"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



19/10/2021

Jurisprudência 2021 (58)


Venda executiva;
momento; eficácia


1. O sumário de RE 11/3/2021 (514/04.3TBORQ-C.E1) é o seguinte:

I - A venda em processo de execução produz os mesmos efeitos da venda realizada através de um negócio jurídico, ou seja, tem como efeitos essenciais as obrigações de entregar a coisa e de pagar o preço, e a transmissão da propriedade da coisa - artigo 879º als. a) a c) do Código Civil.

II - Mas, ao contrário do que sucede na venda negocial, em que a transferência da propriedade se dá por mero efeito do contrato, diferentemente sucede na venda executiva, porquanto nela os bens só são adjudicados ao proponente após se mostrar integralmente pago o preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão, e apenas depois é que é emitido, pelo agente de execução, o título de transmissão, ou seja, a transferência de propriedade apenas ocorre com a emissão do título de transmissão.

III – Na venda por leilão eletrónico, a adjudicação, cuja decisão é da competência do agente de execução, deve ser realizada nos termos previstos para a venda por propostas em carta fechada, por força da parte final do artigo 8º, nº 10, do Despacho n.º 12624/2015 da Ministra da Justiça. Esse regime é o que se acha no artigo 827º e inclui a emissão pelo agente de execução de título de transmissão a favor do proponente adjudicatário.

IV – Tendo autores e réus junto aos autos transação, relativamente ao imóvel objeto da ação de divisão de coisa comum, em data anterior à emissão do título de transmissão, não podia o Tribunal recusar apreciar a validade dessa transação, com o argumento de que tendo aquele imóvel sido licitado em leilão eletrónico, cuja proposta foi aceite, só a falta do pagamento do preço é suscetível de determinar que a venda fique sem efeito. (sumário do relator)


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"No âmbito desta ação de divisão de coisa comum, o bem imóvel objeto da mesma foi levado a leilão, recaindo sobre aquele uma proposta.

Contudo, em momento anterior à emissão do título de transmissão pela Sr.ª Agente de Execução – o qual à data da interposição do recurso ainda não tinha sido emitido -, autores e réus chegaram a acordo quanto à adjudicação do imóvel aos primeiros, tendo, na sequência, juntado aos autos a respetiva transação, a qual o Sr. Juiz a quo entendeu não homologar por considerar que «o objecto da transacção é a transmissão de direitos sobre a coisa comum (prédio) que se encontrava em venda (por vontade das partes) e que já havia sido licitado em leilão electrónico, cuja proposta foi aceite».

Contra esse entendimento insurgem-se os autores/recorrentes, sustentando que a venda só estaria consumada com a emissão do título de transmissão, o que não havia ainda ocorrido à data da transação e do despacho recorrido, nem tão pouco aquando da interposição do recurso.

Vejamos.

O artigo 549º do CPC sob a epígrafe “Disposições reguladoras do processo especial”, dispõe no seu nº 2 que quando haja lugar a venda de bens, esta é feita pelas formas estabelecidas para o processo de execução.

Portanto, a solução da questão suscitada radica, como vimos supra, em saber em que momento se deve considerar efetuada a venda judicial em processo de execução.

No caso em apreço está-se perante a venda executiva de um imóvel mediante venda em leilão eletrónico, a qual se acha regulada no artigo 834º do CPC, em que a proposta de maior valor foi aceite e considerada válida.

A propósito de um caso em que a questão decidenda que se colocava, era a de saber se quando a executada solicitou à agente de execução o IBAN para proceder ao pagamento da quantia exequenda e juros estava já consumada ou não a venda executiva, escreveu-se no Acórdão desta Relação de 06.12.2018 [Proc. 1866/14.2T8SLV-B.E1, in www.dgsi (este Acórdão citado também pelos recorrentes nas alegações, foi relatado pelo ora Relator e subscrito pelo aqui 1º Adjunto)].

«A venda em processo de execução produz os mesmos efeitos da venda realizada através de um negócio jurídico, ou seja, tem como efeitos essenciais as obrigações de entregar a coisa e de pagar o preço, e a transmissão da propriedade da coisa – art.º 879º als. a) a c) do CC.

Mas, além dos efeitos obrigacionais e do efeito translativo comuns a qualquer venda, a venda executiva produz ainda outros efeitos tais como o extintivo, registral, represtinatório e efeito sub-rogatório [Cfr., neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, p. 383].

No que respeita ao efeito translativo, a venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida (art.º 824º, nº 1, do Código Civil).

Na venda negocial (ou privada) a transferência dá-se por mero efeito do contrato, ou seja, a transferência não fica dependente da entrega da coisa e do pagamento do preço (art.º 886º do Código Civil, que dispõe: “Transmitida a propriedade da coisa, ou o direito sobre ela, e feita a sua entrega, o vendedor não pode, salvo convenção em contrário, resolver o contrato por falta de pagamento do preço”).

Porém, a situação é diferente na venda executiva, porquanto nela, de acordo com o art.º 827º, nº 1, do CPC – norma referente à venda por propostas em carta fechada - os bens só são adjudicados ao proponente após se mostrar integralmente pago o preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão, e apenas depois é que é emitido, pelo agente de execução, o título de transmissão, agente de execução que, nos termos do nº 2 do mesmo preceito [Norma aplicável, com as necessárias adaptações, às restantes modalidades de venda, ex vi do art.º 811º, nº 2, do CPC], comunica seguidamente a venda ao serviço de registo competente, juntando o respetivo título, e este procede ao registo do facto e, oficiosamente, ao cancelamento das inscrições relativas aos direitos que tenham caducado, nos termos do nº 2 do art.º 824º do CC.

A venda em leilão eletrónico, como é a situação dos autos, foi eleita pelo legislador como a preferencial no caso de venda de bens imóveis e móveis penhorados, “nos termos a definir por portaria do membro do Governos responsável pela área da justiça” (art.º 837º, nº 1, do CPC).

Essa Portaria é a 282/2013 [Esta Portaria foi alterada pela Portaria 349/2015, de 13.10, a qual manteve inalterada a redação de qualquer um dos preceitos legais que estatuem sobre a venda em leilão eletrónico], de 29.08, que tem como objeto regulamentar, entre outros aspetos das ações executivas cíveis, os termos da venda em leilão eletrónico de bens penhorados – al. j), do nº 1, do art.º 1º -, o que ocorre nos arts. 20º a 23º, prevendo o primeiro destes normativos que o leilão eletrónico se processa em plataforma eletrónica acessível na Internet, nos termos definidos na presente portaria e nas regras do sistema que venham a ser aprovadas pela entidade gestora da plataforma e homologadas pelo membro do Governo responsável pela área da justiça.

O Despacho nº 12.624/2015, de 09.11, da Ministra da Justiça, veio precisamente definir como entidade gestora da plataforma de leilão eletrónico a Câmara dos Solicitadores e homologar as regras do sistema aprovadas por essa entidade.

Quanto ao regime por que se rege a venda em leilão eletrónico, decorre dos nºs 2 e 3 do art. 837º do CPC que:

- a publicitação segue as regras gerais do art.º 817, nºs 2 a 4;

- no mais aplicam-se as regras privativas dos artigos 20º a 26ª da Portaria 282/2013, sem prejuízo do Despacho 12.624/2015;

- e, em tudo o que não estiver especialmente regulado nelas, as regras da venda em estabelecimento de leilão, em rigor, as constantes nos artigos 834º nºs 3 4 e 835º.

Dir-se-ia pois, que a contrario não se remete para as regras comuns, salvas as do artigo 817º, nºs 2 a 4, do CPC.

Mas não é assim, pois como explica Rui Pinto [A Ação Executiva, AAFDL Editora, Lisboa-2018, p. 871 e seguintes], «a venda em leilão eletrónico é uma das “restantes modalidades de venda” a que se refere o nº 2 do artigo 811º, pelo que, no que não estiver regulado nos níveis normativos referidos nos nºs 2 e 3 do artigo 837º, são de aplicar residualmente, tanto as normas do regime da venda mediante propostas em carta fechada a que o dito artigo 811º nº 2 atribui uma aplicabilidade geral – os artigos 818º, 819º, 823º e 828º -, como, ainda, as disposições gerais dos artigos 811º a 815º e 842º a 845º que iniciam a Subsecção V em que se acha o artigo 837º.»

E, mais adiante, no que ao caso importa:

«A adjudicação, cuja decisão é da competência do agente de execução, deve ser realizada nos termos previstos para a venda por propostas em carta fechada, por força da parte final do artigo 8º nº 10 do Despacho n.º 12624/2015 da Ministra da Justiça. Esse regime é o que se acha no artigo 827º e inclui a emissão pelo agente de execução de título de transmissão a favor do proponente adjudicatário.

Deve, a este propósito, ser notado que o mesmo nº 10 estabelece um prazo de dez dias, contados da notificação da conclusão do leilão, para o agente de execução titular do processo dar cumprimento a toda a tramitação necessária para que a proposta se considere aceite e o bem seja adjudicado ao proponente».

Face ao disposto nos citados preceitos legais, conclui-se que na venda executiva por leilão eletrónico a transmissão da propriedade do bem vendido só se opera com o pagamento integral do preço e a satisfação das obrigações fiscais inerentes à transmissão e a emissão do respetivo título de transmissão - o instrumento de venda.»

No caso dos autos, o que se verifica é que, na data em que autores e réus juntaram aos autos a transação (16.09.2020), a agente de execução ainda não havia emitido o título de transmissão, o qual, aliás, nem sequer havia sido emitido em 01.10.2020, quando os autores interpuseram o recurso.

Como se escreveu no mesmo Acórdão:

«É que, segundo o citado art.º 827º, nº 1, do CPC, a propriedade da coisa ou do direito não se transfere por mero efeito da venda, como sucede no direito substantivo, dada a sua natureza real e não obrigacional [arts. 408º, nº 1, 874º, e 879º, al. a), e 578º nº 1 todos do CC], mas só ocorre com a emissão do título de transmissão por parte do agente de execução no caso de venda por propostas em carta fechada/venda em leilão eletrónico (no caso da venda por negociação particular com a outorga do instrumento da venda), para o que se torna necessário que se verifique mostrar-se paga a totalidade do preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão [Cfr. Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 8ª ed., p. 371, referindo-se à venda por propostas em carta fechada, cujo regime, como vimos supra, é em tudo idêntico à venda em leilão eletrónico].

No mesmo sentido se pronunciaram Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes [Código de Processo Civil Anotado, Volume 3º, nºs 3 das anotações aos arts. 894 º e 898º, citados por Lebre de Freitas, A Acção Executiva Depois da reforma da reforma, 5ª edição, Coimbra Editora, 2009, p. 329], que sustentam que só com a adjudicação termina o processo da venda, não sendo o depósito uma mera condicio juris, que se limite (extrinsecamente) a condicionar a eficácia da venda, mas um elemento constitutivo da venda executiva por proposta em carta fechada; dar a venda sem efeito mais não é do que verificar que ela não se chegou a aperfeiçoar, extinguindo os efeitos do contrato preliminar (constituído por proposta e aceitação) que a antecede.»

Ora, tendo os autores junto ao processo a transação em data anterior à emissão do título de transmissão – que não se sabe se já foi emitido –, não podia o Sr. Juiz a quo deixar de apreciar a validade da referida transação e, concluindo pela sua validade, proceder à respetiva homologação com as legais consequências, nomeadamente dando sem efeito o ato da venda."


[MTS]