Recurso;
junção de documentos
I. O sumário de RG 10/7/2023 (1159/18.6T8VRL.G1) é o seguinte:
1 – Na fase de recurso, a junção de documentos reveste natureza excecional, só sendo admissível no caso de impossibilidade de apresentação até ao encerramento da discussão em 1ª instância ou de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância.
2 – A impossibilidade de apresentação anterior ao momento do encerramento da discussão em 1ª instância pode resultar de:
a) o documento se ter formado posteriormente, mas referir-se a facto já anteriormente alegado;b) a parte só posteriormente ter tido conhecimento da existência do documento (o documento apenas veio ao conhecimento da parte após aquele momento);c) ocorrência de um impedimento inultrapassável à sua apresentação tempestiva;d) o facto probando ser posterior ao encerramento da discussão.
3 – A junção será considerada necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância se a decisão recorrida contiver elementos de novidade, isto é, que tenha sido absolutamente surpreendente para o apresentante do documento, face ao que seria de esperar em face dos elementos do processo.
4 – Quando a questão respeita ao resultado probatório a que chegou o tribunal de 1ª instância, é indispensável, para que se admita a junção do documento, que o julgamento proferido seja inovatório e imprevisível em face dos elementos probatórios recolhidos no âmbito do processo, seja por na sentença se formular uma exigência probatória com que razoavelmente não se podia contar ou por se sustentar a necessidade de provar facto cuja relevância não tinha sido equacionada em face da forma como foram expostos os fundamentos da ação ou da defesa ou da delimitação do objeto factual relevante efetuada pelo tribunal.
5 – A parte pode no mesmo processo prestar declarações de parte e depoimento de parte, isto é, ser ouvida em qualidades distintas. Prestando depoimento de parte e declarações de parte no mesmo acto, se admite factos que lhe são desfavoráveis, produz uma confissão; na parte em que se pronuncia sobre factos que lhe são favoráveis, as suas declarações estão sujeitas à livre apreciação do tribunal, em conformidade com o disposto nos artigos 466º, nº 3, e 607º, nº 5, do CPC.
6 – A parte que deve prestar depoimento pode requerer a prestação de declarações de parte, assim como o tribunal também pode determinar oficiosamente a prestação destas declarações, como resulta da remissão efetuada pelo artigo 466º, nº 2, do CPC designadamente para o artigo 452º, nº 1, do CPC, valorando-as livremente.
7 – O tribunal que determina a prestação de esclarecimentos deve considerar estes, em tudo o que não tenha carácter confessório, como uma declaração de parte e valorar livremente esta declaração, o que redunda no dever de valorar os factos favoráveis alegados pela parte chamada a responder sobre determinado facto em que tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento direto.
8 – Pedindo a autora o reconhecimento da sua qualidade de herdeira dos primitivos donos de certo bem e que as heranças destes integram o respetivo direito de propriedade, não sendo questionada tal qualidade ou que aqueles foram proprietários do bem, não cabe à demandante demonstrar o facto negativo relativo à não disposição do bem, mas sim aos réus demonstrar a matéria de exceção que invocam, relativa à aquisição por doação ou por usucapião.
II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"Com as suas alegações, a Recorrente apresenta uma «certidão extraída do dito processo de ..., que é o processo nº ...9 do ... Juízo do Tribunal ..., que teve origem no processo nº ...6 do extinto Tribunal de Círculo ..., no qual foi autora a Herança de CC, representada pela cabeça de casal – a aqui ré contestante BB – e foi ré a Sociedade Agrícola Quinta da D..., Lda.», integrando «Despacho saneador, Resposta aos quesitos, Sentença de 1ª instância e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, devidamente transitado em julgado em 13/12/1999».
Pretende com aquela junção provar «que pelo menos desde 1996 tais vinhos estão na posse da Sociedade Agrícola, a qual se recusa a entregá-los. Portanto, é falso que os supostos donatários estejam na posse desses vinhos. Como tal, essa posse – que a Mmª Juiz não chega a afirmar, mas que utiliza para através dela pretender que é a autora quem tem de provar a manutenção até aos dias de hoje da propriedade dos primitivos donos – pura e simplesmente não existe.»
Sustenta que apenas na sentença se acolhe «o entendimento segundo o qual à autora caberia provar que tais vinhos não se encontram na posse dos supostos donatários e não foram alvo de doação», pelo que «a Mmª Juiz introduziu uma questão nova, que torna indispensável a junção aos autos de um novo documento, nos termos em que o permite o artº 651º nº 1 in fine do Código de Processo Civil».
Vejamos se é admissível a junção de tal documento com as alegações.
Os documentos destinam-se a demonstrar a realidade dos factos – artigo 341º do Código Civil. Como são meios de prova de factos, devem ser apresentados, em regra, com o articulado em que se alegam os factos que constituem os fundamentos da ação ou da defesa, tal como exige o artigo 423º, nº 1, do CPC. Portanto, as partes devem juntar logo ao articulado o documento comprovativo do facto alegado, mas essa não é uma regra preclusiva.
Posteriormente, nos termos do nº 2 do artigo 423º do CPC, podem ainda ser apresentados até 20 dias antes da data da audiência final, sujeitando-se a parte ao pagamento de multa, salvo se a apresentação extemporânea for considerada justificada. Depois desse momento e até ao encerramento da discussão em 1ª instância, só é admitida a junção se o documento for objetiva ou subjetivamente superveniente (documento que apenas foi produzido posteriormente ao apontado limite de 20 dias antes da audiência final ou que apenas veio ao conhecimento da parte após aquele momento), se tiver ocorrido um impedimento inultrapassável à sua apresentação tempestiva ou em caso de ocorrência posterior que tenha tornado necessária a sua apresentação – artigo 423º, nº 3, do CPC.
Na fase de recurso, a junção de documentos reveste natureza excecional. É isso que resulta do nº 1 do artigo 651º do CPC, onde se estabelece que as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância. Nos termos do artigo 425º do CPC, depois de encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, isto é, que sejam objetiva ou subjetivamente supervenientes ao encerramento da discussão em 1ª instância. A impossibilidade de apresentação anterior ao momento do encerramento da discussão em 1ª instância pode resultar de:
a) o documento se ter formado posteriormente, mas referir-se a facto já anteriormente alegado;b) a parte só posteriormente ter tido conhecimento da existência do documento (o documento apenas veio ao conhecimento da parte após aquele momento);c) ocorrência de um impedimento inultrapassável à sua apresentação tempestiva;d) o facto probando ser posterior ao encerramento da discussão.
No caso vertente, não ocorre nenhuma das suprarreferidas situações de natureza excecional que permitem a instrução documental com as alegações de recurso.
Desde logo, não foi invocada a impossibilidade de apresentação do documento até ao encerramento da discussão em 1ª instância. Trata-se de uma certidão judicial relativa a um processo cuja última decisão – o acórdão da Relação do Porto – transitou em julgado a 13.12.1999, pelo que não é objetivamente superveniente. Mas também não pode ser considerado subjetivamente superveniente, pois a Recorrente não invocou que só teve conhecimento da existência do processo após o encerramento da discussão em 1ª instância; aliás, o processo foi referido por diversas vezes durante a audiência de julgamento e a própria Autora invoca-o no artigo 2º, al. a), da petição inicial (referindo-o como «Processo ordinário nº 186/99 do Tribunal Judicial ...). De igual forma, não se descortina, nem foi alegado, um impedimento inultrapassável à sua apresentação tempestiva. Finalmente, o facto probando não é posterior ao encerramento da discussão na 1ª instância.
Resta apurar se a junção se tornou necessária devido ao julgamento proferido na 1ª instância.
Para o efeito, é necessário determinar o que o artigo 651º, nº 1, do CPC pretendeu significar com «junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância».
No nosso entendimento, para que esteja verificada a previsão da norma é necessário que a decisão recorrida contenha elementos de novidade, isto é, que tenha sido absolutamente surpreendente para o apresentante do documento, face ao que seria de esperar em face dos elementos do processo. Quando a questão se coloque no plano do resultado probatório a que chegou o tribunal de 1ª instância, é indispensável, para que se admita a junção do documento, que o julgamento proferido seja inovatório e imprevisível em face dos elementos probatórios recolhidos no âmbito do processo, seja por na sentença se formular uma exigência probatória com que razoavelmente não se podia contar ou por se sustentar a necessidade de provar facto cuja relevância não tinha sido equacionada em face da forma como foram expostos os fundamentos da ação ou da defesa ou da delimitação do objeto factual relevante efetuada pelo tribunal.
Em geral, a jurisprudência tem considerado que o aludido pressuposto ocorre nos casos em que o resultado expresso na sentença se mostra assente em meio probatório não oferecido pelas partes – como é o caso de meio de prova cuja produção foi oficiosamente determinada pelo tribunal, em momento processual em que já não era possível à parte carrear para os autos o documento –, em facto novo oficiosamente cognoscível ou em solução de questão de direito nova [Esta última hipótese é habitualmente indicada na jurisprudência, mas parece-nos que atualmente é difícil de conceber face ao disposto no artigo 3º, nº 3, do CPC.] (por exemplo, quando se fundou em preceito jurídico ou interpretação do mesmo, com a qual a parte que ora se apresenta a recorrer não podia justificada e razoavelmente contar).
Porém, ao referir-se ao caso de a junção só se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância, «a lei não abrange a hipótese de a parte se afirmar surpreendida com o desfecho da ação (ter perdido, quando esperava obter ganho de causa) e pretender, com tal fundamento, juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter apresentado em primeira instância. O legislador quis manifestamente cingir-se aos casos em que, pela fundamentação da sentença ou pelo objeto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes de a decisão ser proferida» [Antunes Varela et al, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, págs. 533-534.].
Como limite excludente, a doutrina e a jurisprudência têm vindo a considerar que «não é admissível a junção com a alegação de recurso de um documento que, ab initio, já era potencialmente útil à apreciação da causa» [Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís F. Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, 2018, pág. 502.]. Isto porque o regime do artigo 651º, nº 1, do CPC não abrange a hipótese de a parte pretender juntar às alegações documento que já poderia e deveria ter apresentado em 1ª instância. Dito de outra forma, não é admissível a junção, na fase de recurso, de documentos para provar factos (ou fazer a contraprova destes) que já antes da decisão a parte sabia estarem sujeitos a prova.
Em suma, se o documento era necessário ou útil para fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa antes de ser proferida a decisão recorrida e se esta se baseou nos meios de prova com que as partes razoavelmente podiam contar, não se pode dizer que a necessidade de junção do documento com as alegações ocorre em virtude do julgamento realizado pela 1ª instância.
Ora, na base da presente ação, como bem salientou a Autora no artigo 32º da petição, está «a divergência sobre a propriedade de tais vinhos levou – como supra se alegou – a que as partes fossem remetidas para os meios comuns quanto ao direito de propriedade sobre tais vinhos», os quais, segundo também o alegado no artigo 27º da p.i., têm «permanecido ininterruptamente guardados na Quinta ...».
Na contestação da Ré BB foi alegada a doação dos vinhos e a respetiva tradição para os donatários. Alegou que «a transferência entre os três irmãos doadores e os quatro irmãos donatários (a tradição) operou-se por via da inscrição na Casa do ... daquelas litragens em nome dos donatários BB, BB, FF e CC, todos de apelido familiar AA» (art. 16º), que era «esta inscrição o verdadeiro título representativo da posse e propriedade daqueles vinhos» (art. 17º), que os «anteriores proprietários, os três irmãos, ficaram impedidos de os transaccionarem ou de deles disporem por qualquer forma» (art. 18º) e que os «novos proprietários passaram a deles disporem quando quisessem e pela forma que considerassem adequada, e até o fizeram pois que em Julho de 1979 venderam 3.053 litros de VV ao comerciante “M..., L.da”» (art. 19º). Além disso, no artigo 26º, invocou a aquisição dos vinhos por usucapião («se não fora, mas foi, aquela doação, os quatro irmãos, depois continuados por seus herdeiros, adquiriram estes vinhos por usucapião que invocam», depois de ter alegado anteriormente os respetivos pressupostos factuais.
Mais, para que não haja dúvidas, a Autora, na réplica, alegou expressamente que «[j]amais o saudoso FF ou qualquer dos irmãos esteve na posse de tais vinhos, porquanto estes sempre estiveram na posse daqueles PP, CC e QQ, armazenados na sua Quinta ... e depois, após a criação da Sociedade Agrícola Quinta da D..., Lda., aí permanecendo guardados» (art. 24º). Acrescentou no artigo 35º daquela peça processual: «Não houve nenhuma usucapião desses vinhos, não só porque eles nunca foram validamente reivindicados por nenhum dos supostos donatários nem por seus herdeiros, como também porque estes nunca estiveram na posse ou detenção material de tais vinhos, nem jamais se arrogaram a sua posse e, muito menos, a sua propriedade.»
Portanto, as questões relativas à propriedade, doação e tradição dos vinhos, incluindo a usucapião, com todas as suas repercussões no plano do direito, estão suscitadas no processo desde os articulados e foram intensamente discutidas na audiência final. Por isso, não foi apreciada uma questão de direito verdadeiramente nova, mas sim matéria que integrava o objeto do processo, e a sentença não contém qualquer elemento de novidade. As apontadas questões, mal ou bem, o que a seu tempo se verá, foram decididas da forma que a Ré BB defendeu na contestação. Em todo o caso, sempre se dirá, desde já, que, diferentemente do preconizado na sentença, não competia à Autora «a prova de que os vinhos em causa se mantêm propriedade das Heranças dos três primitivos donos» (é a própria sentença que se refere aos «três primitivos donos» dos vinhos, cuja primitiva propriedade dá por adquirida, com plena correspondência na matéria de facto), ou, não tendo a doação sido reduzida a escrito, que não se operou a tradição para os donatários. Pelo contrário, uma vez demonstrado quem eram os primitivos proprietários dos vinhos (o que desde logo estava assente devido à posição assumida pelos Réus), cabia aos Réus provar a existência da doação, enquanto matéria de exceção. O mesmo se diga da tradição da coisa (litragens de vinho generoso), em conformidade com o disposto no artigo 947º, nº 2, do Código Civil, e dos factos de suporte à aquisição por usucapião.
In casu, o documento ora junto já era, desde os articulados, potencialmente útil à apreciação da causa e poderia ter sido apresentado em 1ª instância. Por isso, a junção do documento não se tornou necessária em virtude do julgamento realizado pela 1ª instância.
Não se encontrando verificada a previsão da norma do artigo 651º, nº 1, do CPC, não pode ser admitida a pretendida junção daquele documento."
[MTS]
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