"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



15/10/2021

Jurisprudência 2021 (56)


Nulidade processual;
nulidade da sentença*


1. O sumário de RP 8/3/2021 (897/10.6TBMCN-A.P1) é o seguinte:

I – Nos termos do disposto no artigo 201.º, n.º 1, do anterior Código de Processo Civil (que o artigo 195.º do Código actual reproduz, praticamente, na íntegra), não sendo caso de nulidade legalmente tipificada (nos artigos 193.º, 194.º, 198.º, n.º 2, segunda parte, 199.º e 200.º ou em disposição avulsa que comine tal vício à infracção que estiver em causa), a prática de acto que a lei não admita, bem como a omissão de acto ou formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.

II - Não deve considerar-se que influiu no exame ou na decisão da causa a omissão da notificação para apresentar rol de testemunhas ou outras provas (nos termos previstos no artigo 512.º do revogado CPC) se a parte, devidamente assistida por advogado, teve múltiplas oportunidades de apresentar requerimento de prova, mas não o fez.

III - A considerar-se que essa omissão produz nulidade, estaremos perante uma nulidade secundária ou atípica que só poderá ser conhecida pelo tribunal mediante reclamação do(s) interessado(s) na observância da formalidade (artigo 202.º do anterior CPC) para o órgão que omitiu o acto e não mediante recurso.

IV - A causa de nulidade prevista na primeira parte da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC apresenta-se como um vício lógico na construção da sentença e verifica-se sempre que a fundamentação de facto e de direito apontam num certo sentido, mas, inesperadamente, surge uma conclusão, um dispositivo que não condiz com as premissas (ocorrerá, então, uma violação do chamado silogismo judiciário).

V – O alegado erro de julgamento, quer em matéria de facto, quer em matéria de direito constitui um error in judicando, que é fundamento de recurso e não cabe na previsão normativa das nulidades da sentença.

VI - Tendo a exequente a seu favor a literalidade, autonomia e abstracção do título cambiário, uma vez este preenchido, não tem que alegar e provar que efectuou o preenchimento com respeito absoluto pela autorização dada, sendo ónus do obrigado cambiário demandado a alegação e prova de que inexistia acordo de preenchimento ou, existindo, foi o título emitido em branco preenchido em desrespeito pelo pacto de preenchimento.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Alegam os recorrentes que foi cometida nulidade processual por preterição de formalidade essencial porquanto são aplicáveis a este processo as normas do anterior Código de Processo Civil e, nos termos do disposto no seu artigo 512.º, o tribunal devia ter-lhe ordenado a apresentação de requerimento de prova, o que não fez (conclusão 2.ª).

O artigo 6.º da Lei n.º 41/2013, de 26/6 (que, como é sabido, aprovou o actual Código de Processo Civil) contém normas sobre a aplicação da lei no tempo, especificamente dirigidas à acção executiva, e estabelece a regra da aplicação imediata do novo CPC a todas as execuções pendentes em 01 de Setembro de 2013.

Não assim quanto aos procedimentos e incidentes de natureza declarativa (como é a oposição à execução por embargos de executado), pois o n.º 4 daquele artigo 6.º determina que o novo CPC é aplicável, apenas, aos deduzidos após 01 de Setembro de 2013.

Apesar de liminarmente recebidos, apenas, em 09.02.2018, os presentes embargos foram deduzidos em 17.09.2010.

Por isso, têm razão os recorrentes quando afirmam que lhes é aplicável, ainda, o anterior Código de Processo Civil [É a esse Compêndio Normativo revogado pela Lei n.º 41/2013, de 26/6, que, de ora em diante, nos reportaremos.] que, no artigo 512.º, sob a epígrafe “Indicação das provas”, dispunha no seu n.º 1:

«1 Quando o processo houver de prosseguir e se não tiver realizado a audiência preliminar, a secretaria notifica as partes do despacho saneador e para, em 15 dias, apresentarem o rol de testemunhas, requererem outras provas ou alterarem os requerimentos probatórios que hajam feito nos articulados e requererem a gravação da audiência final ou a intervenção do colectivo.»

Os embargantes foram notificados (por expediente electrónico elaborado em 20.12.2018) do despacho saneador (datado de 14.12.2018), mas não para apresentarem o rol de testemunhas ou alterarem os requerimentos probatórios que tivessem feito nos articulados, pelo que foi omitida uma formalidade que a lei prescreve.

Vejamos quais as consequências dessa omissão.

Nos termos do disposto no artigo 201.º, n.º 1, do Código de Processo Civil [À semelhança do que dispõe o artigo 195.º do actual CPC, que reproduz, praticamente na íntegra, o artigo 201.º do anterior CPC], não sendo caso de nulidade legalmente tipificada (nos artigos 193.º, 194.º, 198.º, n.º 2, segunda parte, 199.º e 200.º ou em disposição avulsa que comine tal vício à infracção que estiver em causa), a prática de acto que a lei não admita, bem como a omissão de acto ou formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.

O contraditório (ou contraditoriedade) é, hoje, entendido como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontram em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão [Cfr. José Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Conceitos e Princípios Gerais à luz do Código Revisto, pág. 96].

Ora, a referida omissão não obstou a que os embargantes indicassem as suas provas. Estavam assistidos por advogado e por isso sabiam que era altura para o fazer. Aliás, subsequentemente ao despacho saneador, na mesma data, foi proferido despacho a admitir a prova documental, bem como o rol de testemunhas apresentado pela embargada, e a ordenar a realização de perícia para apurar se a assinatura aposta numa das livranças foi feita pelo punho da embargante B….

Se era intenção dos embargantes apresentar rol de testemunhas ou outras provas, bem podiam tê-lo feito logo nessa altura.

Por isso, cremos não poder afirmar-se que aquela omissão influiu no exame ou na decisão da causa, pois não foi preterido o direito dos embargantes a um processo justo e equitativo.

Mas, que assim não seja, a considerar-se que a omissão produz nulidade, estaremos perante uma nulidade secundária ou atípica que só poderá ser conhecida pelo tribunal mediante reclamação do(s) interessado(s) na observância da formalidade (artigo 202.º do CPC) para o órgão que omitiu o acto e não mediante recurso[Cfr, entre outros, o acórdão de 11.04.2019 (processo n.º 2749/17.0 T8MAI-A.P1) desta Relação e desta Secção, de que foi Relatora a Sra. Desembargadora Dra. Ana Paula Amorim, que aqui intervém como Adjunta.].

Para tanto, para a dedução de reclamação, dispunham os embargantes do prazo de dez dias (artigos 205.º do CPC), sendo o termo inicial de tal prazo o dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum acto praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele.

Ora, os embargantes tiveram múltiplas oportunidades para deduzir a reclamação, mas nem quando foram notificados da designação da data para a audiência de discussão e julgamento (o momento por excelência da produção de prova) o fizeram.

Só em sede de recurso é que se decidiram pela arguição, mas, estando a irregularidade já sanada, não pode ser aqui atendida."


*3. [Comentário] "Compêndios normativos" à parte, o decidido no acórdão da RP não levanta nenhuma objecção. O principal interesse do acórdão reside em esclarecer algumas confusões que persistem em manter-se (ou em ser alegadas) na prática judiciária.

MTS