"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



01/07/2023

"Juízos conclusivos": que los hay, los hay!


1. Há não muito tempo publicou-se um post sobre os "factos conclusivos", na perspectiva de que pertenciam a um tempo passado (clicar aqui).

A verdade é que, quando se pensava que já tinha acabado o anátema da qualificação de um facto como "facto conclusivo", eis que na jurisprudência continuam a aparecer reminiscências do tal passado que se julgava definitivamente findo.

Vem isto a propósito de, num recente acórdão de uma das Relações, se ter afirmado o seguinte:

"Antes de mais, há que anotar que no elenco dos factos provados e não provados apenas devem constar “factos” e não matéria conclusiva e/ou de direito.

Relativamente a esta matéria, a qual não constitui facto, não há lugar à sua inclusão nos factos (provados ou não provados).

No sentido da exclusão da matéria conclusiva do elenco dos factos provados da sentença, por via do disposto no art. 607º, nº 4, do C.P.C., cfr. o Ac. do STJ de 29/04/2015, publicado em www.dgsi.pt, com o nº de proc. 306/12.6TTCVL.C1.S1, e o Ac. da R.E. de 28/06/2018, publicado no mesmo sítio da Internet, com o nº de proc. 170/16.6T8MMN.E1.

Como se refere neste último acórdão, “na decisão sobre a matéria de facto apenas devem constar os factos provados e os factos não provados, com exclusão de afirmações genéricas, conclusivas e que comportem matéria de direito”, pelo que, “mesmo no âmbito da vigência do actual CPC, a decisão sobre a matéria de facto deve estar expurgada” dessas afirmações, devendo ser eliminado qualquer ponto da matéria de facto que “integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas que definem o objecto da acção, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões”.

Ora, no que a estes dois pontos concerne, verifica-se que a parte do ponto 4 onde se refere “a qual veio potenciar insegurança” e as partes do ponto 6 onde consta “coloca a habitação da Autora em perigo” e “mais vulnerável a (…) invasão da propriedade privada” constitui matéria conclusiva e também, no caso de “invasão da propriedade privada”, matéria de direito.

Na realidade dizer que a estrutura colocada potencia insegurança e coloca a habitação da A. em perigo e vulnerável a invasão da propriedade privada não constitui a descrição de factos da vida, mas conclusão a retirar de factos concretos, designadamente, entre outros, respeitantes às características da estrutura e do exterior da fracção da A., ao posicionamento daquela relativamente a esta, e à forma de acesso a esta fracção.

Sendo assim, esta matéria não tem de constar do elenco da matéria de facto, provada ou não provada, pelo que não há que apreciar se deve ser retirada dos factos provados para ser incluída nos factos não provados."

Salvo o devido respeito, não é (e não pode ser) assim. A conclusão de que uma determinada estrutura "potencia a insegurança e coloca a habitação do A. em perigo e vulnerável a invasão da propriedade privada" é tipicamente uma conclusão factual que pode ser inferida, através de regras de experiência, de certos factos. Dito de outro modo: aquela conclusão é um resultado probatório -- susceptível de ser traduzido em facto provado ou não provado -- que é adquirido através de uma regra de experiência.

Concluir que aqueles factos, porque correspondem a "juízos conclusivos" não são matéria de facto é o mesmo que concluir que através das regras de experiência se adquirem "factos conclusivos" que não podem ser incluídos na "matéria provada". É como estivesse proibido concluir e dar como provado que, quando estão 0º, está frio.

2. No caso concreto, há ainda um aspecto lateral a considerar. No referido acórdão, afirma-se o seguinte:

"Anote-se que o Sr. perito referiu apenas que atenta a altura de 1,50 metros da parte superior da estrutura ao parapeito da varanda “admite-se que através da estrutura metálica se possa aceder à varanda do prédio da A.”, sendo que, embora essa medida não tenha sido apurada nem na peritagem, nem na inspecção ao local, das fotografias juntas, afigura-se que a distância da estrutura à parte de cima da divisória em vidro martelado onde se encontra assente não chegará a 50 cm.

Portanto, em face do exposto, afigura-se que a prova produzida não permite concluir pela prova do facto de que “a colocação do referido toldo coloca a habitação da Autora mais vulnerável a assaltos, com escaladas pelo exterior”, devendo o mesmo ser considerado não provado."

Ou seja: o tal inadmissível "juízo conclusivo" foi afinal objecto de uma prova pericial e, portanto, foi tratado como um facto submetido a prova e acabou por ser considerado um facto não provado (com ou sem razão, é agora irrelevante).

3. Procurando fazer um esforço de generalização, cabe concluir que, no que respeita aos resultados probatórios, os ainda banidos "factos" ou "juízos conclusivos" podem decorrer de uma de duas situações:

-- Da utilização de regras de experiência; isto é, uma regra de experiência permite dar como provado um facto; por exemplo: se se fala de algo que aconteceu num dia de Agosto às 15 horas, fala-se de algo que aconteceu quando estava calor;
 
-- Da inferência realizada através de uma presunção judicial: de um facto instrumental ou probatório infere-se o facto probando; por exemplo: de determinados sintomas infere-se a doença de que sofre o paciente.

Como está fora de questão acabar quer com a relevância das regras de experiência na apreciação da prova, quer com as presunções judiciais, não há outra hipótese que não a de aceitar como "factos" os equivocadamente banidos "factos conclusivos".

MTS