Arrolamento;
processo de inventário*
1) A circunstância de se afirmar que o arrolamento é intentado como incidente de divórcio, que já se encontrava proferido por sentença, transitada em julgado, nessa ocasião, não é impeditivo que se considere que o mesmo é preliminar do processo de inventário para partilha dos bens do casal;
2) O arrolamento não se esgota na ação de divórcio, separação ou anulação, mas mantém-se e subsiste até se mostrar efetuada a partilha, uma vez que, até lá, não obstante o divórcio decretado, permanece o perigo de dissipação e extravio dos bens;
3) Justifica-se a aplicação do regime especial previsto no artigo 409º do NCPC ao arrolamento requerido após o trânsito em julgado da decisão que decretou o divórcio, como preliminar do inventário instaurado para partilha, porquanto, nesses casos, ocorre situação igualmente merecedora de tutela especial, justificando o desvio às regras gerais na tramitação da providência, no que se refere à dispensa de alegação e demonstração de um dos seus requisitos: o justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens.
II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"A requerente veio intentar procedimento cautelar de arrolamento contra a requerida, em 16/12/2021, como incidente da ação de divórcio sem consentimento, sendo certo que requerente e requerido se divorciaram em 2012.
Verdadeiramente não se pode conceber que se considere como incidente da ação de divórcio um arrolamento que é intentado decorridos mais de nove anos após terminar aquela ação, uma vez que, finda a ação, o procedimento deixa de ser incidente daquela ação, podendo sê-lo de outra a intentar ou já intentada, mas não finda.
De resto, mal se compreenderia que uma providência cautelar, que é provisória, porque se destina a durar até à prolação de uma decisão definitiva, lhe pudesse sobreviver. [...]
O tribunal a quo entendeu – e bem – que no caso dos autos não estamos perante um incidente da ação de divórcio, tendo em conta que o casamento entre requerente e requerido foi dissolvido em junho de 2012, pelo que entendeu que o arrolamento em questão surge como preliminar e dependência do processo de inventário para partilha do património comum do casal.
A questão é a de saber se podia fazê-lo.
O apelante entende que não dado que o arrolamento foi instaurado como incidente da ação de divórcio, e uma vez que a ação já havia terminado em 2012, o arrolamento era originalmente inútil e deveria ter sido julgado improcedente e não ficcionar que era, afinal, preliminar de uma outra ação judicial – de inventário – distinta da ação de divórcio.
Entende o apelante que, ainda que assim não se entendesse, não estamos perante nenhuma das hipóteses previstas no artigo 409º NCPC, dado que a norma em questão tem natureza excecional, pelo que não é suscetível de aplicação analógica.
Vejamos.
Quanto à alegada inutilidade original do arrolamento que deveria determinar a sua improcedência, importa notar que na Exposição de Motivos constante da Proposta de Lei nº 113/XII se refere que “São implementadas medidas de simplificação processual e de reforço dos instrumentos de defesa contra o exercício de faculdades dilatórias.
A celeridade processual, indispensável à legitimação dos tribunais perante a comunidade e instrumento indispensável à realização de uma das fundamentais dimensões do direito fundamental de acesso à justiça, passa necessariamente por uma nova cultura judiciária, envolvendo todos os participantes no processo, para a qual deverá contribuir decisivamente um novo modelo de processo civil, simples e flexível, despojado de injustificados formalismos e floreados adjetivos, centrado decisivamente na análise e resolução das questões essenciais ligadas ao mérito da causa. A consagração de um modelo deste tipo contribuirá decisivamente para inviabilizar e desvalorizar comportamentos processuais arcaicos, assentes na velha praxis de que as formalidades devem prevalecer sobre a substância do litígio e dificultar, condicionar ou distorcer a decisão de mérito.” [...]
Conforme se refere no Acórdão da Relação de Guimarães de 31/01/2019, no processo 3640/18.8T8VCT.G1, relatado pelo Desembargador Paulo Reis, disponível em www.dgsi.pt, “Havendo justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, ou de documentos, pode requerer-se o arrolamento deles, sendo este dependência da ação à qual interessa a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas e consiste na descrição, avaliação e depósito dos bens - cf. artigos 403º e 406º do CPC. Neste domínio, acrescentam ainda os artigos 404º e 405º do CPC, o arrolamento pode ser requerido por qualquer pessoa que tenha interesse na conservação dos bens ou dos documentos, devendo o requerente fazer prova sumária do direito relativo aos bens e dos factos em que fundamenta o receio do seu extravio ou dissipação devendo ainda, caso o direito relativo aos bens dependa de ação proposta ou a propor, convencer o Tribunal da provável procedência do pedido correspondente. O juiz ordenará as providências se adquirir a convicção de que, sem o arrolamento, o interesse do requerente corre risco sério.
Por outro lado, o artigo 409º, do CPC com a epígrafe “Arrolamentos especiais” prevê, no seu nº 3, não ser aplicável o disposto no nº 1 do artigo 403º do CPC aos arrolamentos previstos nos nºs 1 e 2 do preceito, ou seja, dispensa da necessidade de alegação e de prova do justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, ou de documentos, nos seguintes casos:
- arrolamento, requerido por qualquer dos cônjuges, de bens comuns, ou de bens próprios que estejam sob a administração do outro, como preliminar ou incidente da ação de separação judicial de pessoas e bens, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento (nº 1);
- arrolamento de bens abandonados, por estar ausente o seu titular, por estar jacente a herança, ou por outro motivo, e tornando-se necessário acautelar a perda ou deterioração (nº 2).”
Ponderando o âmbito e a finalidade de tal dispensa, esclarecem a propósito José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª Edição, Coimbra, Almedina, 2017, p. 198): «A situação de conflito que normalmente acompanha o tipo de situação em causa faz assim “presumir”, juris et de jure, o periculum in mora, quer no plano da prova, quer no da própria alegação (…), poupando, aliás, mais um motivo de discussão entre os cônjuges. Mas a dispensa não é extensível ao fumus boni juris, pelo que o cônjuge requerente tem de provar que é casado com o requerido e que há séria probabilidade de os bens a arrolar serem comuns, ou serem seus, mas estarem sob a administração do outro cônjuge (…), entendendo-se também que o requerente está igualmente dispensado de demonstrar a probabilidade da procedência da ação proposta ou a propor (…)»”.
Na situação de que trata o referido acórdão, também não se tratava de um incidente de ação de divórcio, uma vez que o matrimónio em questão havia sido dissolvido anteriormente e não tinha sido efetuada a partilha do património comum do casal, entendendo-se que o arrolamento surge como preliminar e como dependência de processo de inventário para partilha do património comum do casal, após a dissolução do casamento por divórcio.
E prossegue o citado aresto afirmando que “a questão de saber se a dispensa da verificação do requisito previsto no nº 1 do artigo 403º do CPC (periculum in mora), estatuída no artigo 409º, nº 3, CPC se aplica ao arrolamento requerido por ex-cônjuge como preliminar ou incidente de processo de inventário para partilha do património comum do casal, após a dissolução do casamento por divórcio tem sido objeto de controvérsia jurisprudencial, invocando a (ali) recorrente, no sentido da posição que defende, o Ac. do TRP de 17-11-2009 (relator: Maria Eiró) p. 2186/06.1TBVCD-A.P1, e o Ac. do TRL de 18-09-2014 (relator: Teresa Pais) p. 2170/14.1TBSXL.L1-8, ambos publicados em www.dgsi.pt (Em sentido idêntico, cf. ainda, entre outros: Ac. do T RL de 19-12-2013 (relator: Graça Amaral), p. 7669/12.1TCLRS-C.L1-7; Ac. do TRL de 10-03-2016 (relator: Ezagüy Martins), p. 169/13.4TMFUN-A-L1-2; Ac. do TRL de 28-06-2018 (relator: António Valente), p. 21568/17.7T8SNT.L1-8; todos publicados em www.dgsi.pt).
Em sentido divergente, encontramos o Ac. do TRL de 17-07-2000 (relator: Sampaio Beja) p. 070091 cujo sumário se encontra disponível em www.dgsi.pt, e o Ac. do TRP de 2-05-2005 (relator: Sousa Lameira) publicado em www.dgsi.pt.
Ora, conforme se refere no Ac. do TRE de 19-11-2015 (Relator: Bernardo Domingos; p. 1423/15.6T8STR.E1 disponível em www.dgsi.pt) “Embora o legislador tenha concebido os arrolamentos especiais previstos no art.º 409º, nº 1, do CPC, como preliminares ou incidentes das ações aí referidas, não pode deixar de se reconhecer que a finalidade última deste tipo de arrolamentos não é tanto o desfecho da ação, mas os atos subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, onde sobressai a partilha do património comum. O arrolamento não se esgota na ação de divórcio, separação ou anulação, mas mantém-se e subsiste até se mostrar efetuada a partilha, uma vez que, até lá, não obstante o divórcio decretado, permanece o perigo de dissipação e extravio dos bens”.
Em face dos argumentos antes enunciados justifica-se cabalmente a aplicação do regime especial previsto no artigo 409º do CPC ao arrolamento requerido após o trânsito em julgado da decisão que decretou o divórcio e enquanto preliminar do inventário instaurado para partilha, porquanto, nesses casos, ocorre situação igualmente merecedora de tutela especial, justificando o desvio às regras gerais na tramitação da providência, ou seja, no que se reporta à dispensabilidade de alegação e demonstração de um dos seus requisitos: o justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens (Cf. Ac. do TRL de 18-09-2014 antes citado).
Acresce que, tal como se elucida no Ac. do TRL de 10-03-2016, antes citado, dir-se-á então que a norma do artigo 409º, nº 3 “sem contrariar substancialmente o princípio (…) contido” na regra geral do artigo 403º, nº 1, “a adapta a um domínio particular”.
Confrontando-nos pois, no artigo 409º, nº 3 – e diversamente do julgado na decisão recorrida – com uma regra especial, como tal passível de aplicação analógica, quando na situação nela prevista e no caso omisso exista “um núcleo fundamental (…) que exige a mesma estatuição.”, cfr. artigo 10º do Código Civil.
O que ocorre tendencialmente no arrolamento de bens por dependência de ação de divórcio…e no arrolamento de bens depois de decretado o divórcio, por dependência de inventário (especial) em consequência daquele.
A este propósito, sublinha Marco Carvalho Gonçalves (Providências Cautelares Conservatórias: Questões Práticas Atuais”, 16-03-2018), “visando o arrolamento conservar os bens comuns do casal até que se verifique a sua partilha, afigura-se que o regime previsto no art. 409º, nº 1, deve igualmente ser aplicado, por interpretação analógica e extensiva, aos casos em que o arrolamento seja requerido como preliminar ou incidente do processo de inventário subsequente à dissolução patrimonial ou pessoal do vínculo conjugal, pois que é possível presumir que, mesmo após essa dissolução, a conflituosidade entre os ex-cônjuges continuará a existir até à concretização da partilha do património comum”.
Daí que seja de sufragar o entendimento no sentido de que a dispensa da verificação do requisito previsto no nº 1 do artigo 403º do CPC (periculum in mora), estatuída no artigo 409º, nº 3, CPC é aplicável ao arrolamento requerido por ex-cônjuge como preliminar ou incidente de processo de inventário para partilha do património comum do casal, após a dissolução do casamento por divórcio.”
*III. [Comentário] O acórdão decidiu bem.
Menos conseguida é a tentativa ensaiada no acórdão de demonstrar que o disposto no art. 409.º, n.º 3, CPC quanto à dispensa do requisito do periculum in mora é uma norma especial (e não uma norma excepcional).
O estabelecido naquele preceito só pode ser considerado uma norma excepcional: em regra, o arrolamento exige o justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens (art. 403.º, n.º 1, CPC); excepcionalmente (e não especialmente), esse justo receio é dispensado em certos arrolamentos.
Isto não significa que seja então necessário discutir a aplicação do art. 11.º CC. O argumento é simples: a partir do momento em que se considera -- como a RG o fez -- que o disposto no art. 409.º, n.º 2, CPC pode ser objecto de uma aplicação analógica ou -- como seria preferível -- de uma interpretação extensiva, então o estabelecido no n.º 3 daquele preceito é necessariamente aplicável a esse mais extenso âmbito de aplicação daquele n.º 2.
Se se estende o âmbito do procedimento de arrolamento especial regulado no n.º 2 do art. 409.º CPC, tem igualmente de se estender a aplicação do n.º 3 do mesmo preceito, dado que, sem a aplicação deste último número, o arrolamento não seria o especial do art. 409.º, mas antes o "geral" do art. 403.º CPC.
Em suma: se se aplica, de forma extensiva, o n.º 2 do art. 409.º CPC, não pode deixar de se aplicar também o estabelecido no seu n.º 3.
MTS