"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



20/10/2021

Jurisprudência 2021 (59)


Processo de inventário;
competência por conexão*


1. O sumário de RL 25/3/2021 (7752/19.2T8ALM-B.L1-2) é o seguinte:

I - O processo de inventário judicial instaurado pela Executada, por apenso à execução em que foi demandada nos termos do art. 54.º do CPC, como sucessora dos falecidos devedores mutuários, ainda que se possa destinar à aceitação, por aquela, da herança deixada por estes últimos (seus pais), a benefício de inventário (cf. art. 2053.º do CC), não é da competência, em razão da matéria, do Juízo de Execução em que corre termos a ação executiva, mas do (competente) Juízo Local.

II - A tanto não obsta o disposto no art. 1083.º, n.º 1, al. b), do CPC, pois não é aplicável ao caso uma norma de atribuição de competência por conexão, da qual resulte, em conjugação com o disposto no art. 206.º do CPC, que o processo deve correr por apenso à execução hipotecária pendente.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC).

A única questão a decidir é a de saber se o Juízo de Execução de Almada é competente para o processo de inventário requerido por apenso à ação executiva que aí corre termos.
Os factos com relevância para conhecer do mérito do recurso são os que constam do relatório supra (para cuja elaboração também foram consultados via Citius o processo principal e o apenso A).

Considerou o Tribunal recorrido que não era materialmente competente para conhecer do inventário judicial requerido, por apenso. [...]

A competência material do Juízo de Execução está consagrada no art. 129.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26-08) nos seguintes termos:

“1 - Compete aos juízos de execução exercer, no âmbito dos processos de execução de natureza cível, as competências previstas no Código de Processo Civil.
2 - Estão excluídos do número anterior os processos atribuídos ao tribunal da propriedade intelectual, ao tribunal da concorrência, regulação e supervisão, ao tribunal marítimo, aos juízos de família e menores, aos juízos do trabalho, aos juízos de comércio, bem como as execuções de sentenças proferidas em processos de natureza criminal que, nos termos da lei processual penal, não devam correr perante um juízo cível.
3 - Para a execução das decisões proferidas pelo juízo central cível é competente o juízo de execução que seria competente se a causa não fosse da competência daquele juízo em razão do valor.”

Impõe-se, pois, averiguar se, da lei processual civil, em particular do Código de Processo Civil e das disposições reguladoras do processo de execução (cf. artigos 703.º a 877.º), resulta que o processo de inventário seja, por conexão, da competência do Juízo de Execução, devendo correr por apenso à ação executiva pendente, ao invés de ser distribuído ao Juízo Local (face à regra da competência residual - cf. art. 130.º da LOSJ).

É sabido que a lei processual civil prevê diferentes situações de competência por conexão, estatuindo o n.º 2 do art. 206.º do CPC que as causas que por lei ou por despacho devam considerar-se dependentes de outras, ao invés de sujeitas a distribuição (cf. n.º 1 do artigo), são apensadas àquelas de que dependamPor exemplo, é o caso que decorre do disposto nos artigos 78.º, n.º 2, e 364.º, ambos do CPC, com a apensação do procedimento cautelar à ação principal de que é dependência (que pode mesmo ser uma ação executiva, conforme expressamente previsto na parte final do n.º 1 do art. 364.º).

Quanto ao processo de inventário (que, no regime vigente, pode ser notarial ou judicial), é sabido que serve os propósitos que emergem do direito substantivo, mormente dos artigos 2102.º e 2103.º do CC, preceituando o primeiro, com a epígrafe “Forma”, que:

“1 - Havendo acordo dos interessados, a partilha é realizada nas conservatórias ou por via notarial, e, em qualquer outro caso, por meio de inventário, nos termos previstos em lei especial. [...]

A “lei especial” a que se refere o Código Civil, designadamente no n.º 1 do art. 2102.º e também no art. 2053.º do CC (este relativo, precisamente, à “Aceitação a benefício de inventário”) é, desde 1 de janeiro de 2020 (e sem prejuízo das regras transitórias), a que resulta da Lei n.º 117/2019, de 13-09 (cf. art. 15.º da Lei), a qual veio, além do mais, alterar o Código de Processo Civil, em matéria de processo executivo e processo de inventário, revogando o regime jurídico do processo de inventário, aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 05-03, e aprovando, em Anexo, o regime do inventário notarial. Assim, atualmente, o processo de inventário judicial encontra-se regulado nos artigos 1082.º e ss. do CC.

Transpondo para o plano do direito processual o que resulta dos preceitos de direito substantivo consagrados no Código Civil, estabelece o art. 1082.º, sob a epígrafe “Função do inventário”, que:

“O processo de inventário cumpre, entre outras, as seguintes funções:
a) Fazer cessar a comunhão hereditária e proceder à partilha de bens;
b) Relacionar os bens que constituem objeto de sucessão e servir de base à eventual liquidação da herança, sempre que não haja que realizar a partilha da herança;
c) Partilhar bens em consequência da justificação da ausência;
d) Partilhar bens comuns do casal.”

Por sua vez, o art. 1083.º do CC (invocado pela Apelante), na redação introduzida pela referida Lei, tem como epígrafe “Repartição de competências”, e visa dar corpo ao princípio de competência concorrente, estatuindo que:

“1 - O processo de inventário é da competência exclusiva dos tribunais judiciais:
a) Nos casos previstos nas alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 2102.º do Código Civil;
b) Sempre que o inventário constitua dependência de outro processo judicial;
c) Quando o inventário seja requerido pelo Ministério Público.
2 - Nos demais casos, o processo pode ser requerido, à escolha do interessado que o instaura ou mediante acordo entre todos os interessados, nos tribunais judiciais ou nos cartórios notariais.
3 - Se o processo for instaurado no cartório notarial sem a concordância de todos os interessados, o mesmo é remetido para o tribunal judicial se tal for requerido, até ao fim do prazo de oposição, por interessado ou interessados diretos que representem, isolada ou conjuntamente, mais de metade da herança.”

De referir, por último, que a partilha de bens em casos especiais se encontra regulada nos artigos 1131.º a 1135.º do CPC, atinentes aos processos de inventário para partilha de bens resultante de justificação da ausência, separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento ou necessidade de separação dos bens comuns do casal em casos especiais.

Em face desta breve excursão sobre as pertinentes normas do regime, é já claro que a aplicação do art. 1083.º, n.º 1, al. b), do CPC supõe, inevitavelmente, a existência de outra norma que estabeleça a dependência ou conexão da qual resulte, na conjugação com o referido art. 206.º, n.º 2, do CPC, que o inventário deve correr por apenso a outro processo judicial, caso em que, conforme determinado naquele artigo, o inventário será da competência exclusiva dos tribunais judiciais, ficando então arredada a possibilidade de se optar pela via do inventário notarial.

Os contributos da doutrina sobre esta matéria são também esclarecedores, tornando evidente que o preceito invocado pela Apelante não tem o alcance (ou a razão de ser) que esta defende.

Começamos por lembrar, a propósito, a explicação do Juiz Conselheiro jubilado Lopes do Rego, in “A recapitulação do inventário”artigo publicado na Revista Julgar Online, dezembro de 2019, págs. 6 e 7 [...]:

“Importa começar por analisar os traços fundamentais do sistema alternativo ou concorrencial delineado pela Lei n.º 117/2019:
a) Em primeiro lugar, há situações de competência exclusiva ou imperativa do tribunal, definidas pelo art. 1083.º, n.º 1 CPC: e, assim, o processo de inventário é da competência exclusiva dos tribunais judiciais:
I) Nos casos previstos nas alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 2102.º do Código Civil ou seja, quando a lei sucessória impõe a aceitação beneficiária, por o Ministério Público considerar que, estando em causa interessados incapazes ou equiparados, a tutela dos respetivos interesses implica a aceitação a benefício de inventário, ou por o ausente ou incapaz de facto não poder outorgar em partilha por acordo;
II) Sempre que o inventário constitua dependência de outro processo judicial – prevalecendo, neste caso a competência por conexão sobre a eventual vontade e interesse das partes em requerer inventário notarial;
III) Quando o inventário seja requerido pelo Ministério Público, desencadeando ele próprio o processo judicial, em que intervém como parte principal, no interesse do incapaz, menor acompanhado ou ausente.
b) Fora destes casos de competência exclusiva do tribunal judicial, a Lei n.º 117/19 admite a desjudicialização, desde que consentida, quer pelo notário, quer pela maioria dos interessados: é o que decorre, quer do art. 1.º do Anexo em que se regulamenta o inventário notarial, quer do art. 1083.º, n.ºs 2 e 3 CPC.
 
A desjudicialização, no novo regime instituído pela Lei n.º 117/19, pressupõe assim:
– que o notário perante o qual é requerido o inventário conste de lista elaborada pela Ordem dos Notários, enunciando aqueles que pretendem processar tais processos no respetivo cartório;
– que, nos casos em que se não verifique a competência exclusiva do tribunal, o processo possa ser requerido, à escolha do interessado que o instaura ou mediante acordo entre todos os interessados, nos tribunais judiciais ou nos cartórios notariais; porém, se o processo for instaurado no cartório notarial sem a concordância de todos os interessados, o mesmo é remetido para o tribunal judicial se tal for requerido, até ao fim do prazo de oposição, por interessado ou interessados diretos que representem, isolada ou conjuntamente, mais de metade da herança.” [...]

Em suma, a aplicação do art. 1083.º, n.º 1, al. b), do CPC supõe a existência de uma norma que estabeleça uma competência por conexão. Em especial, no que ao processo executivo concerne, e além da possibilidade da apensação de ações prevista no art. 267.º do CPC, destaca-se o disposto no art. 917.º, n.º 2, al. b), do CPC, atinente à apensação ao processo executivo do processo de consignação em depósito, e o preceituado no art. 940.º, n.º 5, do mesmo Código, relativo à apensação da execução ao processo de liquidação da herança vaga em benefício do Estado, situações que nada têm a ver com a que nos ocupa.
Os preceitos legais invocados pela Apelante em nada alteram esta conclusão.

É bem certo que, conforme resulta dos artigos 2052.º, n.º 1, e 2053.º, ambos do CPC, a herança pode ser aceita pura e simplesmente ou a benefício de inventário, e que a aceitação a benefício de inventário se faz requerendo inventário, “nos termos previstos em lei especial, ou intervindo em inventário pendente”. Mais preceituando o artigo 2103.º do CC que, havendo um único interessado, o inventário a que haja de proceder-se nos termos do n.º 2 do artigo anterior tem apenas por fim relacionar os bens e, eventualmente, servir de base à liquidação da herança.

Não se ignora as eventuais implicações de uma aceitação a benefício de inventário na execução pendente, tendo em atenção a defesa deduzida nos embargos de executado e considerando especialmente o disposto no art. 2071.º do CC, o qual preceitua, sob a epígrafe “Responsabilidade do herdeiro”, que:

“1. Sendo a herança aceita a benefício de inventário, só respondem pelos encargos respectivos os bens inventariados, salvo se os credores ou legatários provarem a existência de outros bens.
2. Sendo a herança aceita pura e simplesmente, a responsabilidade pelos encargos também não excede o valor dos bens herdados, mas incumbe, neste caso, ao herdeiro provar que na herança não existem valores suficientes para cumprimento dos encargos.”

Mas daí não decorre uma qualquer relação de dependência nos termos e para os efeitos do disposto no 206.º, n.º 2, do CPC. A Apelante não indica, e não se conhece, nenhuma norma que preveja que o processo de inventário judicial é dependência de uma ação executiva, na situação descrita, de aceitação a benefício de inventário, limitando-se aquela a invocar um preceito legal que determina, tão-só, como vimos, que o inventário é da competência dos tribunais judiciais (e não dos cartórios notariais) quando - por força de norma que assim o determine - constitua dependência de outro processo judicial.

Sempre se dirá ainda, face às objeções suscitadas pela Apelante (mormente na conclusão 11) que o processo de inventário judicial em apreço não se reconduz, nem nos parece que isso tenha sido afirmado na sentença recorrida, à previsão do n.º 2 do art. 122.º da LOSJ, nos termos do qual “(O)s juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos.” Logo, valem aqui, conforme acima referido, as regras atinentes à competência residual dos Juízos Locais – art. 130.º da LOSJ."


*3. [Comentário] a) O caso decidido pela RL apresenta-se da seguinte forma:

-- Foi instaurada uma acção executiva contra a herdeira do devedor;

-- Esta herdeira requereu a aceitação da herança a benefício de inventário no próprio tribunal de execução;

-- Este tribunal considerou-se materialmente incompetente para o processo de inventário;

-- Chamada, em recurso, a decidir a questão da incompetência material, a RL confirmou a decisão do tribunal de 1.ª instância.

b) Ressalvada a devida consideração, a orientação que prevaleceu no acórdão é discutível.

O principal ponto de discordância prende-se com a afirmação da RL de que "
a aplicação do art. 1083.º, n.º 1, al. b), do CPC supõe a existência de uma norma que estabeleça uma competência por conexão". 

É duvidoso que deva ser esta a interpretação do disposto naquele preceito. Ao contrário do entendimento da RL, a regra que se retira do art. 1083.º, n.º 1, al. b), CPC não é a de que a sua aplicação pressupõe uma conexão entre processos estabelecida por outra norma, mas antes a de que, quando o processo de inventário é dependente de outro processo, aquele processo pertence à competência do tribunal deste último processo.

O disposto no art. 1083.º, n.º 1, al. b), CPC não pressupõe que uma outra regra estabeleça a conexão entre o processo de inventário e um outro processo, mas antes opera com uma conexão entre o processo de inventário e um outro processo estabelecida pela circunstância de aquele processo ser dependente deste último (Teixeira de Sousa/Lopes do Rego/Abrantes Geraldes/Pinheiro Torres, O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil (2020), 24).

Quer dizer: o art. 1083.º, n.º 1, al. b), CPC aplica-se quando o processo de inventário é dependente de um outro processo, sem necessidade de que qualquer outra disposição estabeleça essa relação de dependência.

MTS