"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



13/10/2021

Jurisprudência 2021 (54)


Caso julgado;
autoridade de caso julgado; extensão a terceiros*


1. O sumário de RP 23/2/2021 (1358/20.0T8PNF-A.P1) é o seguinte:

I – A exceção de caso julgado distingue-se claramente da autoridade de caso julgado.

II - A autoridade de caso julgado visa o efeito positivo de impor uma primeira decisão enquanto pressuposto indiscutível para uma segunda decisão de mérito, determinando os fundamentos desta.

III – A autoridade do caso julgado não exige a tríplice identidade de sujeitos, objeto e pedido, como ocorre com a exceção de caso julgado.

IV – Num acidente de viação em que se fixou a responsabilidade pela eclosão do evento danoso, existe autoridade de caso julgado relativamente aos factos que explicam a dinâmica do acidente numa segunda ação interposta contra a mesma ré, responsável seguradora.

V- Esta conclusão surge reforçada sabendo-se que naquela primeira ação interposta pela proprietária do veículo acidentado a empresa seguradora, acostumada a este tipo de processos, teve oportunidade de produzir a prova que entendeu adequada sobre a eclosão do sinistro e pôde contraditar amplamente a tese da autora agora replicada, na nova ação, pelo condutor daquele veículo, agora autor.

VI – A adesão voluntária de quem seja materialmente terceiro ao caso julgado alheio pode, caso esteja assegurado no processo inicial o exercício de um contraditório efetivo pela parte vencida, implicar a aplicação da autoridade do caso julgado de molde a obstar a decisões opostas, consagrando-se assim os valores da certeza e segurança jurídicas em ordem a uma benquista celeridade processual.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Em causa nos autos, uma única questão jurídica concernente à aplicação feita nos autos da denominada” autoridade do caso julgado”.

A autoridade do caso julgado distingue-se da exceção de caso julgado e é, precisamente, na aferição dessa distinção e do sentido e alcance da autoridade do caso julgado que nos confrontamos aqui a partir da questão suscitada.

As doutas alegações da recorrente assentam, no essencial, na fundamentação presente num artigo recente do Professor Lebre de Freitas sintomaticamente intitulado “Um polvo chamado autoridade do caso julgado”, acessível online https://portal.oa.pt/media/130340/jose-lebre-de-freitas_roa-iii_iv-2019-13.pdf e publicado, em 2019, na Revista da Ordem dos Advogados, cujo sumário é igualmente incisivo: “A autoridade do caso julgado, tal como a jurisprudência dominante a entende, é um polvo devorador da figura da exceção do caso julgado e dos seus limites legais.”

Nos termos do artigo em causa que procuraremos sintetizar adiante nos seus pontos essenciais, entende-se que uma dada decisão judicial transita em julgado quando já não é suscetível de reclamação nem de recurso ordinário (art.º 628.º do Código de Processo Civil (CPC)). “Forma-se então o caso julgado, com efeitos circunscritos ao processo concreto em que a decisão é proferida, constituindo caso julgado meramente formal, quando ela seja de absolvição da instância (art. 279.º, CPC), extinga a instância por causa diversa do julgamento (art. 277.º, CPC) ou constitua despacho interlocutório que não seja de mero expediente (art. 152.º-4, CPC), e com efeitos dentro e fora do processo, constituindo caso julgado simultaneamente formal e material, quando tenha sido de mérito (art. 619.º-1, CPC).”

Nos termos do artigo 581º do CPC a exceção do caso julgado exige uma tríplice identidade: de sujeitos, pedido e causa de pedir.

Lebre de Freitas apresenta a distinção entre esta exceção do caso julgado e a denominada autoridade do caso julgado – onde, como é consabido, inexiste a dita tríplice identidade - a qual não descarta igualmente poder ocorrer. Como se lê no seu Código de Processo Civil, Anotado, 2ª ed., pág.354, “A exceção de caso julgado não se confunde com a autoridade de caso julgado; pela exceção, visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda ação, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito; a autoridade de caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito (…). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objeto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda ação, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida”.

Os excessos jurisprudenciais na aplicação da figura da “autoridade do caso julgado”, na perspetiva deste Autor, que caracterizam o dito Polvo, são descritos no que ao nosso caso particular diz respeito, no ponto 7 do seu artigo (“Crise na identidade das partes”).

Estão em causa acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça nos quais é alegadamente dado de barato o requisito da identidade das partes quando se aplica a autoridade do caso julgado; um domínio privilegiado, segundo o Autor, seria justamente o dos acidentes de viação.

Num dos casos descritos, idêntico ao nosso, em que a ré seguradora figura como parte em ambas as ações (Acórdão do STJ de 27.2.18, processo 2472/05), tendo tido intervenção sempre na qualidade de ré, entendeu-se ser oponível a autoridade de caso julgado, concretamente quanto à prova dos factos respeitantes à dinâmica do acidente. Donde, aquela outra sentença vincularia definitivamente a aqui ré/apelante, impedindo-a de discutir novamente, nesta ação, a versão aqui alegada pelo autor, que corresponde àquela que foi dada como provada na ação supra citada, sendo dando como provados os factos da dinâmica do acidente, sem possibilidade de voltarem a ser discutidos.

Esta foi precisamente a opção assumida pela decisão do tribunal de primeira instância, agora alvo de recurso.

Ora, o Prof. Lebre de Freitas discorda frontalmente deste entendimento, fazendo-o, sucintamente, nos seguintes moldes: “quanto ao argumento de que, tendo sido parte em ambas as causas, a seguradora já tinha exercido o contraditório quanto à imputabilidade do acidente, esquece que a solução legal para esse caso é outra — a da eficácia extraprocessual dos meios de prova produzidos na primeira ação, sem prejuízo do confronto com aqueles que venham a ser produzidos na segunda”.

Procurando avançar nesta discussão, julgamos que o presente dissídio jurídico foi, a nosso ver, corretamente enquadrado num outro artigo este da autoria do Prof. Rui Pinto, publicado na Revista Julgar, em 2018, igualmente disponível online neste link: http://julgar.pt/wp-content/uploads/2018/11/20181126-ARTIGO-JULGAR-Exce%C3%A7%C3%A3o-e-autoridade-do-caso-julgado-Rui-Pinto.pdf

Este autor aceita ser duvidoso o entendimento assumido na decisão recorrida.

Na verdade, como escreve, está em causa uma adesão ao caso julgado não prevista estritamente na lei. Seria, portanto, questionável a admissibilidade de utilização deste mecanismo de adesão ao caso julgado fora dos casos estritamente previstos na lei.

No fundo, como bem se explica no texto, trata-se de saber se um terceiro, o ora autor, pode, ou não, opor a alguém, a seguradora, que foi parte do processo que terminou com sentença, essa mesma sentença. Citando a interrogação que se suscita: “Em suma: existe um princípio de aproveitamento por terceiros do caso julgado secundum eventum litis?”

Já recenseamos em sentido afirmativo o Ac. do STJ de 27-02-2018/Proc. 2472/05.8TBSTR.E1 onde precisamente se “decidiu estender a autoridade de caso julgado a outro processo relativo a acidente de viação, apesar de ambos os sujeitos não serem os mesmos, invocando que tendo “tido a Ré – Companhia FF – oportunidade de, no âmbito deste processo, realizar a sua defesa – e tendo-se concluído aí que tem responsabilidade, sendo uma responsabilidade exclusiva em substituição do segurado –, não faz sentido que venha pretender que o apuramento dos factos e inerente responsabilidade possam ser efetuados de modo diferente no âmbito de outro processo judicial, em que se discute o mesmo acidente, com as mesmas circunstâncias factuais e pedidos do mesmo tipo, invocando que aqui não funciona a autoridade de caso julgado”.

O Prof. Rui Pinto assume, como explicamos, “algumas reservas” quanto a este entendimento mas, no que ao caso interessa, termina inequivocamente por aceitar “que a limitação inter partes do caso julgado se justifica pela necessidade de proteger quem não se pode defender; se é o próprio a querer “usar” da decisão, parece ser de defender a existência de um princípio de adesão ao caso julgado alheio. O único limite será, naturalmente, a indisponibilidade substantiva dos respetivos direitos.

Parece, em conclusão, que se pode pugnar pela existência de um princípio de adesão voluntária de quem seja materialmente terceiro ao caso julgado alheio.”

Este Autor centra, pois, a sua análise na perspetiva do “terceiro” – no caso, o agora autor – que, voluntariamente, prescinde de apurar certos factos e prefere aderir aos já apurados noutra ação, naturalmente mais favoráveis às suas pretensões, relativos à dinâmica do acidente e à existência de uma relação de comissão, sabendo que os mesmos foram já definitivamente discutidos e apurados relativamente à outra única parte, ré em ambos.

Por sua vez, o Prof. Lebre de Freitas assenta os seus argumentos na ótica dessa outra parte que, tendo que arcar com a exceção de caso julgado relativamente aos sujeitos, causa de pedir e pedido dessa outra ação, já não deveria ter esse encargo, através do que diz ser uma indevida extensão da figura da autoridade do caso julgado, relativamente a um outro sujeito processual que nunca interveio anteriormente. Admitir o contrário implicaria não ter em conta que “a diversidade de causas de pedir e de pedidos pode implicar variações apreciáveis no interesse da parte em contradizer e levar até a que a parte vencida descure a sua defesa (revelia, falta de impugnação de factos, falta de apresentação de provas)”.

Neste contexto, aponta o exemplo do direito processual brasileiro no qual muito embora exista uma norma segundo a qual o caso julgado abrange a questão prejudicial, quando desta “depender o julgamento do mérito” (art.º 503.º, § 1.º, i) é sempre preciso que tenha “havido contraditório prévio e efetivo”, não se formando o caso julgado quando, nomeadamente, haja revelia ou o processo em que a questão prejudicial é decidida tenha limitações probatórias (art.º 503.º, § 1.º, ii, e § 2.º). Note-se, como ressalva este Autor, que o direito brasileiro não dispõe de norma sobre a eficácia extra-processual da prova, como acontece na legislação portuguesa.

Refira-se finalmente, amenizando a polémica, que o “polvo” referido pelo Prof. Lebre de Freitas apenas estaria “no máximo das suas forças” naqueles casos, não o nosso, em que nem sequer ocorre a identidade da parte vencida – já vimos que a parte “vencida” quanto ao apuramento destes factos na outra ação é a mesma contra a qual se pretende impor a autoridade do caso julgado nos nossos autos.

Face a esta querela, doutrinal e jurisprudencial, sumariamente descrita nos seus desenvolvimentos mais recentes, a solução a adotar estará necessariamente eivada de dúvidas, constituindo uma opção entre o menor de dois males.

Todavia, neste específico caso concreto em apreço, entendemos não dever contrariar o que, como o próprio Prof. Lebre de Freitas refere, constitui um entendimento jurisprudencial maioritário.

Na verdade, a recorrente teve oportunidade de contraditar a dinâmica do acidente em discussão nestes autos e a subjacente relação de comissão então apurada. Fê-lo nos moldes que entendeu mais adequados, sem restrições, agindo enquanto pessoa coletiva interveniente acostumada a este tipo de conflitos. Ao autor sempre seria admissível descartar-se desta autoridade de caso julgado mas, numa extensão jurisprudencial que não se afasta do fim visado pelo legislador, também não deve coartar-se a este a opção de aderir ao que ficou definitivamente apurado e que vincula necessariamente a ré.

De um lado, protegem-se os princípios de certeza e segurança jurídicas, vedando-se, na medida do possível, decisões judiciais opostas ou contraditórias, assegurando-se igualmente uma desejada celeridade e simplificação processuais. Do outro, queda a crítica a uma eventual interpretação excessivamente abrangente da lei muito embora a mesma, mal ou bem, deva reputar-se, em particular em casos como o dos autos, como seguramente maioritária e não pondo minimamente em causa o contraditório efetivo a que alude a lei processual brasileira."


*[Comentário] a) Salvo o devido respeito, não se pode acompanhar a orientação que obteve vencimento no acórdão da RP.

Não está em causa que um terceiro possa vir a invocar, numa acção posterior, os factos considerados admitidos por acordo ou provados numa outra acção. O que está em causa é que isso possa ser enquadrado no âmbito da autoridade de caso julgado e que, por isso, essa matéria de facto seja indiscutível na nova acção.

b) Começando pela percepção da análise do problema. No caso concreto, é um pretenso lesado que pretende aproveitar-se da condenação de uma companhia de seguros. Pergunta-se: a percepção do problema seria a mesma no caso de ser uma companhia de seguros absolvida numa primeira acção a invocar contra um terceiro, numa acção posterior, a sua absolvição? Suspeita-se bem que a percepção do problema não seria a mesma.

A questão está em que não pode haver nenhuma distinção quanto ao aproveitamento contra um réu de um caso  julgado favorável ao agora autor e o aproveitamento contra o agora autor de um caso julgado favorável ao réu. O princípio da igualdade das partes proíbe que um terceiro possa aderir a um caso julgado favorável e que um réu não possa invocar um caso julgado favorável contra um terceiro.

Quer dizer: se se aceita que um terceiro possa invocar um caso julgado favorável contra um réu anteriormente demandado numa outra acção, tem também de se aceitar que o réu, demandado numa nova acção, possa invocar contra um terceiro um caso julgado favorável obtido numa acção anterior. Como é bom de ver, se alguma destas hipóteses não é aceitável, então a outra também não o pode ser.

c) Passando agora ao enquadramento do problema, cabe perguntar se a ordem jurídica portuguesa aceita que o caso julgado incida sobre factos.

A resposta é negativa. Como é bem sabido, aceita-se que o caso julgado abrange os fundamentos directos da decisão. Mas isto é completamente diferente de concluir que o caso julgado abrange todo e qualquer facto que tenha sido adquirido na acção.

Aliás, se assim fosse, nem sequer se compreenderia o regime da eficácia extraprocessual das provas estabelecida no art. 421.º CPC (que, aliás, ao contrário do que é afirmado, também se encontra consagrada no art. 372.º CPC (BR)). Em vez de se invocar a prova produzida num outro processo, invocar-se-ia o caso julgado sobre o facto provado.

Portanto, a orientação sufragada pela RP não é compatível com dados relevantes do processo civil português.

d) A questão subsequente é esta: no ordenamento jurídico português, há algo que impeça que um terceiro possa aproveitar um caso julgado favorável, isto é, possa usar um caso julgado secundum eventum litis?

A resposta é: não há nada que o impeça, desde que lei o determine. Exemplos de aproveitamento por um terceiro de um caso julgado favorável constam dos art. 522.º e 523.º CC (obrigações solidárias), do art. 635.º CC (relações entre o credor, o devedor e o fiador) e do art. 19.º, n.º 1, LPPAP (acção popular). 

O que não se pode aceitar é que, fora dos casos estabelecidos na lei, um terceiro se possa aproveitar de um caso julgado favorável. Se a regra fosse a de que qualquer terceiro em qualquer situação pode invocar, em seu benefício, um caso julgado, então valeria, no ordenamento jurídico português, uma regra de aproveitamento por terceiros de qualquer caso julgado, pelo que as várias disposições legais que o estabelecem seriam uma inutilidade.

Julga-se que é claro que nem essa regra vigora, nem aquelas disposições são inúteis. Logo, fora das situações estabelecidas na lei, um terceiro não pode invocar contra uma parte de uma anterior acção o caso julgado nela formado. De outro modo, ter-se-ia uma qualquer vulgar acção transformada numa acção popular.

e) Este resultado não pode ser considerado arbitrário. A uma parte -- nomeadamente, a um réu -- é exigível que se defenda numa acção quanto a efeitos que dela pode decorrer. Não é certamente exigível que se defenda quanto a efeitos que podem vir a ser produzidos fora da acção e que, no momento da pendência desta, não são nem controláveis, nem, menos ainda, previsíveis.

No ambiente da metáfora referida no acórdão, se assim não fosse criar-se-ia verdadeiramente um "caso julgado tentacular".

MTS