"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



18/10/2021

Jurisprudência 2021 (57)


Herança indivisa;
divisão de coisa comum*


1. O sumário de RG 11/3/2021 (5901/18.7T8GMR.G1) é o seguinte:

I- Não podem os herdeiros instaurar ação de divisão de coisa comum para dividir prédio que integre a herança;

II- Só após a atribuição dos bens em partilha os herdeiros podem recorrer à ação de divisão de coisa em comum;

III- Sendo a herança indivisa, ela própria, comproprietária (a par de terceiros) de um imóvel e sendo interposta uma ação de divisão de coisa comum de tal imóvel por terceiro, antes da partilha, deverão ser demandados todos os herdeiros, os quais agirão como representantes da herança e não em nome próprio.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"C) No presente recurso está em causa apurar da propriedade ou impropriedade do meio processual utilizado para os fins pretendidos pela autora.

Há erro na forma de processo quando correspondendo ao caso processo especial, se utilize o processo comum, ou vice-versa, ou quando se utilizou um processo especial inadequado em detrimento do pertinente, o mesmo ocorrendo, mutatis mutandis, com os procedimentos cautelares – Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil anotado, 2ª Edição, 2014, página 252.

Como afirma Luís Filipe Pires de Sousa in Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, 2017, a páginas 80, “a forma de processo afere-se em função do tipo de pretensão pelo autor e não em referência à pretensão que devia ser por ele deduzida (aqui trata-se não de uma impropriedade da forma de processo, mas de uma situação de eventual manifesta improcedência da ação). O que caracteriza o erro na forma de processo é que, ao pedido formulado, corresponda forma de processo diversa da empregue e que não se mostre possível através da adequação formal, fazer com que, com a forma de processo efetivamente adotada, se venha a conseguir o efeito jurídico pretendido pelo autor.”

A situação dos autos permite, desde já, assinalar, que relativamente aos bens cuja divisão se requer, alguns dos interessados são comproprietários das frações que se indicam havendo ainda outros que intervêm na qualidade de herdeiros de comproprietários pré-falecidos em que não se mostra partilhada a respetiva herança e é precisamente baseada nesta situação que a decisão recorrida entende que se impõe a prévia habilitação e partilha de tais bens.

Vejamos.

Não pode haver dúvidas que uma das funções do processo de inventário é o de fazer cessar a comunhão hereditária e proceder à partilha de bens [artigo 1082º alínea a) NCPC].

Isto porque, como afirma Luís Filipe Pires de Sousa in Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de contas, 2017, a páginas 18 e seg., “no caso de comunhão hereditária, a mesma cessa pela partilha de uma generalidade de bens entre os interessados, por forma a ficar determinado quais os patrimónios individuais em que tais bens passarão a estar integrados.

Até à partilha, os herdeiros são apenas titulares de um direito sobre o conjunto da herança e não sobre bens certos e determinados. Enquanto não se fizer a partilha, os herdeiros têm sobre os bens que constituem a herança indivisa um direito indivisível, recaindo tal direito sobre o conjunto da herança e não sobre bens certos e determinados desta. A contitularidade do direito à herança implica um direito a uma parte ideal desta considerada em si mesma e não sobre cada um dos bens que a compõe.

Nessa medida, não se tratando de coisa comum de que sejam comproprietários, não podem os herdeiros instaurar ação de divisão de coisa comum para dividir prédio que integre a herança. Só após a atribuição dos bens em partilha é que os herdeiros podem recorrer à ação de divisão de coisa em comum…

Enquanto a causa de pedir no inventário é a existência de comunhão hereditária integrada por bens a partilhar deixados pelo de cujus, traduzindo-se o pedido na partilha de tais bens pelos interessados, na ação de divisão de coisa comum a causa de pedir consiste na compropriedade de certo bem que se quer dissolver, sendo o pedido ou de adjudicação ou venda desse bem.

Pode suceder que a herança indivisa seja, ela própria, comproprietária (a par de terceiros) de um imóvel. Sendo interposta uma ação de divisão de coisa comum de tal imóvel por terceiro, antes da partilha, deverão ser demandados todos os herdeiros, os quais agirão como representantes da herança e não em nome próprio (Cf. Artigo 2091º nº 1 do Código Civil).”

Em face do exposto, já se compreende que a solução da questão colocada não pode ser a sustentada na decisão recorrida, dado que, a não ser assim, estar-se-ia a impor aos comproprietários ou outros titulares de direitos em comum que, sempre que um dos comproprietários, ou contitular, que pretendesse pôr fim à indivisão, se um dos demais comproprietários fosse uma herança, não sendo aquele, herdeiro, veria o seu direito à divisão postergado, uma vez que a seguir-se a tese da decisão recorrida teria de se proceder à prévia partilha desta herança e se os herdeiros não pretendessem partilhá-la, aquele direito inexistiria, uma vez que o requerente, não sendo herdeiro, não tinha legitimidade para promover aquela partilha (cfr. artigo 1085º NCPC).

No sentido em que propendemos, pode ver-se, entre outros, os acórdãos da Relação de Lisboa de 02/02/2021, no processo 284/18.8T8LSB.L1-7, relatado pela Desembargadora Micaela Sousa e da Relação de Évora de 12/07/2012, no processo 1100/11.7, relatado pelo Desembargador Canelas Brás, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.

E como se refere neste último aresto, “é perfeitamente possível proceder à divisão dos prédios, acabando com uma situação indesejada (para alguns) de compropriedade, sem bulir com o que neles ainda não esteja partilhado. Pois conforme está nos autos toda a gente de acordo, não se partilha, na Ação para Divisão de Coisa Comum, uma herança indivisa; esta permanece como está antes e depois da divisão e é atribuída em bloco ao conjunto dos seus herdeiros – não se tratando, pois, de dividir a parte que ainda está por partilhar.”

Pelo exposto, sem necessidade de ulteriores considerações, resulta que a apelação terá de proceder e a douta decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que, sem prejuízo do conhecimento de outras questões que obstem ao conhecimento do mérito da causa, determine o prosseguimento dos autos."


*[Comentário] Apenas uma precisão: 

Os herdeiros, porque são partes, não são representantes de ninguém, nem sequer da herança. Em processo civil, não há partes representantes, nem representantes partes: ou é parte ou é representante. O que se pode dizer é que os herdeiros estão em juízo na qualidade de herdeiros, ou seja, que a sua legitimidade processual decorre da circunstância de serem herdeiros. 

Mas isto não é nada de especial. Qualquer parte, para ser parte legítima, tem de ter uma qualidade que lhe atribua essa legitimidade. É o que se passa, por exemplo, com o credor e com o devedor numa acção de cobrança de dívida.

MTS