Factos complementares;
poderes da Relação
1. O sumário de RG 4/3/2021 (6250/18.6T8GMR.G1) é o seguinte:
I. Peticionando o autor indemnização em dinheiro, correspondente ao alegado valor comercial do seu veículo automóvel danificado em acidente de viação, no pressuposto de ser excessivamente oneroso o custo da reparação deste e no de que ficassem para a ré seguradora os respectivos salvados, seria nula a sentença, ao abrigo do artº 65º, nº 1, alínea d), CPC, por condenar em objecto diverso e infringir o princípio ne eat iudex ultra vel extra petita partium, corolário do dispositivo, se o tribunal, sem que qualquer modificação houvesse sido requerida, condenasse a ré no pagamento do valor do referido custo estimado da reparação. Tratar-se-ia, então, de pedidos e de prestações diversos.
II. Não é isso que acontece se, devidamente interpretada a sentença, se conclui dela que o tribunal, para fixar e condenar no valor julgado devido, implicitamente pressupôs que deve ser descontado o valor dos salvados e, comparando este, o da reparação e o valor comercial controverso mas factualmente apurado, concluiu e decidiu optar e fixar, como valor indemnizatório equitativamente justo, o correspondente (por coincidência) ao do custo estimado da sua reparação.
III. Hipotético errore in judicando nesse iter nada tem a ver com a arguida nulidade.
IV. A denominada tabela “Eurotax” é um elemento de prova a apreciar e a valorar livremente, como outros relativos ao mercado, no apuramento do valor (venal ou comercial) do veículo acidentado enquanto activo integrante do património do lesado seu dono.
V. A Relação pode considerar e aditar aos provados factos essenciais complementares ou concretizadores, nos termos e condições previstos nos artºs 5º, nº 2, alínea b), e 662º, nº 2, alínea c), CPC.
VI. Os valores pagos pelo dono do veículo acidentado impossibilitado de circular relativos ao Imposto único de Circulação e ao Prémio de Seguro não são autonomamente indemnizáveis.
VII. O direito à indemnização pela privação do uso do veículo acidentado não depende de daí resultar um prejuízo patrimonial, mas aquele cessa a partir do momento em que o dono adquiriu e passou a utilizar outro em tudo idêntico em sua substituição.
VIII. Inexiste fundamento legal para excluir do valor indemnizatório relativo ao valor comercial do veículo acidentado o dos salvados respectivos, propriedade do lesado.
IX. Apresentando ambas as partes recorrentes/recorridas alegações e respostas escusadamente prolixos e conclusões que quase se limitam a copiá-los e não cumprem o ónus de síntese previsto no nº 1, do artº 639º e decaindo ambas nas respectivas apelações, devem ser condenadas, com taxa de justiça correspondente a especial complexidade, nas custas respectivas, ao abrigo dos artºs 527º, nº 1 e 2, e 530º, nº 7, alínea a), CPC.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Pretende a ré que, nos termos do artº 5º, nº 2, alínea b), CPC, sejam aditados factos decorrentes da instrução e discussão da causa que considera serem complementares dos alegados por si na contestação e confessados pelo autor no seu depoimento.
Tais factos respeitam à utilização que sempre o autor fez, desde 11-12-2017, primeiro de veículos de aluguer, depois de um que lhe foi emprestado pela Mercedes e, mais tarde, de outro idêntico ao acidentado e que entretanto adquiriu e, em sua perspectiva, relevam para a questão do dano relativo à privação do uso do QF.
O autor, sobretudo nos itens 51 a 59 da sua petição, alegou ter sofrido danos, que qualifica ora patrimoniais ora não patrimoniais, resultantes da privação do uso do seu veículo, por este ter ficado impossibilitado de circular, quer os reflectidos no exercício da sua actividade profissional em que o utilizava, quer na satisfação e conforto que a disponibilidade do mesmo lhe proporcionava.
A ré, maxime nos itens 120 e seguintes, contestou a inerente pretensão, alegando que sempre o autor, de uma maneira ou de outra (utilização de veículo próprio ou alugado, fosse por si ou pela ré), pôde assegurar tal utilização.
Nos factos provados, consta que entre 11-12-2017 e 09-02-2018 o autor teve à sua disposição primeiro um BMW série 3 e, depois um Mercedes Classe A (ponto 19) e que é proprietário de um Renault Megane e que depois adquiriu um novo Mercedes (ponto 21).
Ora, alegando ele (e fá-lo no seu recurso) que o Megane era utilizado somente pela sua companheira, referindo-se aquela disponibilidade apenas até 09-02-2018 e reportando-se a aquisição do veículo novo a 18-09-2018, considera-se que releva saber, mais concreta e complementarmente, de que meios na verdade o autor, desde o acidente, dispôs ou poderia ter disposto efectivamente, de modo a poderem ajuizar-se e avaliar-se os prejuízos alegadamente sofridos e ainda em discussão, pois que pode não ser o mesmo dispor de um (ainda que qualquer) veículo ou não dispor de nenhum, mesmo que o autor defenda que sempre deve ser indemnizado pela privação ainda na primeira hipótese.
Sobre isso, o depoimento prestado em audiência pelo próprio autor é muito assertivo e elucidativo: “eu tive um carro alugado até Junho”, “a partir daí, tive um carro que me foi emprestado pela própria Mercedes” (isto porque houve atraso na entrega do que adquirira novo) e, em suma, quando questionado se sempre teve veículo à disposição a partir de 11-12-2017, respondeu afoitamente “Tive sempre um veículo à minha disposição”.
De resto, embora não provasse o custo e o pagamento, ele já alegara (item 79 da pi) que sempre dispôs de viatura em regime de aluguer, concretizando agora que tal sucedeu até Junho.
Não há dúvida que, atenta a essencialidade deste facto e na medida em que ele concretiza ou complementa o alegado pela ré, ele não só deve ser considerado nos termos do artº 5º, nº 2, alínea b), como pode ser aditado nos termos da parte final, da alínea c), do nº 2, do artº 662º.
Não nos parece que tal consideração se restrinja à primeira instância, dados os poderes cometidos nesta matéria à Relação (artº 662º), sendo discutível, isso sim, a questão de saber se tal exige uma expressa comunicação prévia e exortação ao cabal exercício do contraditório ou se basta com a verificação de as partes terem tido a possibilidade de sobre tais factos se pronunciarem.
Sobre isso nos debruçámos no nosso recente Acórdão, de 04-02-2021 [Processo nº 56/17.7T8MTR.G1], para cuja fundamentação remetemos, no qual concluímos, resumindo que “Mesmo a entender-se, o que não é pacífico nem a lei refere, que a consideração pelo juiz, ao abrigo do artº 5º, nº 2, b), CPC, de factos essenciais complementares ou concretizadores carece, para exercício do contraditório, de ser previamente por ele anunciada, considera-se tal direito plenamente exercido se o facto considerado foi alvo de constante e intensa discussão durante a audiência e, portanto, é de presumir haver implícito acordo dos sujeitos processuais quanto à sua essencialidade.”
Tendo, portanto, a factualidade em causa sido amplamente discutida na audiência, no pressuposto aceite por todos da sua essencialidade e resultando ela absolutamente certa e segura do próprio depoimento do autor, apesar de contraposta à sua tese e pretensão, julga-se nada obstar à sua inclusão que antes se impõe.
Assim, aditar-se-á um ponto com o nº 21-A, com a seguinte redacção:
“A partir de 11-12-2017, não obstante o referido em 14, o autor teve sempre à sua disposição veículo automóvel, primeiro alugado, depois um emprestado pela Mercedes e, por fim, o novo Mercedes Classe C Station que adquiriu e lhe foi entregue em 18-09-2018”.
Nesta parte e nesta medida procederá, pois, o recurso da ré."
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