"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



28/02/2023

Jurisprudência 2022 (131)


Incidente de comunicabilidade da dívida;
convenção arbitral; sentença arbitral*


I. O sumário de RL 26/5/2022 (27175/20.0T8LSB-A.L1-8) é o seguinte:

1 - Não ter o tribunal recorrido ponderado a posição da exequente quanto à questão da inadmissibilidade do incidente de comunicabilidade, não por a exequente não se ter pronunciado, mas por essa pronúncia ter escapado aos olhos do tribunal recorrido, não constitui nulidade do despacho recorrido.

2 - A conjugação dos arts. 550º nº 2 al. a), 703º nº 1 al. a), 704º, 705º, 729º e 730º do C.P.C. leva-nos a presumir que, se o legislador quisesse excluir a dedução do incidente de comunicabilidade da dívida na execução baseada em decisão arbitral, não empregaria, no art. 741º nº 1 do C.P.C., o termo “sentença”.

3 - A admissibilidade do incidente da comunicabilidade apenas quando a dívida conste de título diverso da sentença encontra a sua razão de ser no art. 34º nº 3 do C.P.C., pelo que não está em conformidade com o espírito do legislador interpretar o termo “sentença” empregue no art. 741º nº 1 do C.P.C. como abrangendo a decisão arbitral.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Nos termos do art. 741º nº 1 do C.P.C., “movida execução apenas contra um dos cônjuges, o exequente pode alegar fundamentadamente que a dívida, constante de título diverso de sentença, é comum; a alegação pode ter lugar no requerimento executivo ou até ao início das diligências para venda ou adjudicação, devendo, neste caso, constar de requerimento autónomo, deduzido nos termos dos artigos 293º a 295º e autuado por apenso”.

O art. 9º do C.C. dispõe o seguinte:

1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

Comecemos por analisar o termo “sentença” empregue no art. 741º nº 1 do C.P.C.

Nos termos do art. 703º nº 1 do C.P.C., “à execução apenas podem servir de base:

a) as sentenças condenatórias;
b) os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação;
c) os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo;
d) os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva”.

Aos requisitos da exequibilidade da sentença se refere o art. 704º do C.P.C.

Conforme resulta do disposto no art. 705º do C.P.C., “são equiparados às sentenças, sob o ponto de vista da força executiva, os despachos e quaisquer outras decisões ou atos da autoridade judicial que condenem no cumprimento duma obrigação”; e “as decisões proferidas pelo tribunal arbitral são exequíveis nos mesmos termos em que o são as decisões dos tribunais comuns”.

A equiparação das decisões arbitrais às decisões dos tribunais comuns estabelecida no art. 705º do C.P.C. é quanto à sua exequibilidade.

Por força do art. 550º nº 2 al. a) do C.P.C., “emprega-se o processo sumário nas execuções baseadas em decisão arbitral ou judicial nos casos em que esta não deva ser executada no próprio processo”.

O art. 729º do C.P.C. enuncia os fundamentos de oposição à execução baseada em sentença e, por sua vez, o art. 730º do C.P.C. enuncia os fundamentos de oposição à execução baseada em decisão arbitral.

A conjugação destas normas leva-nos a presumir que, se o legislador quisesse excluir a dedução do incidente de comunicabilidade da dívida na execução baseada em decisão arbitral, não empregaria, no art. 741º nº 1 do C.P.C., o termo “sentença”.

A admissibilidade do incidente da comunicabilidade apenas quando a dívida conste de título diverso da sentença encontra a sua razão de ser no art. 34º nº 3 do C.P.C., segundo o qual “devem ser propostas contra ambos os cônjuges… as ações emergentes de facto praticado por um deles, mas em que pretenda obter-se decisão suscetível de ser executada sobre bens próprios do outro”.

A questão da comunicabilidade da dívida não pode ser discutida na execução baseada em sentença, porque era na ação declarativa que essa questão deveria ter ficado definida.

Nos termos do art. 36º nº 1 da Lei da Arbitragem Voluntária, “só podem ser admitidos a intervir num processo arbitral em curso terceiros vinculados pela convenção de arbitragem em que aquele se baseia, quer o estejam desde a respetiva conclusão, quer tenham aderido a ela subsequentemente. Esta adesão carece do consentimento de todas as partes na convenção de arbitragem e pode ser feita só para os efeitos da arbitragem em causa.”

Há, sem dúvida alguma, diferenças entre a ação declarativa e o processo arbitral.

Não está, pois, em conformidade com o espírito do legislador, interpretar o termo “sentença” empregue no art. 741º nº 1 do C.P.C. como abrangendo a decisão arbitral."

*III. [Comentário] A RL decidiu bem, mas importa deixar uma nota.

No caso concreto, pode dizer-se que a expressão "sentença" que consta do art. 741.º, n.º 1, CPC não abrange a sentença arbitral, porque nesse caso, atendendo às partes da convenção de arbitragem, o processo arbitral só podia ter sido proposto contra um dos cônjuges. Se esta condição não se verificar, nada impede que aquele termo "sentença" possa abranger igualmente a sentença arbitral.

MTS

27/02/2023

Informação (293)

 


(1929-1983)


No próximo Domingo, dia 5 de Março, perfazem-se 40 anos sobre a morte do Prof. Castro Mendes.

Um grupo de Professores da Faculdade de Direito de Lisboa tomou a iniciativa de, pelas 11 h e 30 m desse dia, colocar uma coroa de flores junto da placa toponímica da Rua Prof. João de Castro Mendes, situada na zona de Telheiras em Lisboa.

A iniciativa está aberta a quem queira homenagear a memória do Prof. Castro Mendes.


Jurisprudência 2022 (130)


Sentença; 
nulidade


I. O sumário de RG 26/5/2022 (2231/21.0T8VRL.G1) é o seguinte:

1 - A autoridade de caso julgado implica uma aceitação de uma decisão proferida numa ação anterior, decisão esta que se insere, quanto ao seu objeto, no objeto da segunda ação, enquanto questão prejudicial, constituindo, assim, uma vinculação à decisão de distinto objeto posterior. Ao abrigo da autoridade do caso julgado não é admissível a repetição de uma causa, não pode ser novamente apreciada a mesma questão, estando o tribunal vinculado à primeira decisão.

2 – As nulidades da sentença são as previstas no artigo 615.º do CPC, não podendo peticionar-se a nulidade de uma sentença e/ou de um acórdão de tribunal superior com base na nulidade dos negócios jurídicos prevista no artigo 280.º do CC.

3 – A sentença transitada em julgada só pode ser objeto de revisão com os fundamentos do recurso de revisão previstos no artigo 696.º do CPC.

4 – A litigância de má-fé é um instituto que visa acautelar um interesse público de respeito pelo processo, pelo tribunal e pela justiça, destinando-se a assegurar a moralidade e eficácia processual, com reforço da soberania dos tribunais, respeito pelas suas decisões e prestígio da justiça.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Independentemente do que fica dito sobre a autoridade do caso julgado, que implica a impossibilidade de conhecer o pedido formulado nesta ação, sempre se dirá, ainda, o seguinte, quanto à pedida nulidade das decisões judiciais proferidas no processo n.º 309/19.0T8VRL:

Aduz a apelante que as sentenças são actos jurídicos e que aos actos jurídicos que não sejam negócios jurídicos, se aplicam as disposições dos negócios jurídicos, pelo que tais sentenças/acórdãos seriam nulos por o seu objeto ser física ou legalmente impossível e contrário à lei – artigos 280.º e 295.º do Código Civil.

Em primeiro lugar, deve dizer-se que não se vê como o objeto da sentença que conferiu o direito de preferência à ré possa considerar-se física ou legalmente impossível ou contrário à lei, considerando que o distrate só foi efetuado após ter sido proferida a decisão em 1.ª instância e que, este distrate, como já vimos, é inoponível à ré, nos termos do artigo 1410.º, n.º 2 do CC.

Por outro lado, o artigo 295.º do CC estabelece que são aplicáveis aos actos jurídicos que não sejam negócios jurídicos, as disposições dos artigos relativos aos negócios jurídicos “na medida em que a analogia das situações o justifique”, tendo-se em mente, claramente, as relações entre privados (veja-se os exemplos fornecidos por Antunes Varela e Pires de Lima, in CC Anotado, vol. I, pág. 270, em anotação a este artigo.

Ora, para as sentenças está previsto expressamente um regime próprio de nulidades – as enumeradas no artigo 615.º do Código de Processo Civil – e quanto às decisões transitadas em julgado, apenas é possível revê-las nos termos constantes do disposto no artigo 696.º e seguintes do CPC relativos ao recurso de revisão.

Assim, claramente, que não é aplicável às decisões judiciais o disposto no artigo 280.º do CC, quanto à nulidade do negócio jurídico e ao seu efeito retroactivo, improcedendo, também aqui, a pretensão da apelante."

[MTS]


25/02/2023

Bibliografia (1060)


-- Paulo Otero, Da dimensão constitucional dos acordos de financiamento (“litigation funding agreements”) de ações populares indemnizatórias: um problema de abuso de direitos fundamentais, ROA 82 (2022), 701


24/02/2023

Jurisprudência 2022 (129)


Fixação judicial de prazo;
inutilidade superveniente da lide*


1. O sumário de RG 26/5/2022 (1512/21.8T8FNC.G1) é o seguinte;

I - O processo especial de fixação judicial do prazo, a que se reportam os artigos 1026º e 1027º, ambos do Código de Processo Civil, é um processo de jurisdição voluntária que visa unicamente a fixação de prazo, não cabendo no seu âmbito a discussão de questões de cariz contencioso atinentes à obrigação, designadamente relativas ao conteúdo, interpretação e exigibilidade.

II - O pedido formulado na ação é o da fixação do prazo e a causa de pedir a inexistência do mesmo ou o não acordo entre devedor o credor quanto ao momento do vencimento da obrigação.

III - Não se justifica, por inútil, a fixação judicial do prazo para cumprimento de obrigação a quem não reconheça a sua existência e se recuse, por consequência, a cumpri-la.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Conforme resulta do disposto no artigo 406° do Código Civil os contratos devem ser pontualmente cumpridos, sendo que o devedor só cumpre a obrigação, quando realiza a prestação a que está vinculado (cfr. artigo 762º do mesmo diploma).

Considerando o regime geral previsto para o incumprimento dos contratos (artigos 801º e seguintes do Código Civil) há uma distinção capital a estabelecer, consoante a prestação se atrasa ou se torna definitivamente impossível.

Na primeira hipótese, de mora, chegado o vencimento o devedor não cumpre mas a prestação poderá ainda ser realizada com interesse para o credor, podendo vir a executá-la mais tarde (a prestação continua a ser materialmente possível e o credor continua a ter interesse nela); já na segunda hipótese, a prestação impossibilita-se de vez, tornando-se, em definitivo, irrealizável, seja quando a prestação, sendo inicialmente realizável, se impossibilita subsequentemente, em termos definitivos, ficando o devedor impedido de cumprir a prestação, seja nos casos em que a prestação, em consequência do retardamento, deixa de ter utilidade para o credor.

De acordo com o disposto no artigo 801, n.ºs 1 e 2 do Código Civil tornando-se impossível a prestação por causa imputável ao devedor e tendo a obrigação por fonte um contrato bilateral, o credor pode resolver o contrato.

O caráter definitivo do incumprimento da obrigação ocorre quando: a) em consequência de mora do devedor, o credor perder o interesse na prestação; b) se, estando o devedor em mora, o credor lhe fixar um prazo razoável para cumprir e, apesar disso, aquele não realizar a prestação em falta; c) se o devedor declarar inequívoca e perentoriamente ao credor que não cumprirá a obrigação.

Pode assim afirmar-se que o incumprimento definitivo abrange os casos de impossibilidade da prestação, quer quando esta se torna absolutamente inviável, quando a probabilidade da sua realização se torna extremamente improvável (por não depender exclusivamente da vontade do devedor) ou mesmo quando o devedor manifesta perante o credor o propósito de não cumprir.

O incumprimento definitivo, na falta de cláusula resolutiva ou prazo essencial, traduz-se na perda do interesse objetivo do credor, em consequência da mora do devedor, na recusa deste em cumprir a obrigação, ou no decurso do prazo admonitório, situações que permitem à contraparte o direito de resolver o contrato (cfr. artigo 808º do Código Civil; v. ainda Acórdão da Relação do Porto de 18/12/2018, Processo n.º 4070/17.4T8VNG.P1, disponível em www.dgsi.pt).

Assim, entendendo-se como incumprimento definitivo a recusa de cumprimento, nela se incluindo não só a declaração de não querer cumprir, como, em geral, todo o comportamento do devedor suscetível de indicar que não quer ou não pode cumprir, é de concluir que para a Recorrente poder instaurar a ação de processo comum, na qual será eventualmente discutida e decidida a questão substantiva da caducidade do direito de opção, não carece da fixação de prazo para que a Ré incorra em mora e nem de transformar a mora em incumprimento definitivo (designadamente através da interpelação admonitória) pois a própria Ré veio afirmar que não irá outorgar a escritura pública, não estando para tal disponível.

A questão que aqui se coloca é exatamente a de saber se perante a posição da Ré, que negou a existência da obrigação (por ter caducado o direito da Autora) e manifestou a intenção de recusa em cumpri-la, por não ir realizar a escritura pública, ainda assim se justifica a fixação de prazo para cumprimento da obrigação, remetendo para a posterior ação comum de incumprimento o conhecimento da apreciação efetiva da existência da obrigação.

Ora, a resposta a esta questão terá de ser necessariamente negativa.

Entendemos não se justificar, por ser inútil, a fixação judicial de prazo para o cumprimento de obrigação a quem não reconheça a sua existência e se recuse, por consequência, a cumpri-la, pois nestes casos a estipulação de tal prazo não é essencial para eventual apreciação de uma situação de mora e subsequente incumprimento definitivo da obrigação, caso esta venha a ser julgada existente e válida, visto que o devedor considera, desde logo, não ter qualquer intenção em cumprir a obrigação, assumindo, assim, o incumprimento definitivo.

Neste sentido se pronunciam os já citados Acórdãos da Relação de Évora de 25 de janeiro de 2018 e da Relação de Lisboa de 24 de outubro de 2017 (onde se considera que “[N]egando a R. a existência da obrigação, recusa-se, consequentemente, a cumpri-la [---], pelo que é, em todo o caso, também, defensável o entendimento de que não se justifica a fixação judicial de prazo para cumprimento da obrigação, a quem antecipadamente declarou não a cumprir”, e onde se citam os Acórdãos da Relação de Lisboa de 29/03/1984, CJ, Tomo II, pág. 119, da Relação do Porto de 16/02/1989, CJ, Tomo I, pág. 194); no mesmo sentido podemos ainda citar o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de dezembro de 2016 (Relator Oliveira Barros, disponível em www.dgsi.pt) onde se afirma que “[T]em-se, de resto, repetidamente feito notar,- e tal é o que se revela, a todas as luzes, irrecusável -, não se justificar, por inútil, a fixação judicial de prazo para o cumprimento de obrigação a quem não reconheça a sua existência e se recuse, por consequência, a cumpri-la.

Em face do exposto impõe-se concluir que, tendo a Ré negado a existência da obrigação, por entender encontrar-se caduco o direito da Autora, manifestando a intenção de recusa em cumpri-la, por não ir realizar a escritura pública, se mostra efetivamente inútil a fixação judicial do prazo para cumprimento da obrigação.

Não merece, por isso, censura a sentença recorrida que julgou verificada a inutilidade da presente lide, improcedendo integralmente o recurso.

As custas deste recurso são da responsabilidade da Recorrente (artigo 527º do Código de Processo Civil) em face do seu integral decaimento.


*3. [Comentário] a) Salvo o devido respeito, não se pode acompanhar a posição da RG (nem, portanto, a da anterior jurisprudência que se pronunciou no mesmo sentido).

O autor requereu que o tribunal fixasse um prazo para o cumprimento de uma obrigação.  Depois disso, conforme informa o acórdão,  

"A Ré, em sede de contestação veio invocar a caducidade do direito invocado pela Autora e, consequentemente, a inexistência de qualquer obrigação da sua parte, afirmando expressamente não estar disponível para outorgar a escritura de compra e venda, considerando inútil a fixação de prazo para a mesma".

A verdade é que a manifestação pelo réu de que jamais se dispõe a cumprir a obrigação nunca pode ser fundamento para a não fixação do prazo pelo tribunal. Se assim fosse, estaria descoberta a via não só para evitar qualquer fixação de todo e qualquer prazo, mas também para impossibilitar que o credor pudesse utilizar contra o devedor um prazo judicialmente fixado: bastaria que o réu dissesse que não tem a mínima intenção de cumprir a obrigação.

Até pode ser que o réu o diga. O que não pode suceder é que isso constitua fundamento para não se fixar o prazo requerido pelo autor.

b) 
Recorde-se a configuração da inutilidade superveniente da lide (art. 277.º, al. e), CPC): esta inutilidade ocorre quando a acção era útil no momento da sua propositura e, pela ocorrência de um facto superveniente durante a sua pendência, se torna inútil. 

A intenção de não cumprir a obrigação manifestada pelo réu na sua contestação não pode valer certamente como um facto que torna inútil o que até aí era útil. Pela mesma lógica, haveria que concluir que qualquer facto alegado pelo réu na contestação seria um facto superveniente e, mais em particular, que, numa acção para cobrança de dívida, a manifestação pelo réu de que jamais a pretende pagar constituiria fundamento para a inutilidade superveniente da lide. Parece seguro que a negação da dívida pelo do réu (e mais ainda a alegação da intenção de jamais a vir a cumprir) nunca pode ser considerada um facto superveniente. 

In casu, a haver qualquer inutilidade da fixação do prazo, ela nunca poderia ser superveniente, dado que entre o momento da instauração do processo e o momento da sua decisão não ocorreu nenhum facto que a tivesse tornado inútil. Como se disse, a alegação pelo réu de que não tenciona cumprir a dívida jamais pode ser considerada um facto superveniente.

 c) Por fim, no seu acórdão a RG afirma o seguinte:

"Com a fixação do prazo o tribunal não decide da existência, validade, exigibilidade ou obrigação de o cumprir, pois neste processo especial não está em causa a discussão de questões substantivas relativas ao negócio cujo prazo se pretende fixar (designadamente de vícios referentes à inexistência, nulidade, prescrição ou caducidade da obrigação), as quais devem ser decididas no âmbito da ação comum."

Com a devida consideração, não se compreende como é que, depois desta afirmação, se entende dar relevância à caducidade alegada pela ré e se conclui pela inutilidade superveniente da lide.

MTS


23/02/2023

Jurisprudência 2022 (128)


Arrolamento;
processo de inventário*


I. O sumário de RG 26/5/2022 (323/11.3TMBRG-A.G1) é o seguinte:

1) A circunstância de se afirmar que o arrolamento é intentado como incidente de divórcio, que já se encontrava proferido por sentença, transitada em julgado, nessa ocasião, não é impeditivo que se considere que o mesmo é preliminar do processo de inventário para partilha dos bens do casal;

2) O arrolamento não se esgota na ação de divórcio, separação ou anulação, mas mantém-se e subsiste até se mostrar efetuada a partilha, uma vez que, até lá, não obstante o divórcio decretado, permanece o perigo de dissipação e extravio dos bens;

3) Justifica-se a aplicação do regime especial previsto no artigo 409º do NCPC ao arrolamento requerido após o trânsito em julgado da decisão que decretou o divórcio, como preliminar do inventário instaurado para partilha, porquanto, nesses casos, ocorre situação igualmente merecedora de tutela especial, justificando o desvio às regras gerais na tramitação da providência, no que se refere à dispensa de alegação e demonstração de um dos seus requisitos: o justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens.


II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A requerente veio intentar procedimento cautelar de arrolamento contra a requerida, em 16/12/2021, como incidente da ação de divórcio sem consentimento, sendo certo que requerente e requerido se divorciaram em 2012.

Verdadeiramente não se pode conceber que se considere como incidente da ação de divórcio um arrolamento que é intentado decorridos mais de nove anos após terminar aquela ação, uma vez que, finda a ação, o procedimento deixa de ser incidente daquela ação, podendo sê-lo de outra a intentar ou já intentada, mas não finda.

De resto, mal se compreenderia que uma providência cautelar, que é provisória, porque se destina a durar até à prolação de uma decisão definitiva, lhe pudesse sobreviver. [...]

O tribunal a quo entendeu – e bem – que no caso dos autos não estamos perante um incidente da ação de divórcio, tendo em conta que o casamento entre requerente e requerido foi dissolvido em junho de 2012, pelo que entendeu que o arrolamento em questão surge como preliminar e dependência do processo de inventário para partilha do património comum do casal.

A questão é a de saber se podia fazê-lo.

O apelante entende que não dado que o arrolamento foi instaurado como incidente da ação de divórcio, e uma vez que a ação já havia terminado em 2012, o arrolamento era originalmente inútil e deveria ter sido julgado improcedente e não ficcionar que era, afinal, preliminar de uma outra ação judicial – de inventário – distinta da ação de divórcio.

Entende o apelante que, ainda que assim não se entendesse, não estamos perante nenhuma das hipóteses previstas no artigo 409º NCPC, dado que a norma em questão tem natureza excecional, pelo que não é suscetível de aplicação analógica.

Vejamos.

Quanto à alegada inutilidade original do arrolamento que deveria determinar a sua improcedência, importa notar que na Exposição de Motivos constante da Proposta de Lei nº 113/XII se refere que “São implementadas medidas de simplificação processual e de reforço dos instrumentos de defesa contra o exercício de faculdades dilatórias.

A celeridade processual, indispensável à legitimação dos tribunais perante a comunidade e instrumento indispensável à realização de uma das fundamentais dimensões do direito fundamental de acesso à justiça, passa necessariamente por uma nova cultura judiciária, envolvendo todos os participantes no processo, para a qual deverá contribuir decisivamente um novo modelo de processo civil, simples e flexível, despojado de injustificados formalismos e floreados adjetivos, centrado decisivamente na análise e resolução das questões essenciais ligadas ao mérito da causa. A consagração de um modelo deste tipo contribuirá decisivamente para inviabilizar e desvalorizar comportamentos processuais arcaicos, assentes na velha praxis de que as formalidades devem prevalecer sobre a substância do litígio e dificultar, condicionar ou distorcer a decisão de mérito.
” [...]

Conforme se refere no Acórdão da Relação de Guimarães de 31/01/2019, no processo 3640/18.8T8VCT.G1, relatado pelo Desembargador Paulo Reis, disponível em www.dgsi.pt, “Havendo justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, ou de documentos, pode requerer-se o arrolamento deles, sendo este dependência da ação à qual interessa a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas e consiste na descrição, avaliação e depósito dos bens - cf. artigos 403º e 406º do CPC. Neste domínio, acrescentam ainda os artigos 404º e 405º do CPC, o arrolamento pode ser requerido por qualquer pessoa que tenha interesse na conservação dos bens ou dos documentos, devendo o requerente fazer prova sumária do direito relativo aos bens e dos factos em que fundamenta o receio do seu extravio ou dissipação devendo ainda, caso o direito relativo aos bens dependa de ação proposta ou a propor, convencer o Tribunal da provável procedência do pedido correspondente. O juiz ordenará as providências se adquirir a convicção de que, sem o arrolamento, o interesse do requerente corre risco sério.

Por outro lado, o artigo 409º, do CPC com a epígrafe “
Arrolamentos especiais” prevê, no seu nº 3, não ser aplicável o disposto no nº 1 do artigo 403º do CPC aos arrolamentos previstos nos nºs 1 e 2 do preceito, ou seja, dispensa da necessidade de alegação e de prova do justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, ou de documentos, nos seguintes casos:

- arrolamento, requerido por qualquer dos cônjuges, de bens comuns, ou de bens próprios que estejam sob a administração do outro, como preliminar ou incidente da ação de separação judicial de pessoas e bens, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento (nº 1);
 
- arrolamento de bens abandonados, por estar ausente o seu titular, por estar jacente a herança, ou por outro motivo, e tornando-se necessário acautelar a perda ou deterioração (nº 2).”

Ponderando o âmbito e a finalidade de tal dispensa, esclarecem a propósito José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª Edição, Coimbra, Almedina, 2017, p. 198): «A situação de conflito que normalmente acompanha o tipo de situação em causa faz assim “presumir”, juris et de jure, o periculum in mora, quer no plano da prova, quer no da própria alegação (…), poupando, aliás, mais um motivo de discussão entre os cônjuges. Mas a dispensa não é extensível ao fumus boni juris, pelo que o cônjuge requerente tem de provar que é casado com o requerido e que há séria probabilidade de os bens a arrolar serem comuns, ou serem seus, mas estarem sob a administração do outro cônjuge (…), entendendo-se também que o requerente está igualmente dispensado de demonstrar a probabilidade da procedência da ação proposta ou a propor (…)»”.

Na situação de que trata o referido acórdão, também não se tratava de um incidente de ação de divórcio, uma vez que o matrimónio em questão havia sido dissolvido anteriormente e não tinha sido efetuada a partilha do património comum do casal, entendendo-se que o arrolamento surge como preliminar e como dependência de processo de inventário para partilha do património comum do casal, após a dissolução do casamento por divórcio.

E prossegue o citado aresto afirmando que “a questão de saber se a dispensa da verificação do requisito previsto no nº 1 do artigo 403º do CPC (periculum in mora), estatuída no artigo 409º, nº 3, CPC se aplica ao arrolamento requerido por ex-cônjuge como preliminar ou incidente de processo de inventário para partilha do património comum do casal, após a dissolução do casamento por divórcio tem sido objeto de controvérsia jurisprudencial, invocando a (ali) recorrente, no sentido da posição que defende, o Ac. do TRP de 17-11-2009 (relator: Maria Eiró) p. 2186/06.1TBVCD-A.P1, e o Ac. do TRL de 18-09-2014 (relator: Teresa Pais) p. 2170/14.1TBSXL.L1-8, ambos publicados em www.dgsi.pt (Em sentido idêntico, cf. ainda, entre outros: Ac. do T RL de 19-12-2013 (relator: Graça Amaral), p. 7669/12.1TCLRS-C.L1-7; Ac. do TRL de 10-03-2016 (relator: Ezagüy Martins), p. 169/13.4TMFUN-A-L1-2; Ac. do TRL de 28-06-2018 (relator: António Valente), p. 21568/17.7T8SNT.L1-8; todos publicados em www.dgsi.pt).

Em sentido divergente, encontramos o Ac. do TRL de 17-07-2000 (relator: Sampaio Beja) p. 070091 cujo sumário se encontra disponível em www.dgsi.pt, e o Ac. do TRP de 2-05-2005 (relator: Sousa Lameira) publicado em www.dgsi.pt.

Ora, conforme se refere no Ac. do TRE de 19-11-2015 (Relator: Bernardo Domingos; p. 1423/15.6T8STR.E1 disponível em www.dgsi.pt) “Embora o legislador tenha concebido os arrolamentos especiais previstos no art.º 409º, nº 1, do CPC, como preliminares ou incidentes das ações aí referidas, não pode deixar de se reconhecer que a finalidade última deste tipo de arrolamentos não é tanto o desfecho da ação, mas os atos subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, onde sobressai a partilha do património comum. O arrolamento não se esgota na ação de divórcio, separação ou anulação, mas mantém-se e subsiste até se mostrar efetuada a partilha, uma vez que, até lá, não obstante o divórcio decretado, permanece o perigo de dissipação e extravio dos bens”.

Em face dos argumentos antes enunciados justifica-se cabalmente a aplicação do regime especial previsto no artigo 409º do CPC ao arrolamento requerido após o trânsito em julgado da decisão que decretou o divórcio e enquanto preliminar do inventário instaurado para partilha, porquanto, nesses casos, ocorre situação igualmente merecedora de tutela especial, justificando o desvio às regras gerais na tramitação da providência, ou seja, no que se reporta à dispensabilidade de alegação e demonstração de um dos seus requisitos: o justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens (Cf. Ac. do TRL de 18-09-2014 antes citado).

Acresce que, tal como se elucida no Ac. do TRL de 10-03-2016, antes citado, dir-se-á então que a norma do artigo 409º, nº 3 “sem contrariar substancialmente o princípio (…) contido” na regra geral do artigo 403º, nº 1, “a adapta a um domínio particular”.

Confrontando-nos pois, no artigo 409º, nº 3 – e diversamente do julgado na decisão recorrida – com uma regra especial, como tal passível de aplicação analógica, quando na situação nela prevista e no caso omisso exista “um núcleo fundamental (…) que exige a mesma estatuição.”, cfr. artigo 10º do Código Civil.

O que ocorre tendencialmente no arrolamento de bens por dependência de ação de divórcio…e no arrolamento de bens depois de decretado o divórcio, por dependência de inventário (especial) em consequência daquele.

A este propósito, sublinha Marco Carvalho Gonçalves (Providências Cautelares Conservatórias: Questões Práticas Atuais”, 16-03-2018), “visando o arrolamento conservar os bens comuns do casal até que se verifique a sua partilha, afigura-se que o regime previsto no art. 409º, nº 1, deve igualmente ser aplicado, por interpretação analógica e extensiva, aos casos em que o arrolamento seja requerido como preliminar ou incidente do processo de inventário subsequente à dissolução patrimonial ou pessoal do vínculo conjugal, pois que é possível presumir que, mesmo após essa dissolução, a conflituosidade entre os ex-cônjuges continuará a existir até à concretização da partilha do património comum”.

Daí que seja de sufragar o entendimento no sentido de que a dispensa da verificação do requisito previsto no nº 1 do artigo 403º do CPC (periculum in mora), estatuída no artigo 409º, nº 3, CPC é aplicável ao arrolamento requerido por ex-cônjuge como preliminar ou incidente de processo de inventário para partilha do património comum do casal, após a dissolução do casamento por divórcio.”

*III. [Comentário] O acórdão decidiu bem.

Menos conseguida é a tentativa ensaiada no acórdão de demonstrar que o disposto no art. 409.º, n.º 3, CPC quanto à dispensa do requisito do periculum in mora é uma norma especial (e não uma norma excepcional).

O estabelecido naquele preceito só pode ser considerado uma norma excepcional: em regra, o arrolamento exige o justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens (art. 403.º, n.º 1, CPC); excepcionalmente (e não especialmente), esse justo receio é dispensado em certos arrolamentos.

Isto não significa que seja então necessário discutir a aplicação do art. 11.º CC. O argumento é simples: a partir do momento em que se considera -- como a RG o fez -- que o disposto no art. 409.º, n.º 2, CPC pode ser objecto de uma aplicação analógica ou -- como seria preferível -- de uma interpretação extensiva, então o estabelecido no n.º 3 daquele preceito é necessariamente aplicável a esse mais extenso âmbito de aplicação daquele n.º 2.

Se se estende o âmbito do procedimento de arrolamento especial regulado no n.º 2 do art. 409.º CPC, tem igualmente de se estender a aplicação do n.º 3 do mesmo preceito, dado que, sem a aplicação deste último número, o arrolamento não seria o especial do art. 409.º, mas antes o "geral" do art. 403.º CPC. 

Em suma: se se aplica, de forma extensiva, o n.º 2 do art. 409.º CPC, não pode deixar de se aplicar também o estabelecido no seu n.º 3.

MTS


22/02/2023

Jurisprudência europeia (TJ) (277)


Renvoi préjudiciel – Procédure préjudicielle d’urgence – Espace de liberté, de sécurité et de justice – Coopération judiciaire en matière civile – Compétence, reconnaissance et exécution des décisions en matière matrimoniale et en matière de responsabilité parentale – Enlèvement international d’enfants – Convention de La Haye de 1980 – Règlement (CE) no 2201/2003 – Article 11 – Demande de retour d’un enfant – Décision définitive ordonnant le retour d’un enfant – Législation d’un État membre prévoyant le sursis à l’exécution de cette décision intervenant de plein droit en cas de demande introduite par certaines autorités nationales


TJ 16/2/2023 (638/22 PPU, T.C. et al.) concluiu o seguinte:

L’article 11, paragraphe 3, du règlement (CE) no 2201/2003 du Conseil, du 27 novembre 2003, relatif à la compétence, la reconnaissance et l'exécution des décisions en matière matrimoniale et en matière de responsabilité parentale abrogeant le règlement (CE) no 1347/2000, lu à la lumière de l’article 47 de la charte des droits fondamentaux de l’Union européenne,

doit être interprété en ce sens que:

il s’oppose à une législation nationale conférant à des autorités n’ayant pas la qualité de juridiction la faculté d’obtenir la suspension de plein droit, pendant une durée d’au moins deux mois, de l’exécution d’une décision de retour rendue sur la base de la convention sur les aspects civils de l’enlèvement international d’enfants, conclue à La Haye le 25 octobre 1980, sans devoir motiver leur demande de suspension.


 

Valor da causa - relevância da sua fixação



Para aceder ao texto clicar em Urbano A. Lopes Dias


Jurisprudência 2022 (127)


Reg. 1215/2012;
medidas provisórias; competência internacional


I. O sumário de RG 2/6/2022 (314/21.6T8BRG-A.G1) é o seguinte:

O art. 35.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, estabelece que as medidas provisórias, incluindo as medidas cautelares, previstas na lei de um Estado-Membro, podem ser requeridas às autoridades judiciais desse Estado-Membro, mesmo que os tribunais de outro Estado-Membro sejam competentes para conhecer do mérito da causa.O pressuposto é uma conexão entre os processos e os Estados-Membros e, por outro lado, que uma medida provisória determinada por um tribunal dum Estado-Membro que não seja competente para conhecer do mérito da causa apenas produz efeitos no território desse Estado-Membro, o que afasta a possibilidade de, nessas circunstâncias, ser determinada a aplicação duma medida provisória que seja executada ou produza os seus efeitos noutro Estado-Membro.

Os tribunais portugueses não são internacionalmente competentes para determinar que a requerida proceda a título provisório à regularização e manutenção do seguro de doença Techniker Krankenkasse (TKK) - Segurança Social Alemã adstrito ao contrato de trabalho que foi celebrado com o requerente, posto que esta medida não tem qualquer elemento de conexão com o território do Estado Português, designadamente porque a sua execução se efectiva necessariamente na Alemanha.

O direito constitucional de acesso ao direito e aos tribunais mostra-se assegurado através do tribunal alemão que internamente tenha competência para a questão, nos precisos termos estabelecidos pelo Regulamento em referência ex vi art. 8.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"[...] o art. 35.º do Regulamento estabelece que as medidas provisórias, incluindo as medidas cautelares, previstas na lei de um Estado-Membro, podem ser requeridas às autoridades judiciais desse Estado-Membro, mesmo que os tribunais de outro Estado-Membro sejam competentes para conhecer do mérito da causa.

Como se refere na decisão recorrida, a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia tem sublinhado que, nos termos do Regulamento, a competência dos tribunais dum Estado-Membro para determinar a aplicação duma medida provisória depende da existência de um elemento de conexão entre o objecto da medida pretendida e o território desse Estado-Membro.

De outra forma, permitir-se-ia que as medidas provisórias fossem requeridas em qualquer Estado-Membro escolhido livremente pelo requerente, o que é precisamente o inverso do visado pelo Regulamento com a regra de que as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas nos tribunais desse Estado-Membro e as excepções decorrem de critérios aí previstos de forma taxativa.

A este propósito, é bem claro o considerando (16) do Regulamento ao referir que «o foro do domicílio do requerido deve ser completado pelos foros alternativos permitidos em razão do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio ou com vista a facilitar uma boa administração da justiça.»

Por outro lado, o Regulamento assegura, nos termos do seu Capítulo III, que as decisões proferidas num Estado-Membro são reconhecidas e eficazes nos outros Estados-Membros sem quaisquer formalidades, porém, de acordo com o art. 2.º, alínea a) do mesmo diploma, para esse efeito o termo «decisão» abrange apenas as medidas provisórias, incluindo as medidas cautelares, decididas por um tribunal que, por força do Regulamento, é competente para conhecer do mérito da causa.

Em suma, ainda na senda da decisão recorrida, o art. 35.º do Regulamento é uma válvula de escape que, atendendo a uma situação de urgência, permite que os tribunais de um Estado-Membro que não são competentes para conhecer do mérito da causa determinem a aplicação duma medida provisória que possa ser eficaz apenas no seu território.

Assim, se o requerente pretende uma medida provisória que seja eficaz em todos os Estados-Membros, deve requerer a sua aplicação nos tribunais do Estado-Membro que são competentes para conhecer do mérito da causa; se considera suficiente uma medida provisória cuja eficácia se restringe ao território de um Estado-Membro, pode requerer a sua aplicação nesse Estado-Membro.

Esta interpretação radica ainda nos considerandos do Regulamento: no (13) afirma-se que «deverá haver uma ligação entre os processos a que o presente regulamento se aplica e o território dos Estados-Membros»; no (33) que, «se medidas provisórias, incluindo medidas cautelares, forem decididas por um tribunal competente para conhecer do mérito da causa, a sua livre circulação deverá ser garantida nos termos do presente regulamento. (…) Se medidas provisórias, incluindo medidas cautelares, forem decididas por um tribunal de um Estado-Membro que não seja competente para conhecer do mérito da causa, os seus efeitos deverão confinar-se, nos termos do presente regulamento, ao território desse Estado-Membro.»

O pressuposto é, assim, uma conexão entre os processos e os Estados-Membros e, por outro lado, que uma medida provisória determinada por um tribunal dum Estado-Membro que não seja competente para conhecer do mérito da causa apenas produz efeitos no território desse Estado-Membro, o que afasta a possibilidade de, nessas circunstâncias, ser determinada a aplicação duma medida provisória que seja executada ou produza os seus efeitos noutro Estado-Membro.

Ora, o Apelante pretende que seja determinado à Requerida que a título provisório proceda à regularização e manutenção do seguro de doença Techniker Krankenkasse (TKK) - Segurança Social Alemã adstrito ao contrato de trabalho que foi celebrado, recolocando-o na condição de beneficiário para acesso imediato aos cuidados de saúde.

O objecto desta medida não tem qualquer elemento de conexão com o território do Estado Português, designadamente porque a sua execução se efectiva necessariamente na Alemanha, logo, a mesma não pode ser determinada por um tribunal português com fundamento no art. 35.º do Regulamento.

Em face do exposto, também por esta via se conclui que o Juízo do Trabalho de Braga não é internacionalmente competente para decretar a medida cautelar e provisória requerida, sendo certo, todavia, que se mostra assegurado o direito constitucional de acesso ao direito e aos tribunais através do tribunal alemão que internamente tenha competência para a questão, nos precisos termos estabelecidos pelo Regulamento em referência ex vi art. 8.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa."

[MTS]

 

21/02/2023

Jurisprudência 2022 (126)


Procedimento de injunção;
litisconsórcio subsidiário*


1. O sumário de RC 17/5/2022 (15167/21.6YIPRT.C1) é o seguinte:

I - Um Centro Hospitalar integrado no SNS pode recorrer a injunção apenas contra a Seguradora do veículo que provocou o acidente ou, em pluralidade subjectiva subsidiária, contra o FGA e lesante condutor desse veículo, para cobrar as despesas que suportou na assistência ao lesado, não havendo qualquer erro na forma de processo ao fazê-lo.

II - A complexidade das questões controvertidas não obsta ao procedimento especial de injunção.

II[I] - Pode ser deduzido pedido subsidiário em procedimento especial de injunção.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"O art. 1º do DL 218/19[99] (que estabelece o regime de cobrança de dívidas pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde), onde se estatui que:

1 - O presente diploma estabelece o regime de cobrança de dívidas pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde em virtude dos cuidados de saúde prestados.

2 - Para efeitos do presente diploma, a realização das prestações de saúde consideram-se feitas [sic] ao abrigo de um contrato de prestação de serviços, sendo aplicável o regime jurídico das injunções.

3 - Para efeitos do número anterior, o requerimento de injunção deve conter na exposição sucinta dos factos os seguintes elementos:

a) O nome do assistido;

b) Causa da assistência;

c) No caso de acidente que envolva veículos automóveis, matrícula ou número de apólice de seguro; (…)

f) Nos restantes casos em que sejam responsáveis seguradoras, deve ser indicada a apólice de seguro.

[...] Vejamos agora cada um dos 4 argumentos invocados na decisão recorrida.

A») o pedido formulado não está em consonância com o fim para o qual foi estabelecido ou criada a forma processual do processo de injunção.

Não acolhemos tal maneira de ver o litígio. O legislador no apontado art. 1º, nº 2, do DL 218/99, não só ficcionou que a realização das prestações de saúde se consideram feitas ao abrigo de um contrato de prestação de serviços, como mandou aplicar o regime jurídico das injunções.

De sorte que o pedido do recorrente se acoberta perfeitamente aos intentos legais e regime do transcrito art. 1º do DL 269/98. No mesmo sentido podem ver-se os Acds. da Relação do Porto, de 12.1.2021, Proc. 400104/20.1YIPRT, da Relação de Guimarães, de 17.9.2020, Proc. 117403/19.3YIPRT, e desta Relação de Coimbra, de 14.1.2014, Proc.13358/13.2YIPRT, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

O que determina a forma de processo a empregar é o pedido, pelo que a correção ou incorreção do meio processual empregue pelo A. afere-se em função da pretensão da tutela jurisdicional que o mesmo pretende atingir. Como é bom de ver, perante o pedido do A., e os citados artigos dos 2 mencionados DL, o pedido ajusta-se à forma do processo utilizado, pelo que inexiste o apontado erro na forma do processo. 

B») o FGA e o R. BB foram demandados com violação dos requisitos do disposto no art. 1º, nº 3, do DL 218/99. Não está certo.

Na verdade, embora o FGA e o BB não sejam seguradoras, podem ser demandados, como emana da acima referida e transcrita c), pois a lei contenta-se, em caso de acidente, com a indicação do número de apólice de seguro ou da matrícula. Ora, o A. ao demandar o FGA e BB indicou, no requerimento de injunção, a matrícula do veículo que este último conduzia. Estão reunidos, pois, os requisitos previstos no identificado diploma.

C») foram deduzidos pedidos subsidiários, o que não está previsto no procedimento de injunção. É verdade, mas não é por isso que haja barreira legal para tal dedução.

Efectivamente, o regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a 15 000 € é um procedimento especial (epígrafe do art. 1º do DL 269/98).

No art. 549º, nº 1, do NCPC, que prevê as disposições sobre o processo especial, determina-se que o mesmo se regula pelas disposições próprias, depois pelas disposições gerais e comuns e seguidamente, na falta de umas e outras, pelo estabelecido no processo comum.  

Ora, no processo comum de declaração prevê-se a possibilidade de pedidos subsidiários (art. 554º do mesmo código). E nas disposições gerais e comuns prevê-se a dedução de pedido em litisconsórcio subsidiário (art. 39º, do mesmo diploma), como é o caso dos autos. Como assim, ao invés do sustentado na decisão apelada é possível deduzir pedidos subsidiários nesse tipo de procedimento especial de que é ilustrativo o nosso caso concreto.

Pode é verificarem-se circunstâncias impeditivas da subsidiariedade dos pedidos, como a lei prevê no nº 2 do mencionado art. 554º e por arrastamento na situação do art. 39º, mas essa circunstância apenas operará no estrito âmbito da procedência de uma excepção dilatória e consequente absolvição da instância (arts. 576º, nº 2, 577º, corpo e g) e 278º, nº 1, e), do NCPC). Circunstâncias eventuais essas que podem perfeitamente ser obviadas no processo especial para cumprimento de obrigações pecuniárias referido, já que remetida a injunção á distribuição se passa a seguir, por efeito do art. 17º do Regime Anexo, o disposto nomeadamente no art. 3º da acção declarativa, podendo o juiz ao abrigo do nº 1 deste preceito, julgar logo procedente alguma excepção dilatória ou nulidade que lhe cumpra conhecer ou decidir do mérito da causa (total ou parcialmente).    

Nunca, contudo, se equiparando ou importando tais hipóteses a erro na forma do processo."

*3. [Comentário] a) Salvo o devido respeito, é muito duvidoso que a RC tenha decidido bem no que respeita à admissibilidade do litisconsórcio subsidiário no procedimento de injunção.

Na epígrafe do art. 1.º DL 269/98, de 1/9, fala-se de "procedimentos especiais". Mas estes procedimentos envolvem uma "acção declarativa" -- que é um processo -- e uma "injunção" -- que é um procedimento que não pode ser considerado um processo. É, por isso, muito discutível que se possa defender a possibilidade de aplicação ao procedimento de injunção do litisconsórcio subsidiário estabelecido no art. 39.º CPC com fundamento no disposto no art. 549.º, n.º 1, CPC, dado que este preceito regula o regime aplicável aos processos especiais (e não a procedimentos que não podem sequer ser qualificados como processos).

b) "[...] a realização [...] consideram-se feitas" que consta do art. 1.º, n.º 2, do DL 218/99, de 15/6, é uma expressão muito infeliz a vários títulos.

MTS


20/02/2023

Bibliografia (Índices de revistas) (219)


RDCiv.

-- RDCiv. 68 (2022-6)

Jurisprudência 2022 (125)


Reconhecimento de sentença estrangeira
ordem pública



1. O sumário de RL 12/5/2022 (186/22.3 YRLSB.L1.6) é o seguinte:

I) – O decree nisi de divórcio, tradicional nos regimes de matriz anglo-saxónica, precede o decree absolute e significa que o tribunal não encontra impedimento à dissolução do casamento, fixando um período de reflexão ou oposição findo o qual a dissolução se efectiva, sendo patente a inteligência da decisão de divórcio que utiliza tal expressão.

II) – Inexiste na Convenção de Haia qualquer exigência quanto ao prazo de validade da apostila, limitando-se a mesma a estabelecer as condições da sua validade.

III) – Face ao artigo 984.º do CPC, a Relação deve recusar a revisão quando do exame do processo ou de conhecimento oficioso apure estar em falta o requisito da citação; se nada resulta quanto a omissão, não tendo o Requerido alegado que essa notificação não ocorreu, é irrelevante que a menção seja ou não feita na decisão.

IV) – Na apreciação da acção de revisão de sentença estrangeira importa avaliar a contrariedade do reconhecimento aos princípios e valores da ordem pública internacional do Estado Português, não os princípios consagrados no sistema jurídico interno de Portugal; a excepção é ainda integrada pelos princípios fundamentais do Estado Português que decorram desta ordem pública internacional na sua concretização no momento histórico da revisão, os quais se encontram sobretudo nas normas de nível constitucional ou que respeitem a direitos fundamentais.

V) – A decisão de divórcio com fundamento em justa causa em nada contraria a ordem pública internacional do Estado Português; o afastamento do regime do divórcio-sanção não pode ser erigido em princípio da ordem pública internacional do Estado Português; menos ainda, pode considerar-se que a vigência na ordem jurídica portuguesa de uma decisão estrangeira que a declarasse constituiria uma intolerável ofensa da harmonia jurídico-material interna ou uma contradição flagrante com os princípios fundamentais a enformam.

VI) – Nem toda a matéria atinente a relações familiares partilha do relevo atribuído às questões respeitantes à família, sua constituição, nomeadamente pelo vínculo do casamento, ou protecção das crianças.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"5. – Defende o Requerido na sua oposição que a sentença, por decretar o divórcio por justa causa, ofende princípios ético-jurídicos das normas aplicáveis à dissolução do casamento e aos valores fundamentais que enformam a ordem jurídica Portuguesa.

Louva-se na abolição na ordem jurídica portuguesa do denominado divórcio-sanção [---] – revogação do artigo 1787.º do Código Civil, pela Lei 61/2008, de 31 de Outubro -, entendendo que a revisão de uma sentença que mencione existir justa causa de divórcio contraria tal ordem jurídica interna enquadrando-se, por isso, na previsão da alínea f) do artigo 980.º.

Não consta que a sentença revidenda tenha declarado um dos cônjuges culpado, como não consta que tenha apreciado a existência de justa causa. Consta tão somente que foi submetido um pedido de divórcio nisi por justa causa (a Judgement of Divorce Nisi was entered by the Court in the above-mentioned case for cause wich is fully set forth in the decree of file in the Court).

Embora tal obste desde logo a que proceda a excepção invocada, admitindo similitude entre justa causa e atribuição de culpa, apreciemos a questão por exaustão de razões.

Estabelece a alínea f) do artigo 980.º que para que a sentença seja confirmada é necessário: (…) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.

A questão colocada nesta norma constitui excepção ao regime formal a que obedece o regime da revisão de sentenças estrangeiras, introduzindo uma apreciação de mérito, não da sentença, mas do efeito do reconhecimento.

É o reconhecimento, e não a própria decisão, que deve ser compatível com a ordem pública internacional. (…) Por isso, o momento relevante para a concretização da ordem pública internacional é o do reconhecimento, e não o momento em que a decisão é proferida. (…)

Em suma, o tribunal de reconhecimento tem de limitar-se a averiguar se, à luz dos factos dados como provados pelo tribunal de origem, e da determinação, interpretação e aplicação do Direito aplicável a que procedeu, o reconhecimento implica uma violação manifesta e inaceitável de uma regra essencial vigente na ordem jurídica do foro, ou de um direito reconhecido como fundamental nesta ordem jurídica, no momento do reconhecimento [Luís de Lima Pinheiro in Direito Internacional Privado – Reconhecimento de decisões estrangeiras, vol III, tomo II, p. 119-120.].

Voltando ao caso concreto, uma primeira nota sobressai: vem invocada pelo Requerido a violação da ordem jurídica portuguesa quando a norma se refere à ordem pública internacional do Estado Português.

A norma anterior à do artigo 980.º, alínea f), do Código de Processo Civil, a do artigo 1096.º, alínea f), do Código de Processo Civil na redacção do Decreto-Lei 329-A/95, de 12 de Dezembro, tinha idêntica redacção. Não assim quanto à primitiva redacção do artigo 1096.º, alínea f) do Código de Processo Civil na redacção anterior à reforma de 95/96 que dispunha como segue:

Para que a sentença seja confirmada é necessário: (…)
f)- Que não contenha decisões contrárias aos princípios de ordem pública portuguesa; (…).

Não é sem consequências a alteração. Trata-se de avaliar os princípios e valores da ordem pública internacional do Estado Português, não os princípios consagrados no sistema jurídico português interno (a que parece referir-se o Requerido) [---].

O regime actual, mesmo quanto a esta cláusula excepcional que em alguma medida aflora o mérito, é assim mais consentâneo com o sistema vigente em Portugal de recusa de apreciação intrínseca da decisão a rever, remetendo a apreciação face ao acquis do direito comum dos países ocidentais fundado na defesa dos direitos fundamentais da pessoa; mesmo aí, como já referido, a apreciação cinge-se às consequências do reconhecimento, não atingindo o mérito da decisão.

A excepção é ainda integrada pelos princípios fundamentais do Estado Português que decorram desta ordem pública internacional na sua concretização no momento histórico da revisão, os quais se encontram sobretudo nas normas de nível constitucional ou que respeitem a direitos fundamentais.

A atuação da cláusula de ordem pública internacional é justificada, em especial, quando estejam em causa direitos fundamentais. Com efeito, o conteúdo da ordem pública internacional tende hoje a ser determinado à luz dos direitos fundamentais protegidos pela Constituição, pelas Convenções Internacionais e pelo Direito da União Europeia. (…)

Excecionalmente, poderão existir proposições jurídicas fundamentais estruturantes da ordem jurídica portuguesa que não tenham dignidade constitucional, internacional ou europeia, mas terão de resultar de uma sedimentação e consolidação em sectores importantes da ordem jurídica, mediante uma consagração legislativa ou consuetudinária, facultada pela vontade colectiva manifestada pelos órgãos do poder político com competência legislativa ou pelo consenso social. Meras soluções particulares, que resultam de opções conjunturais ou pontuais do legislador em matéria de Direito Privado, não se revestem destas características [Idem, p. 118.].

O enquadramento genérico pretende surpreender os contornos do que deva entender-se por ordem pública internacional do Estado Português, sem escamotear que nos encontramos face a um conceito genérico e indeterminado que exige do intérprete um esforço de concretização apenas possível no confronto com o caso concreto em apreciação [---], conceitos estes carecidos de preenchimento valorativo [Cf. Baptista Machado in Introdução ao Direito e ao discurso legitimador, Almedina, 1983, p. 114.].

Trata-se de saber se a declaração de que o divórcio decretado ocorreu por justa causa contraria a ordem pública internacional do Estado Português. Mesmo concedendo que a declaração de justa causa se equipara à declaração de culpa (de um ou de ambos os cônjuges) como causa do divórcio, antecipe-se que entendemos que não pode o afastamento do divórcio-sanção ser erigido em princípio da ordem pública internacional do Estado Português e, menos ainda, pode considerar-se que a vigência na ordem jurídica portuguesa de uma decisão estrangeira que a declarasse constituiria uma intolerável ofensa da harmonia jurídico-material interna ou uma contradição flagrante com os princípios fundamentais que enformam a sua ordem jurídica [Baptista Machado in Lições de Direito Internacional Privado, 1974, p. 254-256].

A matéria em causa no caso que nos ocupa é matéria de relevo na organização social da sociedade constituída em Estado, uma vez que respeita à família, sua constituição, nomeadamente pelo vínculo do casamento, ou à dissolução deste e respectivas consequências. Mas o particular relevo da matéria não se estende a todas as questões que a integram. Dir-se-á que a definição de culpa do divórcio exprime uma concepção arredada da ordem jurídica portuguesas. É verdade, dada a revogação da norma respectiva a que já aludimos. Todavia, nem por isso se encontra proscrita na ordem jurídica interna toda e qualquer apreciação de responsabilidade decorrente da ruptura do vínculo contratual que o casamento civil constitui, por via do disposto no artigo 487.º do Código Civil.

Por tudo, entende-se que o facto de a decisão dar provimento a um pedido de divórcio com indicação de que o mesmo se funda em justa causa em nada fere, atinge ou contraria os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, sendo certo que seria ainda necessário que os atingisse manifestamente.

Neste sentido veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Abril de 2018, proferido no processo 137/17.7YRPRT.S1 (José Rainho) em caso similar, embora ainda mais impressivo por se tratar de efectivas consequências do divórcio decretado com declaração de culpa [---] [Cf. desta Relação e secção o acórdão de 6 de Maio de 2021, proferido no processo 2247/20.4YRLSB-6 (Gabriela de Fátima Marques).]."

[MTS]