"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



12/10/2021

Jurisprudência 2021 (53)


Decisão interlocutória; recurso;
procedência; efeitos


1. O sumário de RL 11/3/2021 (8836/17.7T8LSB.A.L1-6é o seguinte:

I) O princípio do contraditório visa permitir a cada parte a pronúncia sobre as questões que as afectam e que relevam para a definição do direito; nomeadamente, visa permitir que cada parte apresente os seus meios de prova e tenha a possibilidade de contradizer os apresentados pela parte contrária.

II) A apresentação de documentos pelo Autor, que vieram a ser admitidos, constitui ocorrência posterior justificativa da apresentação de documentos pela Ré em exercício do contraditório, fora dos prazos estabelecidos pelo artigo 423.º do Código de Processo Civil.

III) Embora inexista norma expressa quanto à anulação da decisão final, a integração da lacuna deve fazer-se por recurso ao regime do artigo 195.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.

IV) Essa consequência é a única que se coaduna com o regime jurídico estabelecido quanto às apelações que sobem autonomamente, com efeito devolutivo e cujo resultado tem influência na decisão final.

V) A admissão, em apelação autónoma, de meio de prova rejeitado em primeira instância implica a anulação dos actos, trâmites e decisões que dependam dessa admissão ou com ela impliquem, não sendo adequada a resolução da questão pelo recurso ao caso julgado.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"2. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

[...] 2. Da admissibilidade da junção dos documentos indeferida pelo despacho recorrido

2.1. Não é controverso que os documentos foram apresentados em momento processual diverso do estabelecido no artigo 423.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, e que não se verificam as circunstâncias que preenchem a previsão do n.º 2 da mesma norma.

A questão colocada é a de saber se pode entender-se que o exercício do contraditório em relação a anterior junção de documento justifica a apresentação de novos documentos, por integrar o conceito de ocorrência posterior justificativa, nos termos do n.º 3 do artigo.

2.2. O princípio do contraditório, com a relevância de princípio estruturante do processo civil, visa permitir a cada parte a pronúncia sobre as questões que relevam para a definição do direito e que as afectam.

Na dimensão factual, visa permitir que cada parte apresente os seus meios de prova e tenha a possibilidade de contradizer os apresentados pela parte contrária.

No que se refere a prova documental, o contraditório pode revestir diversas formas de entre tanto formais como substanciais, tais como as relativas a validade, genuinidade ou autenticidade ou sentido da sua interpretação.

No caso, tendo em atenção a concreta resposta da Ré em 3 de Novembro, a mesma limita-se a dar interpretação diversa ao que consta dos documentos juntos pelo Autor em 22 de Outubro, apresentando os documentos que sustentam essa sua diversa interpretação, v.g. extractos bancários de onde retira que as quantias referidas pelo Autora tinham destinos/proveniências diversas das que ele alegara.

Nessa medida, entende-se que a apresentação não exorbita do âmbito legal da resposta que lhe é possibilitada pela apresentação de documentos pelo Autor cuja junção, aliás, foi deferida no despacho recorrido, por se considerar a apresentação justificada pelo exercício do contraditório.

Entendemos, por isso, que, reportando-se a factos instrumentais probatórios e a documentos apresentados pelo Autor, a apresentação de documentos pela Ré é admitida pelo princípio do contraditório, constituindo a apresentação de documentos pelo Autor ocorrência posterior para os efeitos do artigo 423.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

Em consequência, procede o recurso, com revogação da decisão que indeferiu a junção dos documentos apresentados pela Ré em 3 de Novembro de 2020 e sua substituição pela admissão dos mesmos documentos.

3. Das consequências da revogação da decisão

3.1. Concluindo-se pela admissão de meio de prova rejeitado, a consequência útil é a sua produção e consideração na decisão final, a qual, em consequência tem, necessariamente, de ser anulada. Na verdade, pese embora a inexistência de norma que expressamente estatua tal conclusão, é ela a única que se coaduna com o regime jurídico estabelecido quanto às apelações que sobem autonomamente, com efeito devolutivo e cujo resultado tem influência na decisão final.

Miguel Teixeira de Sousa [In Blog do IPPCpost de 21 de Janeiro de 2016 [...]], defende a integração da lacuna por recurso ao regime do artigo 195.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, nos termos do artigo 10.º, n.º 3, do Código Civil:

(…) há que aplicar, por analogia, o disposto no art. 195.º, n.º 2, CPC: a procedência do recurso implica a inutilização e a repetição de todos os actos que sejam afectados por aquela procedência; entre esses actos inclui-se a sentença final.

Neste sentido, vejam-se os acórdãos desta Relação de 17 de Maio de 201[7], proferido no processo 28048/15.3 T8LSB.L1-4 (Maria José Costa Pinto), e da Relação de Guimarães de 17 de Maio de 201[8], proferido no processo 710/15.8 T8VRL.G2 (Eugénia Cunha).

No caso, é óbvio, encontrar-se nesta situação a sentença final, a qual deve ser anulada.

3.2. Não assim quanto à produção de prova que teve lugar, nomeadamente em audiência final, uma vez que não é prejudicada pelo indeferimento da junção dos documentos, sem prejuízo da reinquirição de partes ou testemunhas quando seja requerida e deferida pretensão de confronto dos declarantes com o teor dos documentos agora admitidos.

3.3. Coloca-se ainda a questão do despacho que indeferiu a junção de documentos requerida pelo Autor em 13 de Novembro (ref.ª 37145627).

Certo é que poderia argumentar-se que a esse despacho poderia o Autor ter reagido mediante interposição de recurso principal ou, mesmo subordinado, e que, não o tendo feito, o despacho transitou em julgado.

Na verdade, ao Autor não estava vedado reagir, antecipando eventual procedência do presente recurso, pela via da interposição de recurso subordinado – artigo 663.º, n.º 1, do Código de Processo Civil -, via que não usou.

Não entendemos dever ser essa a perspectiva.

Continuando a seguir o ensinamento de Miguel Teixeira de Sousa, consideramos que os efeitos do provimento da apelação autónoma na tramitação do processo após a prolação do despacho nela impugnado, não autorizam aquela conclusão.

Diz o mencionado Autor [Loc. cit.] que enquanto estiver pendente um recurso sobre uma decisão interlocutória de cuja decisão depende a correcção da sentença final, esta sentença não pode transitar em julgado.

Em contrário, Abrantes Geraldes [Recursos no novo Código de Processo Civil, Almedina, 5.ª edição, 2018, p. 212, nota 330] pronuncia-se considerando a solução mais duvidosa do que a de mera consideração da prejudicialidade da apelação autónoma quanto à que vier a ser interposta da decisão final.

Entendemos que a utilidade da decisão da apelação autónoma determina a anulação, não apenas dos actos e trâmites que dela dependam ou com ela impliquem, como das decisões que se encontrem em tal situação. Se a decisão final seguramente se encontra nessa situação, não oferece dúvida que também outras devem ser consideradas e com o mesmo critério: a dependência e não a formação de caso julgado.

Assim, a influência do provimento deste recurso quanto ao despacho de indeferimento da junção de documentos apresentados pelo Autor, implica a apreciação da dependência entre o despacho que ora se revoga e o de indeferimento do requerimento probatório do Autor.

Para avaliar da dependência, voltemos ao despacho recorrido para estabelecer as suas razões de decidir. Consta do despacho recorrido:

(…) não se admitem os documentos juntos com o requerimento da ré, de 03.11.2020, e do autor, de 13.11.2020, por se entender que não há fundamento jurídico que sustente a sua apresentação (de documentos) nesta fase processual, ordenando-se a sua devolução aos apresentantes.

Em concreto, a questão da dependência depende de saber se o requerimento probatório do Autor foi indeferido por o ter sido o da Ré, que ora se revoga, ou se, ao invés, é independente a apreciação de um e outro.

Do teor do despacho de indeferimento resulta que ambos foram indeferidos pela mesma razão – extemporaneidade -, por o Tribunal recorrido ter entendido que ambos foram apresentados em momento processual em que não era já admissível a apresentação de documentos. A identidade de fundamento do indeferimento não estabelece qualquer relação de dependência entre as decisões, antes, uma e outra, são apreciadas em si mesmas e não em relação, embora no mesmo despacho.

O que aponta no sentido de que não há lugar à anulação desse indeferimento.

Em contrário poderia argumentar-se que a apresentação desses documentos visa exercer o contraditório quanto aos documentos apresentados pela Ré que agora se admitem. Assim sendo, poderia considerar-se estabelecida a relação de dependência entre os requerimentos de apresentação de documentos e, por via dela, entre os respectivos indeferimentos.

Não é assim. Para tal, importaria que tal apresentação visasse de algum modo a validade, valor probatório ou sentido de interpretação dos documentos ora admitidos. Apenas se assim fosse, poderia considerar-se que a apresentação de documentos do Autor dependia da admissão dos documentos apresentados pela Ré.

Não é isso o que resulta do requerimento probatório do Autor, pelo contrário, indica o mesmo que pretende com os documentos provar factos alegados na petição inicial.

Também por esta via está, em consequência, excluída a dependência."

[MTS]