"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



28/10/2021

Jurisprudência 2021 (65)


Legitimidade para recorrer;
aferição


1. O sumário de RL 25/3/2021 (2490/15.8T8CSC.L1-2) é o seguinte:

I - As requeridas diligências de identificação e busca de «potencial» testemunha não identificada em concreto extravasam claramente o âmbito do artigo 526.º do CPC e radicam apenas na vontade da parte e não em dados objetivos que permitam ao Tribunal um juízo de prognose sobre a imprescindibilidade de uma testemunha.

II - A atividade de um ginásio não consiste de per si numa atividade perigosa, não encontrando qualquer similitude com as hipóteses que têm vindo a ser densificadas pela doutrina e pela jurisprudência a propósito da presunção legal de culpa ínsita no artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil, por não envolver uma probabilidade maior de causar danos do que a verificada nas atividades desportivas em geral.

III – Na interpretação do artigo 570.º, n.º 2, do Código Civil, há que descartar um sentido que justifique um tratamento melhor dado pelo legislador à culpa presumida do que à culpa efetiva.

IV - A localização sistemática deste preceito não prescinde de uma concausalidade efetiva.

V - O direito de recorrer não assiste a quem simplesmente se imagine prejudicada, sem que tal resulte da decisão no seu contexto jurídico imediatamente prejudicial.

VI - A decisão de absolver a Ré Seguradora do pedido não deixa de implicar o vencimento da Ré proprietária do ginásio, no sentido em que se verifica quanto a esta a imediata afetação de direitos ou interesses juridicamente tutelados, atendendo ao contrato de seguro no qual figura como tomadora, concluindo-se que lhe assiste legitimidade para recorrer.

VII - O artigo 5.º, n.º 2, alínea a), do Decreto-Lei n.º 10/2009, de 12.1, que estabelece o regime jurídico do seguro desportivo obrigatório, não abarca, de forma implícita, danos não patrimoniais.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

Na situação sub judice, a Autora demandou a lesante e a sua seguradora (diretamente), em litisconsórcio voluntário, pedindo a condenação solidária de ambas.

A Ré Seguradora foi absolvida do pedido e a Ré Tomadora do Seguro recorreu também da sentença nessa parte.

Com a absolvição do pedido da Ré Seguradora, a 1.ª Ré não poderá exigir-lhe o valor em que vier a ser condenada por força do contrato de seguro obrigatório celebrado entre ambas.
O artigo 631.º do CPC, sob a epígrafe «Quem pode recorrer», define quem tem legitimidade para recorrer, resultando da sua leitura que essa legitimidade é atribuída segundo os seguintes critérios:

– À parte principal vencida (artigo 631.º, n.º 1);
– À parte acessória direta e efetivamente prejudicada pela decisão (artigo 631.º, n.º 2);
– A terceiro direta e efetivamente prejudicado pela decisão (artigo 631.º, n.º 2);
– A terceiro prejudicado pela decisão proferida num processo simulado (art. 631.º, n.º 3).

Nos termos do artigo 631.º, n.º 1, do CPC, tem legitimidade para recorrer a parte (parte principal) vencida, isto é, a parte afetada objetivamente pela decisão.

Parte afetada é a que não obteve a decisão mais favorável possível aos seus interesses, considerando o que pediu e não conseguiu obter na decisão impugnada.

Seguindo um critério formal, atende-se ao que a parte pediu e compara-se com aquilo que ela obteve em juízo; se o que tiver sido conseguido representar, em termos quantitativos ou qualitativos, um minus em relação ao que pediu, a parte possui legitimidade para recorrer. Isto pode suceder pura e simplesmente mediante uma sentença desfavorável, mas também perante uma sentença favorável, se não for a mais favorável possível em face das circunstâncias.

Em certos casos, a legitimidade para recorrer é independente da atitude assumida pela parte, pelo que, nessas hipóteses, a qualidade de parte vencida não tem nada que ver com a circunstância de ela se ter batido pela solução contrária.

Considerando que o processo civil português se orienta pelo modelo de reponderação, o que então pode relevar para aferir a legitimidade para recorrer é apenas o facto de a decisão ser desfavorável à parte.

Este critério material é aplicável quando é impossível comparar a decisão proferida com um pedido de condenação ou de absolvição formulado pela parte.

Na impossibilidade de utilizar uma comparação entre o pedido e a decisão, utiliza-se então uma comparação entre a situação da parte antes e a situação dessa parte depois da decisão, isto é, considera-se apenas a absolvição ou a condenação da parte.

O critério material é aplicável, a título de exemplo, nas hipóteses de o réu revel recorrer ou quando o tribunal condenar a parte em multa ou em custas.

Se conjugarmos o disposto no n.º 1 com os n.ºs 2 e 3 do artigo 631º do CPC, podemos concluir que o legislador procurou afastar um conceito de prejuízo eventual incerto ou longínquo na definição do direito de recorrer.

O direito de recorrer não assiste pois a quem simplesmente se imagine prejudicada, sem que tal resulte da decisão no seu contexto jurídico imediatamente prejudicial.

A propósito da legitimidade de terceiros para recorrer, nos termos do n.º 2 do artigo 631.º do CPC, escreveu Abrantes Geraldes que:

«[A] exigência de um prejuízo directo tem subjacente a ideia de que a decisão visa directamente o recorrente, afastando os casos em que o prejuízo, ainda que efectivo, é indirecto, reflexo ou mediato, ou atinge unicamente a pessoa representada.
Sem embargo de outras situações, em tal categoria podem englobar-se os depositários, adquirentes e preferentes na acção executiva, assim como o agente de execução. Seguramente englobam-se ainda as testemunhas e os peritos e todos quantos, apesar de não figurarem no processo como partes, nem nele terem tido qualquer intervenção, sejam directamente e efectivamente atingidos na sua esfera pessoal ou patrimonial pelos efeitos de qualquer decisão judicial.» (in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra: Almedina, 4.ª edição, p. 82).

Revertendo ao caso em apreço, constata-se que a decisão de absolver a Ré Seguradora do pedido não deixa de implicar o vencimento da 1.ª Ré, no sentido em que se verifica quanto a esta a imediata afetação de direitos ou interesses juridicamente tutelados, atendendo ao contrato de seguro em que figura como tomadora.

Já assim não seria de concluir se o contrato de seguro tivesse sido celebrado entre a Autora e a 2.ª Ré, sem qualquer intervenção da 1.ª Ré.

Nesse caso, estaríamos perante um caso de solidariedade imprópria. Dir-se-ia que o interesse da 1.ª Ré em que a 2.ª Ré fosse condenada seria meramente subjetivo, indireto ou reflexo, o que abalaria a sua legitimidade para recorrer.

No presente caso, as partes foram notificadas para se pronunciarem sobre o objeto do recurso neste particular e a Ré Seguradora nada disse quanto à possibilidade de se conhecer do recurso contra si interposto.

Por via de um critério material e objetivo, é de concluir que a 1.ª Ré pode considerar-se parte vencida por não ter obtido a decisão mais favorável aos seus interesses objetivados, independentemente da procedência ou improcedência das razões esgrimidas sobre a matéria litigiosa.

Conclui-se, assim, que a 1.ª Ré tem legitimidade para interpor recurso nesta parte, nada obstando à sua apreciação."

[MTS]