"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



26/10/2021

Jurisprudência 2021 (63)


Acção de reivindicação;
competência material


1. O sumário de RG 25/3/2021 (3802/20.8T8GMR.G1) é o seguinte:

I- O Decreto-Lei n.º 214-G/2015 de 2/10 veio alargar o âmbito da competência da jurisdição dos tribunais administrativos à apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas à condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, em que a Administração Pública atue sem título que as legitime, e que se enquadram no artº. 4º, n.º 1, al. i) do ETAF e artº. 2º, nº. 2, al. i) do CPTA, na redação dada pelo citado DL 214-G/2015.

II- Com a reforma de 2015 os tribunais administrativos passaram a ter jurisdição sobre os litígios decorrentes de situações de via de facto, onde são enquadráveis as ações de reivindicação que têm por objeto situações em que entidades como a Ré (Junta de Freguesia) ocupam imóveis de propriedade privada sem para o efeito estarem munidas de título que as habilite ou legitime, nomeadamente sem proceder à respetiva expropriação.

III- Os tribunais administrativos são materialmente competentes para decidir a ação de reivindicação, sendo de configurar o litígio como emergente de uma relação jurídica administrativa, se o autor alega que o terreno de que é proprietário foi ilegal e ilicitamente tomado, em parte, por uma pessoa coletiva de direito público - no caso em apreço uma Junta de Freguesia, através dos atos materiais consubstanciados no abate dos plátanos antigos existentes na parcela de terreno em causa e à abertura de rasgos no seu solo, antecedida da remoção de todos os paralelepípedos de que era composto o seu revestimento – de que terá resultado, simultaneamente, o impedimento de acesso ao mesmo, em termos que deva o terreno ser reposto na situação anterior e restituído ao seu legítimo proprietário.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:


"Dispõe o artº. 211º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP) que “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”, cabendo, por usa vez, aos tribunais administrativos e fiscais, segundo o artº. 212º n.º 3 da CRP, “o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

Decorre também do artº. 64º do NCPC que os tribunais judiciais são competentes, em razão da matéria, para conhecer das causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, e em sentido idêntico dispõe o artº. 40º, nº. 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei nº. 62/2013 de 26/01) que “os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.

A competência material dos tribunais comuns é assim fixada em termos residuais.

Porque no caso “sub judice”, o confronto é delineado entre a competência dos tribunais comuns e a dos tribunais administrativos, importará conhecer qual é o âmbito da competência destes últimos.

Em conformidade com o comando constitucional estabelecido no artº. 212º, n.º 3, e no desenvolvimento do mesmo, o artº. 1º, nº. 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002 de 19/2, na versão republicada em Anexo ao DL 214-G/2015 de 2/10 (doravante ETAF), preceitua que “os tribunais de jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

O âmbito da jurisdição administrativa e fiscal encontra-se actualmente definido no artº. 4º do ETAF, o qual sofreu, desde o diploma que o aprovou (a Lei nº 13/2002 de 19/2, na versão final revista que viria a entrar em vigor com o início da vigência da reforma de 2002-2004, dada pelas Leis nºs 4-A/2003 de 19/2 e 107-D/2003 de 31/12), as modificações introduzidas pela Lei nº. 59/2008 de 11/9, pelo Decreto-Lei nº. 214-G/2015 de 2/10 (este no uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 100/2015 de 19/8) e mais recentemente pela Lei n.º 114/2019 de 12/9.

Tendo a presente acção sido instaurada em 14/08/2020, importa considerar o artº. 4º do ETAF, na redacção dada pelo DL 214-G/2015 de 2/10, em vigor à data, na medida em que a competência se fixa no momento da propositura da acção, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente (cfr. artº. 5º do ETAF e artº. 38º, nº. 1 da LOSJ).

Importa, ainda, ter presente, na esteira das considerações iniciais da decisão recorrida que cita, e bem, a doutrina de José Alberto dos Reis (in Comentário ao Código de Processo Civil, Volume I, página 111) e do Prof. Manuel de Andrade (in Noções Elementares de Processo Civil, 1979, Coimbra Editora, pág. 91) e os acórdãos da RG de 18/01/2018 (proc. nº. 2367/17.2T8VCT) e da RP de 7/04/2016 (proc. nº. 340/14.1T8PVZ-A), ambos disponíveis em www.dgsi.pt, que é consensualmente entendido e aceite na doutrina e na jurisprudência que a competência em razão da matéria é aferida em função dos termos em que o autor configura a acção na petição inicial, ou seja, com base nos pedidos formulados e nos fundamentos que para tanto são invocados e que consubstanciam a causa de pedir.

A este propósito também Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha afirmam (in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3ª ed., Almedina, pág. 125) que “… a competência do tribunal deve ser aferida pelos termos da relação jurídico-processual, tal como é apresentada em juízo pelo autor, independentemente da idoneidade do meio processual utilizado.”

No caso em apreço, a aqui recorrente instaurou a presente acção de reivindicação contra a Junta de Freguesia de ..., ..., no tribunal comum, com fundamento de que é legítima proprietária de uma parcela de terreno que está a ser ocupada pela Ré (com obras que estará a levar a cabo) sem o consentimento da A., pretendendo que a Ré seja condenada a reconhecer o direito de propriedade da A. sobre a dita parcela de terreno e a proceder à sua entrega à Autora.

A decisão recorrida entendeu serem os tribunais administrativos os competentes para conhecer do presente litígio e, por isso, declarou a incompetência em razão da matéria do tribunal comum para conhecer da presente acção e absolveu a Ré da instância.

Pelas razões explanadas na decisão recorrida, não podemos deixar de concordar com tal decisão proferida pelo Tribunal “a quo”.

Com efeito, com a alteração introduzida ao ETAF e ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante CPTA) pelo DL 214-G/2015 de 2/10, o legislador alargou o âmbito da competência da jurisdição dos tribunais administrativos ao caso presente.

Na verdade, o art°. 4° do ETAF, na redacção dada pelo citado DL 214-G/2015, passou a dispor:

1 – Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação dos litígios que tenham nomeadamente por objecto questões relativas a: (…)

i) Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime.


E o artº. 2º, n.º 2 do CPTA, aprovado pela Lei n.º 15/2002 de 22/2, na versão republicada em Anexo ao mencionado DL 214-G/2015 de 2/10, estatui o seguinte:

2 - A todo o direito ou interesse legalmente protegido corresponde a tutela adequada junto dos tribunais administrativos, designadamente para o efeito de obter: (…)

i) A condenação da Administração à adopção das condutas necessárias ao restabelecimento de direitos ou interesses violados, incluindo situações de via de facto, desprovidas de título que as legitime.


Sucede que o artº. 4º, nº 1 do ETAF, na versão decorrente da revisão operada pelo DL 214-G/2015 de 2/10, expressamente contempla no âmbito da competência dos tribunais administrativos e fiscais, entre outras, as situações que tenham por objecto questões relativas à condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, em que a Administração Pública actue sem título que a legitime, a que se refere a al. i) daquele dispositivo legal, na redacção dada pelo citado DL 214-G/2015, que é aqui a aplicável, como já vimos.

Aliás, lê-se no preâmbulo do DL 214-G/2015 que no que “(…) respeita ao ETAF, clarificam-se, desde logo, os termos da relação que se estabelece entre o artigo 1.º e o artigo 4.º, no que respeita à determinação do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, e, por outro lado, dá-se mais um passo no sentido, encetado pelo atual ETAF, de fazer corresponder o âmbito da jurisdição aos litígios de natureza administrativa e fiscal que por ela devem ser abrangidos. Neste sentido, estende-se o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal às ações de condenação à remoção de situações constituídas pela Administração em via de facto, sem título que as legitime (…)”.

A propósito desta alteração introduzida pelo DL 214-G/2015 de 2/10, o Prof. Mário Aroso de Almeida (in Manual do Processo Administrativo, 2ª ed., 2016, Almedina, pág. 171) escreve o seguinte:

«Com a revisão de 2015, o ETAF passou a atribuir à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios decorrentes de situações de vias de facto, em que a Administração atue sem título que a legitime, designadamente ocupando imóveis de propriedade privada sem proceder à respetiva expropriação. No passado, como a competência para as ações de defesa da propriedade e de delimitação da propriedade pública em relação à propriedade privada era reservada aos tribunais judiciais, também estas situações eram atribuídas à competência destes tribunais. Diferentemente, a nova alínea i) do n° 1 do artigo 4° do ETAF atribui a competência aos tribunais administrativos, atenta a natureza claramente administrativa dos litígios em causa, que têm por objeto pretensões de restituição e restabelecimento de situações enquadradas no exercício, ainda que ilegítimo, do poder administrativo.»

Neste mesmo sentido, veja-se o que foi escrito pelo Prof. Assis Raimundo, em “Âmbito de Jurisdição - Contratos e Responsabilidade Civil Extracontratual”, o qual aplaude a previsão nas competências do tribunal administrativo e fiscal relativamente a situações de acções de reivindicação em que a Administração ocupa um terreno de um particular sem para o efeito estar munida do competente título que a habilite (as chamadas actuações em vias de facto), existindo, aliás, uma expressa referência a essa nova competência no preâmbulo do diploma.

Ainda a respeito desta matéria, Jorge Pação (in “Novidade em sede de jurisdição dos tribunais administrativos – em especial, as três novas alíneas do artigo 4º, nº 1 do ETAF”, em Comentários à Revisão do ETAF e do CPTA, AAFDL Editora, 2ª ed., 2016, pág. 197), defende ser de concluir que «(…) com a revisão do contencioso administrativo português de 2015, os tribunais administrativos são os tribunais competentes para apreciação das situações de “via de facto”, de apropriação irregular e, consequentemente, de expropriação indireta, visto ser uma mera “ramificação” da figura da apropriação irregular, e que, aliás, traz à colação o princípio da intangibilidade da obra pública, de natureza puramente administrativa, devendo este último ser trabalhado e aplicado pelos tribunais administrativos desde 1 de dezembro de 2015, em detrimento da jurisdição comum.»

Como se refere no acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte de 30/11/2016 (proc. n.º 00975/16.6BEPNF, disponível em www.dgsi.pt), cuja doutrina sufragamos, «não se compreende outro conteúdo e alcance a dar às alíneas i) do nº. 1 do artigo 4º do ETAF e do nº. 2 do artigo 2º do CPTA, que não a da atribuição de jurisdição aos tribunais administrativos para as acções de reivindicação em que a Administração ocupa um terreno de um particular sem para o efeito estar munida do competente título que a habilite, conforme foi interpretado pelos referidos autores, tanto mais que, tais casos mereciam usualmente, no foro, o epíteto de "atuações em vias de facto".»

Na situação dos autos a A. peticiona a condenação da Ré Junta de Freguesia a reconhecer o direito de propriedade da A. sobre a parcela de terreno identificada nos artºs 1º e 2º da petição inicial e a restituição da mesma à A., com fundamento de que tal parcela lhe pertence e está a ser ocupada pela Ré, que lá exerce actos como se fosse dona daquele terreno (obras que estará a levar a cabo naquela parcela), sem o consentimento da Autora.

Atentos os fundamentos da acção, tal como foram explanados na petição inicial, a A. pretende reagir e defender-se face aos actos materiais alegadamente levados a cabo pela Ré Junta de Freguesia com a utilização de máquinas, no que concerne ao abate dos plátanos antigos existentes na dita parcela de terreno e à abertura de rasgos no seu solo, antecedida da remoção de todos os paralelepípedos de que era composto o seu revestimento, impossibilitando o acesso àquele espaço propriedade da A., por parte dos seus trabalhadores, para fins de parqueamento dos seus veículos automóveis.

Como vem sendo defendido pela mais recente jurisprudência do Tribunal Central Administrativo do Norte, compete aos tribunais administrativos, por se configurar como litígio emergente de uma relação jurídica administrativa, apreciar e decidir se o imóvel de cuja propriedade o autor se arroga foi ilegal e ilicitamente tomado, em parte, por uma pessoa colectiva de direito público - no caso em apreço, a Ré Junta de Freguesia, através dos actos materiais consubstanciados no abate dos plátanos antigos existentes na parcela de terreno em causa e à abertura de rasgos no seu solo, antecedida da remoção de todos os paralelepípedos de que era composto o seu revestimento - “de que terá resultado, simultaneamente, o impedimento de acesso ao mesmo, em termos que deva o terreno ser reposto na situação anterior, ou então, indemnizado pelos danos causados, mormente quanto ao valor da área do terreno que lhe foi, alegadamente, ocupado e retirado” (cfr. acórdão do TCA Norte de 5/02/2021, proc. nº. 00278/16.8BEMDL, disponível em www.dgsi.pt, que cita também os acórdãos de 31/01/2020, proc. n.º 249/18.0BEPNF e de 18/12/2019, proc. nº. 725/19.7BEPNF).

O que significa que os Tribunais Administrativos são materialmente competentes, à luz do artº. 4º, nº. 1, al. i) do ETAF (e do artº. 2º, nº. 2, al. i) do CPTA), na redacção dada pelo DL 214-G/2015 de 2/10, para apreciar e decidir a presente acção de reivindicação intentada pela A. contra a Junta de Freguesia de ..., ..., razão pela qual deve ser confirmada a decisão recorrida."

[MTS]