"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



29/10/2021

Jurisprudência 2021 (66)


Divórcio; separação de facto;
prazo, facto superveniente*


1. O sumário de STJ 23/2/2021 (3069/19.0T8VNG.P1.S1) é o seguinte:

I. De acordo com o art. 1781.º, al. a), do CC, a separação de facto por um ano consecutivo constitui causa do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges. A separação de facto, nas suas dimensões objetiva e subjetiva, deve durar, em princípio, há um ano consecutivo.

II. Todavia, não pode, nesta sede, descurar-se a alteração do sistema de divórcio que decorre, em último recurso, da metamorfose sofrida pelo próprio conceito de casamento. O princípio da liberdade de escolha dos cônjuges postula que ninguém deve permanecer casado contra sua vontade.

III. Sobre a referência temporal da falta do decurso do prazo de um ano consecutivo de separação de facto ao tempo da propositura da ação prevalece o princípio da atualidade da decisão consagrado no art. 611.º do CPC.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

1. De acordo com o art. 1781.º, al. a), do CC, a separação de facto por um ano consecutivo constitui causa do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges (i.e., do divórcio pedido por um dos cônjuges contra o outro com fundamento em determinada causa Cf. Guilherme de Oliveira, Manual de Direito da Família, Coimbra, Almedina, 2020, p. 276]. Esta modalidade de divórcio encontra-se regulada nos arts. 931.º e 932.º do CPC.

A separação de facto é composta por um elemento objetivo – a falta de vida em comum dos cônjuges – e por um elemento subjetivo – o propósito, de ambos ou de um dos cônjuges, de não restabelecer a comunhão matrimonial (art. 1782.º do CC). A separação de facto, nas suas dimensões objetiva e subjetiva, deve durar, em princípio, há um ano consecutivo.

Todavia, não pode, nesta sede, descurar-se a alteração do sistema de divórcio que decorre, em último recurso, da metamorfose sofrida pelo próprio conceito de casamento. Na verdade, a evolução do direito civil da família tem sido no sentido de uma progressiva emancipação do indivíduo no seio do grupo familiar, com as consequentes permeabilidade do direito a volições individuais e compressão das exigências da família enquanto formação social. Trata-se da afirmação do primado da liberdade do indivíduo. Uma pretensão de incremento de autenticidade e de felicidade conduziram como que a uma absolutização da afetividade, como que a uma redução do vínculo jurídico a um aliquid voluntatis. No direito da família, em geral e, em particular, no âmbito das crises familiares, o legislador depara-se com a dificuldade representada pelas delicadas mediações ideológicas e sociais que lhe são exigidas numa sociedade complexa e caracterizada por fenómenos de permanente e célere alteração. Verificou-se assim a sucessão de várias intervenções legislativas. Aqui se manifesta também o embaraço do intérprete chamado a descortinar, a interpretar e a conformar segundo a ideia de Direito a dinâmica dos dados institucionais face aos movimentos da realidade social. A sociedade hodierna não aceita facilmente aquelas restrições à autonomia tradicionalmente implicadas pela celebração do casamento. A adoção do sistema de divórcio pura constatação da ruptura do casamento – o direito de livremente sair do casamento de que cada um dos cônjuges é titular – realça claramente a tentativa de proteção da autonomia no seio da relação conjugal[Cf. Maria João Romão Carreiro Vaz Tomé, “Reflexões sobre a obrigação de alimentos entre ex-cônjuges”, in Textos de Direito da Família Para Francisco Pereira Coelho, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, pp.574, 577-578].

Entre os sistemas de divórcio-sanção, divórcio-remédio e divórcio pura constatação da ruptura do casamento, o legislador optou claramente pelo último.

O princípio da liberdade de escolha dos cônjuges postula que ninguém deve permanecer casado contra sua vontade. A invocação da rutura definitiva da vida em comum é fundamento suficiente para que o divórcio seja decretado. A metamorfose do sistema de divórcio em vista da auto-realização insere-se num ethos de autonomia pessoal no domínio das relações de intimidade. “A estabilidade da família está nas mãos dos cônjuges”, não podendo o Direito garanti-la contra a vontade dos interessados. Na verdade, o significado jurídico do casamento mudou, especialmente neste século. O reconhecimento progressivo da individualidade humana resultou numa evolução do matrimónio de um estatuto virtualmente imutável para um facilmente dissolúvel.

O legislador adoptou um modelo individualístico-associativo, baseado na plena igualdade dos cônjuges, um modelo que valoriza essencialmente a dimensão afetiva enquanto agregadora e legitimadora da sociedade conjugal, enquanto lugar de manifestação e de desenvolvimento da personalidade de cada um dos cônjuges e, consequentemente, mais exposto à eclosão de conflitos.

2. O Tribunal de 1.ª Instância considerou que os factos provados não integram a facti-species deste preceito em virtude de o prazo de um ano ainda não haver decorrido à data da propositura da ação (3 de abril de 2019). Por isso, não se produz a consequência jurídica prevista na respetiva estatuição: a constituição do direito ao divórcio.

O decurso de um ano consecutivo de separação de facto é, com efeito, um facto constitutivo do direito potestativo (extintivo) de um dos cônjuges requerer o divórcio sem o consentimento do outro, devendo, por isso, verificar-se esse requisito à data da propositura da ação. Assim, o prazo de um ano deve, via de regra, já ter decorrido à data da propositura da ação de divórcio (que coincidirá com a receção da correspondente petição inicial na secretaria do tribunal, nos termos do art. 259.º, n.º 1, do CPC), porquanto os pressupostos do divórcio devem estar preenchidos nesta data e não na da decisão.

O Tribunal da Relação …, manteve, por isso, a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância quanto à inverificação do requisito previsto no art. 1781.º, al. a), do CC – separação de facto por um ano consecutivo.

Entende a Autora que “Provando-se que o ano de separação ainda não estava corrido à data da entrada da petição inicial mas já estava corrido à data da sentença e à data da audiência de julgamento, não pode a sentença ignorar tal facto como não poderia ignorar se tivesse havido reatamento da vida conjugal após a entrada da petição inicial” (conclusão 7ª).

3. O art. 611.º, n.º 1, do CPC, permite, com algumas restrições, que na sentença sejam tomados em consideração factos que se produzam depois da propositura da ação. Na verdade, de acordo com este preceito, o Tribunal deve “(…) tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à propositura da acção, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento de encerramento da discussão.”

Conforme o acórdão da Formação, “Acresce que hoje tem sido mais aberto ou flexível o entendimento sobre a configuração da causa de pedir e os parâmetros do seu ulterior completamento no decurso da instância, nos termos conjugados dos artigos 5.°, n.° 1 e 2, alíneas a) e b), 264.° e 265.°, 588.°, 590.°, n.° 4 a 6, e 611.°, n.° 1, do CPC”.

A atendibilidade do decurso do ano de separação de facto – iniciado em setembro de 2018 - neste estádio do processo, para efeitos do art. 1781.º, al. a), do CC, não envolve tão pouco, no caso dos autos, alteração ou ampliação da causa de pedir, à revelia das normas que regem a modificação objetiva da instância (arts. 264.º e 265.º, n.º 1, do CPC) - mas permitida pelo art. 588.º, do CPC -, porquanto se trata de facto alegado pela Autora desde a petição inicial, como elemento da causa de pedir da presente ação[Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de novembro de 2005 (Lucas Coelho), proc. n.º 05B2266 – disponível para consulta in www.dgsi.pt].

Sobre a referência temporal da falta do decurso do prazo de um ano consecutivo de separação de facto ao tempo da propositura da ação prevalece o princípio da atualidade da decisão consagrado no art. 611.º do CPC[Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de novembro de 2005 (Lucas Coelho), proc. n.º 05B2266; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28 de setembro de 2009 (Silva Santos), proc. n.º 4340/06.7TBSXL.L1-8 – disponíveis para consulta in www.dgsi.pt]. Está em causa como que uma espécie de “utilidade superveniente da lide”.

A ação foi instaurada a 3 de abril de 2019, a audiência de discussão e julgamento teve lugar a 18 de novembro de 2019, a decisão do Tribunal de 1.ª Instância é de 28 de novembro de 2019 e o acórdão do Tribunal da Relação … foi proferido a 16 de junho de 2020.

Tendo a separação de facto o seu início em setembro de 2018 – e perdurado até hoje -, o prazo de um ano já havia decorrido aquando da realização da audiência de discussão e julgamento, a 18 de novembro de 2019. Deve, assim, admitir-se a completude de um prazo dilatório de direito substantivo, constitutivo do direito potestativo extintivo da Autora, depois de intentada a ação. De resto, “(…) o simples decurso dum período que falte para se completar um prazo sem o qual a ação não possa proceder talvez dispense a invocação em articulado superveniente”[Cf. José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, Coimbra, Almedina, 2018, p.725].

A vontade manifestada pela Autora na petição inicial, de pôr fim à união matrimonial, foi renovada com a sua inconformação, desde logo, com a decisão do Tribunal de 1.ª Instância e, depois com a do Tribunal da Relação …. Sem summo rigore, como que se verificou uma regularização superveniente da instância quando a Autora intervém de novo interpondo recurso da decisão do Tribunal de 1.ª Instância para o Tribunal da Relação … e, depois, da decisão deste para o Supremo Tribunal de Justiça. Aquando da admissão tanto do primeiro como do segundo recurso, a Autora já é titular do direito ao divórcio, que se encontra claramente sedimentado na sua esfera jurídica.

“Não faria sentido, seria penoso para as partes e revelaria um notório desajustamento social e um excessivo apego a literalismos, vir agora dizer a um casal separado de facto há mais de quatro anos, ambos a quererem divorciar-se, pondo termo a relação irremediavelmente comprometida, que deveriam intentar nova acção, com custas e desgaste inerentes para demonstrar o que, aqui, está exuberantemente patente”[Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de março de 2007 (Sebastião Póvoas), proc. n.º 07A297 – disponível para consulta in www.dgsi.pt].

Pode até referir-se a inutilidade de nova ação na medida em que a questão se pode resolver nos presentes autos".

*3. [Comentário] Salvo o devido respeito, não se adere à solução defendida no acórdão do STJ. A divergência assenta na interpretação do art. 611.º, n.º 1, CPC.

Do disposto no art. 611.º, n.º 1, CPC não pode decorrer que o autor pode propor uma acção sabendo que o facto constitutivo ainda não se verificou, mas com a "esperança" de que, no momento do encerramento da discussão, já se tenha verificado.

A interpretação razoável do estabelecido no art. 611.º, n.º 1, CPC, tem de ser outra. Um pouco à semelhança do que vale para o disposto no art. 610.º CPC, o art. 611.º, n.º 1, CPC orienta-se por um critério de aproveitamento do processo, pelo que deve ser interpretado no sentido de que, se o autor alegar que o facto constitutivo se verificou e se concluir que isso não era verdade, mas, entretanto, o facto se verificar antes do encerramento da discussão, então pode aproveitar-se esta verificação superveniente desse facto.

Como bem se compreende, o art. 611.º, n.º 1, CPC não pode ser utilizado para, por exemplo, propor uma acção antes de decorrido o prazo de usucapião, contando que ele se vai completar até ao encerramento da discussão.

MTS