"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



27/10/2021

Jurisprudência 2021 (64)


Error in iudicando;
impugnação*


I. O sumário de RE 25/3/2021 (1381/19.8T8PTM-B.E1) é o seguinte:

1. Por imposição expressa do n.º 3 do art.º 596.º do CPC, o despacho proferido sobre as reclamações apresentadas ao despacho que fixa o objeto do litígio e enuncia os temas da prova apenas pode ser impugnado no recurso que vier a ser interposto da decisão final.

2. Aceitando as partes o valor processual de € 51.000,00, correspondente ao valor pago pela celebração do contrato de cessação de exploração de estabelecimento, e tendo em conta o pedido, a causa de pedir e o disposto no art.º 301.º/1 do CPC, é de manter esse o valor da causa, por corresponder ao valor do negócio jurídico celebrado entre as partes e cuja resolução se pretende.

3. A nulidade decorrente da falta ou ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir será sanável, porque a arguição não é julgada procedente, quando o réu contestar e se verificar que interpretou convenientemente a petição inicial – cfr. n.º 3 do art.º 186.º

4. Nos termos do n.º 4 do art.º 595.º, do C. P. Civil, não cabe recurso da decisão do juiz que, por falta de elementos, relegue para final a decisão de matéria que lhe cumpra conhecer.

5. A verificação da omissão de uma formalidade de cumprimento obrigatório, ou a prática de ato que a lei não admita, bem como a omissão de qualquer formalidade que a lei prescreva, tal como a da generalidade das nulidades processuais, deve ser objeto de arguição perante o tribunal onde é cometida, reservando-se o recurso para o despacho que sobre a mesma incidir. (sumário do relator)


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"1.7. Irregularidade/nulidade processual.

Finalmente, a recorrente não aceita que no despacho saneador conste o seguinte:

“Notifique as partes – artigo 593º, nº 3 do Código de Processo Civil.

Podem, igualmente, alterar o requerimento probatório, em 10 dias”.

Entende que as partes deveriam ter sido notificadas nos termos do nº 2 do art.º 596º do C.P.C., o que se mostra violado.

Assim como não podiam ser notificadas para alterar o requerimento probatório, em 10 dias, querendo, por ausência de suporte legal.

Justifica este entendimento porque as partes foram notificadas e nenhuma veio requerer a realização de audiência prévia, sendo que essa alteração, como se prescreve no art.º 598.º/1 do CPC, só pode ser apresentada na audiência prévia, pois proferido que foi despacho dispensando a audiência prévia já não é admissível a alteração do requerimento probatório.

Por isso, adianta a recorrente, é destituída de qualquer fundamentação, quer de facto quer de direito, a possibilidade dada agora às partes de alterarem o seu requerimento probatório, por violação do disposto no nº 1 do artº 205º da Constituição da República Portuguesa e nº 1 do art.º 598.º do C.P.C.

Repare-se que a recorrente não invoca, nem coloca em causa, a apresentação extemporânea de qualquer alteração do requerimento probatório e consequente decisão que a admita ou rejeite.

Donde, inexiste qualquer decisão passível de recurso.

Na verdade, o despacho em causa, nessa parte, não se pronuncia sobre qualquer alteração do requerimento probatório e muito menos indefere ou admite qualquer alteração, antes se limita a ordenar a notificação das partes nos termos mencionados.

Não se pronuncia, pois, o tribunal, sobre qualquer questão.

Destarte, a decisão recorrida, no segmento discordante, não admite, nem rejeita, qualquer meio de prova ou alteração do requerimento probatório, como se exige na alínea d) do n.º 2 do art.º 644.º do CPC, de modo a permitir o recurso autónomo.

Portanto, o recurso não tem por objeto decisão interlocutória que admita recurso autónomo.

Na realidade, o despacho em causa não tem qualquer conteúdo decisório, sendo, por isso, de mero expediente.

E como é sabido, e consabido, o meio recursório visa reapreciar decisões judiciais concretas - as decisões judiciais impugnadas por meio do recurso, reconduzidas a sentenças ou despachos específicos, de conteúdo concreto, e não formas de atuação ou de condução do processo, como no caso concreto, por se inserir no âmbito da condução do processo como conjunto de atos.

Na definição de Alberto dos Reis (C.P.C. Anotado, vol. V, 240), despachos de mero expediente são “aqueles que se destinam a regular, de harmonia com a lei, os termos do processo, e que assim não são suscetíveis de ofender direitos processuais das partes ou de terceiros”. São os que “dizem respeito apenas à tramitação do processo, sem tocarem nos direitos ou deveres das partes”. E a página 249 refere que são despachos que não podem “pela sua própria natureza…ofender direitos processuais das partes ou de terceiros. Ou se trata de despachos banais, que não põem em causa interesses das partes, dignos de proteção, ou se trata de despachos que exprimem o exercício do livre poder jurisdicional.”

Diz-se sentença o ato pelo qual o juiz decide a causa principal ou algum incidente que apresente estrutura de uma causa – art.º 152.º/2 do C. P. Civil.

Os despachos de mero expediente destinam-se a promover o andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes (art.º 152.º/4 do C. P. Civil) – Conselheiro Rodrigues Bastos, in Notas ao Código Processo civil.

Consequentemente, o despacho saneador, nessa parte, tem de ser considerado como de mero expediente, uma vez que se limita a ordenar a notificação das partes nos termos apontados, dele não resultando qualquer ofensa ao direito processual da recorrente ou de terceiro, em particular a rejeição ou admissão de qualquer meio de prova indicado em momento processual oportuno ou inoportuno.

E ainda que se considerasse indevida tal notificação, tratar-se-ia de eventual irregularidade processual, sujeita ao regime do art.º 195.º e 199.º do C. P. Civil, devendo ser arguida no prazo legal de 10 dias após o seu conhecimento, que teve lugar com a notificação do despacho saneador (parte final do n.º1 do art.º 199.º), ou seja, a recorrente deveria tê-la invocado no prazo legal de 10 dias, perante o tribunal recorrido (salvo no caso previsto no n.º3 do art.º 199.º, que não se verifica), sob pena de se considerar sanada, como é manifestamente o caso, já que apenas foi suscitada em sede de recurso e após o referido prazo legal de 10 dias.

Também Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC Anotado, Vol. 2.º, 3.ª edição, pág. 739, advertem que “não pode confundir-se a nulidade da sentença com a nulidade de processo prevista no art.º 195.º, ainda que esta acarrete, nos termos do n.º2, desse artigo, a nulidade da sentença. A arguição da nulidade processual faz-se na própria instância em que é cometida (sem prejuízo do disposto no art.º 199.º-3) e no prazo geral do art.º 149.º/1”.

Com efeito, é consabido que a verificação da omissão de uma formalidade de cumprimento obrigatório, ou a prática de ato que a lei não admita, bem como a omissão de qualquer formalidade, tal como a da generalidade das nulidades processuais deve ser objeto de arguição perante o tribunal onde é cometida, reservando-se o recurso para o despacho que sobre a mesma incidir – cf. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, ob. cit. pág. 739."


III. [Comentário] a) Salvo o devido respeito, é duvidoso que a RE tenha qualificado correctamente o vício decorrente da errada decisão sobre a possibilidade de as partes alterarem o requerimento probatório.

Uma notificação indevida ou errada do tribunal nunca pode ser uma irregularidade processual "sujeita ao regime do art.º 195.º e 199.º do C. P. Civil". O vício nada tem a ver com a prática ou a omissão de um acto processual, mas antes com o conteúdo de uma decisão. O conteúdo de uma decisão, mesmo que grosseiramente contra legem, nunca pode originar uma nulidade processual.

Neste sentido, dado que o conteúdo errado ou equivocado de uma decisão nunca pode constituir uma nulidade processual, o que há é apenas uma decisão que contém um error in iudicando. Nestes termos, a decisão é impugnável nos termos gerais, não lhe sendo aplicável nenhum regime respeitante às nulidades processuais.

b) A RE qualifica a parte acima transcrita do despacho saneador como despacho de mero expediente. De novo com todo o respeito, é duvidoso que assim se deva entender. 

Suponha-se que, correspondendo ao "informado" pelo tribunal, alguma das partes altera o requerimento probatório. A circunstância de a "informação" sobre a possibilidade de alteração constar de uma decisão é irrelevante? O tribunal poderia rejeitar a alteração feita pela parte, ignorando o que anteriormente "informara"? A confiança da parte na correcção da "informação" do tribunal não merece nenhuma tutela? 

O problema é demasiado complexo para ser resolvido através da mera qualificação dessa parte do despacho como um despacho de mero expediente, isto é, como um despacho insusceptível de criar para as partes uma nova situação processual. Pelo contrário: tudo indica que assim não é.

MTS