análogas, não se justificando reduzir tal valor, como pretendido pela recorrente."

*3. [Comentário] Tanto no acórdão em análise, como em STJ 3/11/2016 (5334/17.2T8GMR.G1) entende-se que perdas salariais não provadas podem ser substituídas pela indemnização do dano biológico. No fundo, substitui-se a não prova de um  determinado efeito pela prova de uma causa que pode provar vários efeitos.

MTS



25/01/2021

Bibliografia (Índices de revistas) (181)


KTS

KTS 81 (2020-3)

KTS 81 (2020-4)


Jurisprudência 2020 (133)


TAD
competência material

1. O sumário de RL 2/7/2020 (3504/19.8T8FNC-C.L1-6) é o seguinte:

I-Compete ao Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), em sede de arbitragem necessária, conhecer dos litígios emergentes dos actos e omissões das federações desportivas, ligas profissionais e outras entidades desportivas, no âmbito do exercício dos correspondentes poderes de regulamentação, organização, direção e disciplina, bem como dos recursos das deliberações tomadas por órgãos disciplinares das federações desportivas ou pela Autoridade Antidopagem de Portugal em matéria de violação das normas antidopagem.

II-Estando em causa, nesta acção, actos relacionados com a organização interna da federação desportiva, com a definição da sua estrutura orgânica, não estando portanto em causa o exercício de poderes públicos, a federação desportiva comporta-se como qualquer pessoa colectiva privada e encontra-se sujeita aos respectivos estatutos e à lei geral que rege as pessoas colectivas e em particular as associações. Tal matéria não está, assim, compreendida no âmbito da competência necessária do Tribunal Arbitral do Desporto.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Tendo em conta as conclusões de recurso que delimitam o respectivo âmbito de cognição deste Tribunal, a única questão a apreciar consiste na invocada incompetência absoluta do Tribunal recorrido por preterição do Tribunal Arbitral. Está em causa saber se a presente acção se encontra abrangida pela competência necessária do Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), criado pela Lei n.º 74/2013, de 6 de Setembro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 33/2014, de 16 de Junho.

O TAD foi criado com «competência específica para administrar a justiça relativamente a litígios que relevam do ordenamento jurídico desportivo ou relacionados com a prática do desporto», conforme estipulado no art.º 1.º n.º 2 daquela Lei.

A Lei do Tribunal Arbitral do Desporto estabelece que os litígios relacionados com a prática desportiva ou com o ordenamento jurídico desportivo poderiam ser decididos através de arbitragem voluntária ou arbitragem necessária.

Dispõem por sua vez os artigos 4.º e 5.º da Lei do Tribunal Arbitral do Desporto na redacção da Lei nº 33/2014, de 16 de Junho:

«Artigo 4º (Arbitragem necessária)
 
1 - Compete ao TAD conhecer dos litígios emergentes dos actos e omissões das federações desportivas, ligas profissionais e outras entidades desportivas, no âmbito do exercício dos correspondentes poderes de regulamentação, organização, direcção e disciplina.
2 - Salvo disposição em contrário e sem prejuízo do disposto no número seguinte, a competência definida no número anterior abrange as modalidades de garantia contenciosa previstas no Código de Processo nos Tribunais Administrativos que forem aplicáveis.
3 - O acesso ao TAD só é admissível em via de recurso de:
a) Deliberações do órgão de disciplina ou decisões do órgão de justiça das federações desportivas, neste último caso quando proferidas em recurso de deliberações de outro órgão federativo que não o órgão de disciplina;
b) Decisões finais de órgãos de ligas profissionais e de outras entidades desportivas.
4 - Com excepção dos processos disciplinares a que se refere o artigo 59.º da Lei n.º 38/2012, de 28 de agosto, compete ainda ao TAD conhecer dos litígios referidos no n.º 1 sempre que a decisão do órgão de disciplina ou de justiça das federações desportivas ou a decisão final de liga profissional ou de outra entidade desportiva não seja proferida no prazo de 45 dias ou, com fundamento na complexidade da causa, no prazo de 75 dias, contados a partir da autuação do respectivo processo.
5 - Nos casos previstos no número anterior, o prazo para a apresentação pela parte interessada do requerimento de avocação de competência junto do TAD é de 10 dias, contados a partir do final do prazo referido no número anterior, devendo este requerimento obedecer à forma prevista para o requerimento inicial.
6 - É excluída da jurisdição do TAD, não sendo assim susceptível designadamente do recurso referido no n.º 3, a resolução de questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares directamente respeitantes à prática da própria competição desportiva.»
 
«Artigo 5.º (Arbitragem necessária em matéria de dopagem)
 
Compete ao TAD conhecer dos recursos das deliberações tomadas por órgãos disciplinares das federações desportivas ou pela Autoridade Antidopagem de Portugal em matéria de violação das normas antidopagem, nos termos da Lei n.º 38/2012, de 28 de agosto, que aprova a lei antidopagem no desporto.»
 
Resulta, pois, destas normas que são decididos através da arbitragem necessária, as questões relativas a litígios emergentes dos actos e omissões das federações desportivas, ligas profissionais e outras entidades desportivas, no âmbito do exercício dos correspondentes poderes de regulamentação, organização, direcção e disciplina, detendo o TAD, nessa matéria, competência jurisdicional exclusiva. Verifica-se ainda que as situações de arbitragem necessária da competência do TAD, estão taxativamente definidas na lei. 

No caso em apreço, está em causa um pedido de anulação de uma cláusula dos Estatutos da Federação Portuguesa de Automobilismo e Karting bem como a anulação dos preceitos constante do art.º 7.º do Regulamento Eleitoral da Ré.

A questão está em saber se essa matéria se poderá integrar na previsão dos citados preceitos que delimitam a competência exclusiva do TAD, designadamente por se tratar de um litígio que respeite a acto de federação desportiva “ no âmbito do exercício dos correspondentes poderes de regulamentação, organização, direcção e disciplina”, tal como entendeu a decisão recorrida que concluiu, precisamente, estar em causa “um litígio emergente de um acto da Ré (federação desportiva) correspondente a um poder de regulamentação e organização, que a Autora (entidade desportiva) entende por em causa seus direitos. Pedido esse que se enquadra sem qualquer duvida no aludido art. 4, nº 1 da Lei do TAD”.

Será sssim? Vejamos:

A determinação do que se deve entender por “exercício dos poderes de regulamentação, organização, direcção e disciplina de uma federação desportiva” implica uma breve análise do ordenamento jurídico em vigor.

A Lei n.º 5/2007 – Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto –, alterada precisamente pela Lei n.º 74/2013, de 6 de Setembro, que criou o Tribunal Arbitral do Desporto, actualmente em vigor, pretendeu, segundo se afirma na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 80/X que esteve na origem daquela Lei, traduzir «uma preocupação acrescida do Estado na separação entre desporto profissional e não-profissional, nomeadamente no que concerne às ligas profissionais e às suas relações com as federações desportivas em que se inserem. A este respeito cumpre assinalar os seguintes aspectos: – a consagração de um novo conceito de liga profissional, esclarecendo-se que esta terá obrigatoriamente que assumir a forma de associação sem fins lucrativos e que passa a poder englobar, não apenas os clubes e sociedades desportivas participantes das competições profissionais, mas também outros agentes desportivos; – o estabelecimento, na linha do que constitui a matriz específica do modelo europeu de desporto, de que os quadros competitivos geridos pelas ligas profissionais constituem o nível mais elevado das competições desportivas desenvolvidas no âmbito da respectiva federação desportiva, pressupondo assim a existência de esquemas de permeabilidade entre as competições profissionais e as outras e inviabilizando a ideia das ligas fechadas; – o esclarecimento de que as ligas estão integradas nas respectivas federações e que exercem, por delegação destas, as competências para regular as competições de natureza profissional; – a clarificação das relações entre as ligas e as respectivas federações desportivas, em particular no que concerne à disciplina e à arbitragem, prevendo-se, no que a esta concerne, que a mesma seja estruturada por forma a que as entidades que designam os árbitros para as competições sejam necessariamente diferentes das entidades que avaliam a prestação dos mesmos; – a definição ainda de que as relações entre as ligas profissionais e as federações respectivas são estabelecidas contratualmente, designadamente no que concerne ao número de clubes que participam na competição profissional, ao regime de acesso entre as competições profissionais e não profissionais, à organização da actividade das selecções nacionais e ao apoio à actividade desportiva não profissional, prevendo-se uma forma de superação dos conflitos que daqui eventualmente surjam através de intervenção do Conselho Nacional do Desporto e do recurso à arbitragem».

Nesta conformidade, os artigos 14.º e 15.º da referida Lei n.º 5/2007 de 16 de Janeiro, definem o conceito de federação desportiva, do seguinte modo:

«Artigo 14.º (Conceito de federação desportiva)
 
As federações desportivas são, para efeitos da presente lei, pessoas colectivas constituídas sob a forma de associação sem fins lucrativos que, englobando clubes ou sociedades desportivas, associações de âmbito territorial, ligas profissionais, se as houver, praticantes, técnicos, juízes e árbitros, e demais entidades que promovam, pratiquem ou contribuam para o desenvolvimento da respectiva modalidade, preencham, cumulativamente, os seguintes requisitos: a) Se proponham, nos termos dos respectivos estatutos, prosseguir, entre outros, os seguintes objectivos gerais: i) Promover, regulamentar e dirigir, a nível nacional, a prática de uma modalidade desportiva ou de um conjunto de modalidades afins ou associadas; ii) Representar perante a Administração Pública os interesses dos seus filiados; iii) Representar a sua modalidade desportiva, ou conjunto de modalidades afins ou associadas, junto das organizações desportivas internacionais, bem como assegurar a participação competitiva das selecções nacionais; b) Obtenham o estatuto de pessoa colectiva de utilidade pública desportiva.»
 
«Artigo 15.º (Tipos de federações desportivas)
 
1 – As federações desportivas são unidesportivas ou multidesportivas.
2 – São federações unidesportivas as que englobam pessoas ou entidades dedicadas à prática da mesma modalidade desportiva, incluindo as suas várias disciplinas, ou a um conjunto de modalidades afins ou associadas.
3 – São federações multidesportivas as que se dedicam, cumulativamente, ao desenvolvimento da prática de diferentes modalidades desportivas, em áreas específicas de organização social, designadamente no âmbito do desporto para cidadãos portadores de deficiência e do desporto no quadro do sistema educativo.»

 Sobre o estatuto de utilidade pública desportiva estabelece o artigo 19.º:

 «Artigo 19.º (Estatuto de utilidade pública desportiva)

1 – O estatuto de utilidade pública desportiva confere a uma federação desportiva a competência para o exercício, em exclusivo, por modalidade ou conjunto de modalidades, de poderes regulamentares, disciplinares e outros de natureza pública, bem como a titularidade dos direitos e poderes especialmente previstos na lei.
2 – Têm natureza pública os poderes das federações desportivas exercidos no âmbito da regulamentação e disciplina da respectiva modalidade que, para tanto, lhe sejam conferidos por lei.
3 – A federação desportiva à qual é conferido o estatuto mencionado no n.º 1 fica obrigada, nomeadamente, a cumprir os objectivos de desenvolvimento e generalização da prática desportiva, a garantir a representatividade e o funcionamento democrático internos, em especial através da limitação de mandatos, bem como a transparência e regularidade da sua gestão, nos termos da lei.»

Importa ainda convocar o disposto no artigo 18:º (Justiça desportiva)

«Os litígios emergentes dos actos e omissões dos órgãos das federações desportivas e das ligas profissionais, no âmbito do exercício dos poderes públicos, estão sujeitos às normas do contencioso administrativo, ficando sempre salvaguardados os efeitos desportivos entretanto validamente produzidos ao abrigo da última decisão da instância competente na ordem desportiva.»
 
O regime jurídico estabelecido pela Lei n.º 5/2007, de 16 de Janeiro, e nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 198.º da Constituição, foi desenvolvido pelo Decreto-Lei n.º 248-B/2008, de 31 de Dezembro (alterado pela Lei n.º 74/2013, de 6 de Setembro, e pelo Decreto-Lei n.º 93/2014, de 23 de Junho) que estabelece o regime jurídico das federações desportivas e as condições de atribuição do estatuto de utilidade pública desportiva.

Nos termos dos artigos 10.º e 14.º deste diploma «o estatuto de utilidade pública desportiva confere à federação desportiva competência exclusiva para o exercício de poderes regulamentares, disciplinares e outros de natureza pública, por modalidade ou conjunto de modalidades».

O n.º2 do artigo 26.º, sob a epígrafe “tipos de associações”, estabelece que as «federações unidesportivas em que se disputem competições desportivas de natureza profissional integram uma liga profissional, de âmbito nacional, sob a forma de associação sem fins lucrativos, com personalidade jurídica e autonomia administrativa, técnica e financeira».

Da análise do conjunto destas normas resulta, assim, que as federações desportivas são associações de direito privado sem fins lucrativos, às quais, através da atribuição do estatuto de utilidade pública desportiva, são conferidos poderes de natureza pública (cf. artigos 14.º e 19.º da Lei n.º 5/2007, de 16 de Janeiro, e artigos 10.º e 14.º do Decreto-Lei n.º 248-B/2008, de 31 de Dezembro.

Ou seja, “todos os conflitos desportivos de Direito Administrativo encontram-se submetidos à arbitragem necessária do TAD. São, portanto, compreendidos aqueles conflitos que derivam de «poderes de regulamentação, organização, direcção e disciplina». Incluem-se aqui, por exemplo, conflitos que derivam de uma sanção disciplinar ou de uma norma de um regulamento (administrativo) de uma federação desportiva” [Artur Flamínio da Silva e Daniela Mirante, in O Regime Jurídico do Tribunal Arbitral do Desporto – Anotado e Comentado, Lisboa, 2016, pág. 34, APUD Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21-02-2019, Processo 4375/18.7T8PRT.P1, disponível em www.dgsi.pt]. Ou dito de outro modo, impõe-se concluir, tal como refere a Apelante que o legislador quis limitar a jurisdição arbitral necessária do TAD à apreciação de litígios emer­gentes de relações jurídicas de direito administrativo no quadro do exer­cício, por parte das federações desportivas, dos poderes de autoridade pública que elas são convocadas a exercer por força do estatuto de utilidade pública desportiva de que gozam.

Tal não ocorre, porém, nos litígios como o dos autos em que está em causa a apreciação da validade das cláusulas dos Estatutos da Federação Portuguesa de Automobilismo e Karting (FPAK) [...], bem como a validade das normas do respectivo regulamento eleitoral que se regem pelas normas de direito privado relativas ao regime jurídico das associações, conforme expressamente refere o art.º 4.º do D.L. 248-B/2008 de 31 de Dezembro ( Regime Jurídico das Federações Desportivas –RJFD)
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Como bem se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15-03-2018 [...] (proc. 23267/17.0T8LSB.L1-6), «Destinando-se o TAD a administrar a justiça relativamente a litígios que relevam do ordenamento jurídico desportivo ou relacionados com a prática do desporto, o litígio em causa, não releva nem do ordenamento desportivo, nem está relacionado com a prática do desporto. (…)conforme resulta à saciedade do disposto no artº 4 nº3, o acesso ao TAD só é admissível em via de recurso das decisões dos órgãos jurisdicionais das federações desportivas ou das decisões finais de outras entidades desportivas referidas no n.º 1, ou seja quando estas tenham tomado estas decisões, no exercício dos correspondentes poderes de regulamentação, organização, direcção e disciplina. Não se vê que dos factos elencados pelas requerentes, resulte que tenha existido decisão final (comunicada esta às requerentes) tomada pelas requeridas e inserida no exercício de poderes de regulamentação, organização e disciplina, em conexão com actividade desportiva, que tenha de ser submetida em via de recurso ao TAD. Não se vislumbra sequer, nem foi invocada qualquer disposição regulamentar, norma de natureza técnica ou de carácter disciplinar, ou outra que permita ao tribunal recorrido afirmar que este litígio só pode e deve, ser submetido ao TAD.»

O mesmo entendimento está subjacente à decisão do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27-06-2018 no qual se pode ler: «o art.º 4.º da Lei do TAD vem então dispor sobre as matérias que necessariamente têm de ser submetidas a este tribunal, prevendo que lhe compete conhecer dos conflitos que decorrem dos actos e omissões das Federações Desportivas, das Ligas Profissionais e de outras entidades desportivas no que respeita ao exercício dos respectivos poderes de regulamentação, organização, direcção e disciplina, ou seja, dos actos e omissões que resultam do exercício dos seus poderes públicos. Estes actos ou omissões que esta norma prevê que sejam submetidos obrigatoriamente ao TAD são aqueles que resultam do exercício por aquelas entidades dos seus poderes de regulamentação, organização, direcção e disciplina, sendo estes que relevam do ordenamento jurídico desportivo, ou relacionados com a prática do desporto submetida a tal regulamentação, conforme prevê o art.º 1.º da Lei 74/2013 que define o objecto do TAD.»

O que está em causa na acção que nos ocupa são actos relacionados com a organização interna da federação desportiva, com a definição da sua estrutura orgânica. Nesse aspecto particular, a federação, ora Ré, não exerce quaisquer poderes públicos, comporta-se como qualquer pessoa colectiva privada e encontra-se sujeita aos respectivos estatutos e à lei geral que rege as pessoas colectivas e em particular as associações.[Neste sentido vide também o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21-02-2019, Processo 4375/18.7T8PRT.P1, disponível em www.dgsi.pt.].

[MTS]