"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



02/04/2024

Jurisprudência 2023 (141)


Matéria de facto; impugnação;
"ónus primário"; "ónus secundário"


1. O sumário de RE 12/7/2023 (113/20.2T8ADV.E1) é o seguinte:

I. Aplica-se a extensão do prazo de 10 dias previsto no artigo 638.º, n.º 7 do CPC, à interposição do recurso que impugna a decisão de facto, tendo havido gravação da prova e visando a impugnação a reapreciação da mesma, ainda que, em concreto, se venha a verificar que o recorrente não acatou os ónus previstos no artigo 640.º do CPC.

II. O deficiente cumprimento dos ónus previstos no artigo 640.º do CPC, não determina um convite ao aperfeiçoamento, mas sim a imediata rejeição do recurso, no todo ou em parte, conforme a parte afetada.

III. Se os impugnantes se limitam a transcrever os depoimentos ou partes deles (não sendo tal procedimento sequer obrigatório - cfr. artigo 640.º, n.º 2, alínea a), in fine, do CPC), sem indicarem em concreto as passagens em que fundam a impugnação (o que é exigido pela lei), limitando-se a referenciar, de quando em vez, sem se perceber o critério que preside a tal menção, os minutos da gravação, cumprem apenas formalmente o requisito legal previsto no artigo 640.º, n.º1, alínea b) e n.º 2 do CPC, o que determina a rejeição da impugnação da decisão de facto.

IV. A presunção prevista no artigo 7.º do Código de Registo Predial, dado o caráter não constitutivo do mesmo, não abrange as áreas e confrontações dos imóveis, e pode ser ilidida por prova em contrário.

V. As estradas enquanto bens do domínio público estão fora do comércio jurídico e, consequentemente, não são passíveis de apropriação individual por via das regras da usucapião.

VI. Não tendo os Autores provado os atos possessórios de molde a ficarem demonstrados os pressupostos da usucapião, sobre um determinado bem (forno, alpendre e área adjacente) construído há mais de 50 anos por várias pessoas de uma localidade para nele confecionarem pão e outros alimentos, improcede o pedido de reconhecimento do direito de propriedade dos Autores sobre tal bem.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Os Apelantes impugnam a decisão de facto em relação aos pontos provados sob os n.ºs 2, 3, 5, 6 e 7, que, no seu entender, deveriam ter sido dados como não provados.

Também impugnam todos os factos não provados, que, no seu entender, deveriam ter sido tidos como provados.

Assim, os Apelantes apenas não impugnam os pontos 1 e 4 dos factos provados, ou seja, respetivamente, a inscrição registral dos prédios a favor dos Autores e a não utilização há dezenas de anos pelos residentes da localidade de Moinhos de Vento do forno que se encontra localizado no prédio …, registado a favor dos Autores.

Os Apelantes para fundamentarem a impugnação da decisão de facto invocam erro de julgamento ao nível da decisão de facto, centrando, essencialmente, a sua discordância na não valoração dos esclarecimentos do perito prestados em audiência e no depoimento de três testemunhas por eles arroladas, bem como no documento junto com o requerimento probatório com a referência 37284600, que corresponde a uma cópia certificada de informação (n.º 187/GJA2017) dos serviços do Réu prestada no PA n.º 180/GJA2017, onde se atesta que não se encontra documentado nos arquivos municipais que o forno tivesse sido construído de raiz pelo Município de Almodôvar.

Em relação aos esclarecimentos do perito (…) e das testemunhas …, … e …, os Apelantes transcrevem longos trechos dos seus depoimentos, mencionando de vez em quando, os minutos da gravação, conforme consta de fls. 121v a 170.

Terminada a parte extratada dos depoimentos, os Apelantes referem «Como se evidencia, a sentença limitou-se, sem mais, a desconsiderar os depoimentos na sua globalidade, das testemunhas dos Recorrentes», acrescentando que o tribunal desconsiderou, por completo, e sem informar o motivo, os testemunhos supra referidos, referindo em relação a cada depoimento o que, no entender dos Apelantes, foram os factos que foram relatados e que deveriam ter sido tidos em conta pelo tribunal recorrido.

E concluíram:

«Os depoimentos indicados das testemunhas não permitem razoavelmente comprovar que as parcelas de terreno em crise, bem como o forno e alpendre lá existentes, são do domínio público (que o Tribunal nem sequer qualificou como sendo domínio publico indisponível da autarquia – no caso apenas podíamos estar perante estrada), mas sim propriedade dos Recorrentes.

Ao contrário do que foi explanado na sentença, deveria atender-se aos factos relatados e ao direito de propriedade invocado pelos Recorrentes, pois os mesmos foram devidamente explicados pelas testemunhas, que com circunstância e razão de ciência explicaram ao pormenor.»

Como decorre da fundamentação da sentença recorrida, todos os meios de prova foram crítica e criteriosamente ponderados, todos eles sujeitos ao princípio da livre apreciação da prova, sendo constituídos por documentos, pelos depoimentos das testemunhas arrolada pelas partes, pelo relatório pericial e pelos esclarecimentos do sr. perito prestados em audiência.

Os factos provados foram objeto de análise circunstanciada com base nos meios de prova e da sua relevância probatória em relação à específica matéria de facto em apreciação. Sendo que na apreciação dos depoimentos das testemunhas foi mencionada a razão de ciência e o motivo pelo qual o tribunal recorrido deu maior credibilidade aos depoimentos das testemunhas arroladas pelo Réu do que aos depoimentos das testemunhas arroladas pelos Autores.

Feita esta introdução, analisemos se estão preenchidos os pressupostos necessários para a segunda instância reapreciar a decisão de facto.

Os poderes de sindicabilidade da Relação no que diz respeito ao julgamento do facto dependem do preenchimentos pelo impugnante dos requisitos previstos no artigo 640.º do CPC. Se estiverem preenchidos, a Relação pode alterar a decisão de facto se tiver ocorrido erro de julgamento por terem sido factos provados quando a prova não o permitia, ou, ao invés, não provados quando ocorra o oposto (artigo 662.º do CPC).

A modificabilidade da decisão de facto em sede de segunda instância não afasta as regras de valoração da prova, mormente a da livre apreciação da prova quando a mesma esteve na base da formação da convicção do julgador a quo, sem prejuízo do tribunal de recurso visar a formação de uma convicção própria com base nos meios de prova carreados para os autos e valoração do seu valor probatório.

Todavia, a reapreciação da decisão de facto quando a prova foi gravada, e sem prejuízo dos poderes de modificabilidade da decisão ao abrigo do artigo 662.º do CPC, depende do acatamento por parte do impugnante dos requisitos da impugnação, que se apresentam como ónus para o impugnante e cujo não acatamento determina a rejeição total ou parcial da impugnação, constando os mesmos do artigo 640.º do CPC, que estipula:

«1.Quando seja impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previso na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o recurso, sem prejuízo de proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
(…)».

Como tem sido decidido pelo STJ, o deficiente cumprimento dos ónus previstos no artigo 640.º do CPC, não determina um convite ao aperfeiçoamento, mas sim a imediata rejeição do recurso, no todo ou em parte, conforme a parte afetada. [ Cfr., ente outros, Ac. STJ, 25-05-2023, proc. 752/20.1T8CTB.C1.S1 (Maria Graça Trigo) e jurisprudência citada neste aresto.] [...]

Não se mostrando tal interpretação violadora de qualquer preceito constitucional.

O STJ tem proferido inúmeros acórdãos onde analisa o modo como deve ser interpretado o disposto no artigo 640.º do CPC no que diz respeito ao acatamento dos ónus ali previstos por parte do impugnante, existindo uma nítida evolução jurisprudencial no sentido da interpretação do normativo, como se colhe dos seguintes arestos:

- Ac. STJ, de 21-03-2023, cujo sumário tem o seguinte teor:
«O facto de o recorrente, ter indicado os concretos pontos de facto que considerava incorrectamente julgados, sem os relacionar com cada um dos meios de prova, com cada uma passagens relevantes dos meios de prova gravados, ou com a transcrição de cada uma das passagens relevantes dos meios de prova gravados prejudica a inteligibilidade do fim e do objecto do recurso e, em consequência, a possibilidade de um contraditório esclarecido.»;

- Ac. STJ, de 21-03-2023, cujo sumário tem o seguinte teor:
«O facto de o recorrente não ter indicado os concretos pontos de facto que considerava incorrectamente julgados, pretendendo relacionar, em bloco, um conjunto de documentos e de depoimentos com o conjunto dos factos dados como não provados, prejudica a inteligibilidade do fim e do objecto do recurso e, em consequência, a possibilidade de um contraditório esclarecido.»

- Ac. STJ, de 25-05-2023, cujo sumário é o seguinte:
«Numa interpretação do artigo 640.º do Código de Processo Civil em termos adequados à função e conformes com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, para que possa considerar-se observado o ónus da impugnação é preciso que, através das indicações do recorrente dos concretos pontos de facto impugnados e dos meios de prova relevantes para cada um, fique assegurada a inteligibilidade do fim e do objecto do recurso e, em consequência, a possibilidade de um contraditório esclarecido.»

No aresto do STJ proferido em 21-03-2023, já citado [Proferido no proc. 296/19.4T8ESP.P1.S1. (Nuno Pinto de Oliveira), em www.dgsi.pt], lê-se na sua fundamentação:

«O Supremo Tribunal de Justiça tem distinguido um ónus primário e um ónus secundário — o ónus primário de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação, consagrado no n.º 1, e o ónus secundário de facilitação do acesso “aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida”, consagrado no n.º 2.

(…) O ónus primário de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação, consagrado no n.º 1, analisa-se ou decompõe-se em três:

Em primeiro lugar, “[o] recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que julgou incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões” [---]. Em segundo lugar, “deve […] especificar, na motivação, os meios de prova que constam do processo ou que nele tenham sido registados que […] determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos” [---]. Em terceiro lugar, deve indicar, na motivação, “a decisão que deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas” [---].
 
(…) O critério relevante para apreciar a observância ou inobservância dos ónus enunciados no art. 640.º do Código de Processo Civil — logo, da observância ou inobservância do ónus primário de delimitação do objecto — há-de ser um critério adequado à função [---], conforme aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade [---] [---].

(…) O requisito de que o critério seja adequado à função coloca em evidência que os ónus enunciados no art. 640.º pretendem garantir uma adequada inteligibilidade do fim e do objecto do recurso [---] e, em consequência, facultar à contraparte a possibilidade de um contraditório esclarecido [---]. Os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade pronunciam-se sobre a relação entre a gravidade do comportamento processual do recorrente — inobservância dos ónus do art. 640.º, n.ºs 1 e 2 — e a gravidade das consequências do seu comportamento processual: a gravidade do consequência prevista no art. 640.º, n.ºs 1 e 2 — rejeição do recurso ou rejeição imediata do recurso — há-de ser uma consequência adequada, proporcionada e razoável para a gravidade da falha do recorrente [---].

(…) Entre os corolários dos requisitos de que o critério seja adequado à função e conforme aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade está o de que “a decisão de rejeição do recurso […] não se deve cingir a considerações teoréticas ou conceituais, de mera exegética do texto legal e dos seus princípios informadores, mas contemplar também uma ponderação do critério legal […] face ao grau de dificuldade que [a inobservância dos ónus do art. 640.º] acarrete para o exercício do contraditório e para a própria análise crítica por parte do tribunal de recurso” [---].[---]»

No caso sub judice, os ora recorrentes em vez de relacionar especificadamente cada um dos concretos pontos de facto que consideravam incorretamente julgados com cada um dos meios de prova (designadamente prova pericial, testemunhal e documental), optaram por indicar, em bloco, todos os concretos pontos de facto que consideravam incorretamente julgados e relacionaram-nos, também em bloco, com aqueles meios de prova, ou seja, não discriminam cada facto impugnado e a respetiva prova que, no seu entender, impunha decisão diferente da proferida.

E mais, transcreveram segmento dos depoimentos sem qualquer segmentação em relação à matéria que impugnaram, mencionando em algumas páginas os minutos da gravação, sem se perceber qual seja o critério da indicação, o que não corresponde de todo ao requisito de indicação das exatas passagens da gravação em que se funda o recurso como imposto pelo n.º 2, alínea a), do CPC.

Ademais, só no final de todas as transcrições, os Apelantes mencionam a valoração que os próprios fazem dos depoimentos, quando o que se visa com a impugnação é que sejam os depoimentos a falar por eles mesmos em conformidade com o assinalado nas exatas passagens que devem ser indicadas por terem precisamente essa finalidade, não cabendo ao tribunal de recurso procurar em longas transcrições as passagens dos depoimentos que, no entender dos impugnantes, infirmam a valoração da prova levada a cabo pelo tribunal a quo.

Se os impugnantes se limitam a transcrever os depoimentos ou partes deles (não sendo tal procedimento sequer obrigatório - cfr. artigo 640.º, n.º 2, alínea a), in fine, do CPC), sem indicarem em concreto as passagens em que fundam a impugnação (o que é exigido pela lei), limitando-se a referenciar, de quando em vez, sem se perceber o critério que preside a tal menção, os minutos da gravação, cumprem apenas formalmente o requisito legal previsto no artigo 640.º, n.º1, alínea b) e n.º 2 do CPC.

O que, por um lado, coloca em causa a possibilidade da parte contrária exercer um contraditório esclarecido e, por outro lado, transpõe para o julgador que reaprecia a prova, o ónus de identificar e procurar os segmentos relevantes do(s) depoimento(s), impondo com tal conduta um grau de dificuldade excessivo e desadequado à reapreciação da decisão de facto. Ou seja, o incumprimento deste ónus tem consequências manifestamente graves, pelo que não pode deixar de conduzir à rejeição do recurso.

Em face de todo o exposto, atento o modo como os Apelantes impugnaram a decisão de facto inviabiliza uma compreensão clara do objeto da impugnação e dos concretos fundamentos em que a mesma assenta, o que significa que não se encontra preenchido o referido ónus primário da impugnação no que concerne à fundamentação concludente da impugnação, cujo não acatamento determina, numa interpretação do artigo 640.º do CPC em termos adequados à função e conformes com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, a rejeição da impugnação.

Nestes termos, rejeita-se a impugnação da decisão facto."

[MTS]