"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



07/10/2021

Jurisprudência 2021 (50)


Irregularidade formal;
convite ao aperfeiçoamento*


I. O sumário de RE 15/3/2021 (decisão singular) (12/20.8T8LGA-C.E1) é o seguinte:

1 – Na actual configuração, a lei processual é pautada pelo objectivo de evitar, tanto quanto possível, que aspectos meramente técnicos ou formais possam impedir ou condicionar a apreciação do mérito da causa e a justa composição do litígio.

2 – Em caso de deficiências formais ou substanciais do articulado de contestação, o Tribunal «a quo» deve convidar a parte a aperfeiçoar a petição inicial, mas está vedada a possibilidade de desentranhamento da peça ou de simples desconsideração da defesa apresentada.

3 – Nos processos judiciais, o fim sobrepõe-se à forma, pelo que o acto, ainda que praticado sem a observância da forma prescrita ou sob forma diversa da consagrada por lei, é válido desde que atinja o seu escopo.


II. Na fundamentação da decisão afirma-se o seguinte:

"Aquilo que importa é apurar se a [...] peça processual não obedece às exigências contidas nos artigos 147.º[...] e 572.º[...] do Código de Processo Civil.

Lida a peça inicialmente apresentada, é de reconhecer que a mesma é densa, não sintetiza os pontos concretos em que se funda a impugnação da lista de créditos reconhecidos pelo Administrador Judicial, sendo que a própria recorrente reconhece que alguns dos capítulos e parágrafos são relativamente extensos.

Estamos perante um articulado manifestamente excessivo e que não facilita a tarefa do julgador. A peça processual endossa para o Tribunal a tarefa de peneirar toda a argumentação apresentada e desvincula-se claramente dos princípios da necessidade e da adequação que também devem presidir à produção de peças processuais pelos sujeitos processuais. Todavia, ainda assim, não obstante a prolixidade, a alegação acaba por responder aos pontos concretos suscitados no despacho judicial prévio.

E aquilo que se pergunta é se, em caso de incumprimento da aludida obrigação, existe uma sanção processual que conduza à não admissão do articulado ou ao respectivo desentranhamento?

A resposta é negativa, tal como já o afirmamos em acórdão recente sobre o mesmo tema[Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25/02/2021, proferido na sequência de decisão singular datada de 13/01/2021, publicitada em www.dgsi.pt, relativamente a despacho proveniente do mesmo Juízo de Comércio de Lagoa (J2), em que a Primeira Instância admitiu um articulado de contestação não subscrito por advogado que não reunia os requisitos formais consagrados na lei]. E, no rigor dos princípios, em caso de junção de um articulado com deficiências formais ou expositivas, o Juiz deve convidar a parte infractora a suprir as irregularidades dos articulados ou a remediar as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.

Efectivamente, ao abrigo dos poderes de gestão processual[...] [...], caso entenda que o alegado é formalmente inidóneo, o Tribunal deve proceder ao convite ao aperfeiçoamento do articulado em questão.

No enquadramento técnico correcto, «o aperfeiçoamento é, pois, o remédio para casos em que os factos alegados por autor ou réu (os que integram a causa de pedir e os que fundamentam as excepções) são insuficientes ou não se apresentam suficientemente concretizados. No primeiro caso, está em causa a falta de elementos de facto necessários à completude da causa de pedir ou duma excepção, por não terem sido alegados todos os que permitem a subsunção na previsão da norma jurídica expressa ou implicitamente invocada. No segundo caso, estão em causa afirmações feitas, relativamente a esses elementos de facto, de modo conclusivo (abstracto ou jurídico) ou equívoco»[José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2017, pág. 634]. [...]

No novo regime processual civil foi reforçada a ideia que sustentava que a actividade processual desenvolvida pelas partes deve ser aproveitada até ao limite, de forma que todos os esforços deverão ser levados a cabo, quer pelo Juiz, ainda que ex officio, quer pelas partes, por sua iniciativa ou a convite daquele, sempre que seja possível corrigir as irregularidades ou suprir as omissões verificadas, de modo a viabilizar uma decisão de meritis[Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07/06/2010, publicado em www.dgsi.pt, que sustenta que o autor deve ser convidado a corrigir a petição inicial, mediante a formulação dos pedidos em regime de subsidiariedade].

E, aqui chegados, para todos os efeitos, a peça apresentada configura uma oposição à lista de créditos apresentada pelo Administrador Judicial e os esclarecimentos posteriores são essenciais para a justa resolução da controvérsia.

Em síntese, na actual configuração, a lei processual é pautada pelo objectivo de evitar, tanto quanto possível, que aspectos meramente técnicos ou formais possam impedir ou condicionar a apreciação do mérito da causa e a justa composição do litígio.

E, assim, a finalizar, caso se entendesse que a impugnação apresentada – e o esclarecimento adicional – não reunia os requisitos mínimos exigidos por lei, o Tribunal «a quo» estava vinculado a ordenar o aperfeiçoamento da peça processual e não a determinar o respectivo e imediato desentranhamento.

Cumpre, assim, revogar a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que contenha um prévio convite ao respectivo aperfeiçoamento formal e à sintetização do requerimento apresentado."

III. [Comentário] Não se discorda (em nada) da decisão, mas importa referir que mais correcto teria sido fundamentá-la, não no dever de gestão processual (art. 6.º CPC), mas antes no dever de cooperação do tribunal (art. 7.º CPC).

MTS