Revisão de sentença estrangeira;
sentença arbitral; caso julgado*
1. O sumário de RP 29/6/2023 (1178/22.8T8OVR-A.P1) é o seguinte:
I - Decorre do art.º 980º, em conjugação com o art.º 983º nº 1, ambos do CPC, e do art.º 56º da LAV, que a revisão de sentenças estrangeiras é de índole formal, por contraposição a um juízo de mérito.
II - Porém, não se pode confundir o mérito da decisão revidenda com as questões suscitadas e apreciadas na decisão revisora, no âmbito das questões que ao Tribunal de revisão é lícito conhecer.
III - Quanto a estas, as questões suscitadas e apreciadas na decisão revisora no âmbito da sua competência (designadamente as elencadas no art.º 980º do CPC e no art.º 56º da LAV), ficam já sujeitas ao caso julgado e à autoridade de caso julgado.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"9.2. Do caso julgado formado pela sentença de revisão-confirmação de sentença estrangeira
Segundo os art.º 619º e 621º do CPC, «Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele (…)» e, «A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (…)».
Quando se trata de apurar da influência de uma decisão anterior num processo que lhe é posterior, trata-se do caso julgado material. Visa-se com ele obstar a que o tribunal possa vir a repetir ou contradizer a decisão anterior, invalidando a certeza e segurança jurídicas subjacentes às decisões dos tribunais.
E, como é sabido, ele pode ser visto ou influenciar a sorte da ação numa dupla dimensão, consoante os seus efeitos se repercutirem na esfera processual/adjetiva, ou na esfera substantiva.
No primeiro caso, estamos perante um efeito impeditivo ou negativo, o tribunal fica impedido de repetir ou contradizer a decisão anterior, e, daí, a sua operância como exceção dilatória (natureza simplesmente adjetiva): art.º 577º al. i) do CPC.
No segundo caso, está em causa o seu efeito positivo, dirigindo-se um comando ao tribunal, vinculando-o ao mesmo resultado (o de não repetir ou contradizer decisão anterior) com a autoridade de caso julgado, (natureza simultaneamente adjetiva e substantiva).
Em resumo, «Seja qual for o seu conteúdo, a sentença produz, no processo em que é proferida, o efeito de caso julgado formal, não podendo mais ser modificada (art. 672). Mas, quando constitui uma decisão de mérito (“decisão sobre a relação material controvertida”), a sentença produz também, fora do processo, o efeito de caso julgado material: a conformação das situações jurídicas substantivas por ela reconhecidas como constituídas impõe-se, com referência à data da sentença, nos planos substantivo e processual (...), distinguindo-se, neste, o efeito negativo da inadmissibilidade duma segunda acção (proibição de repetição: excepção de caso julgado) e o efeito positivo da constituição da decisão proferida em pressuposto indiscutível de outras decisões de mérito (proibição de contradição: autoridade do caso julgado).». [José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, 2ª edição, 2008, Coimbra Editora, pág. 713/714. No mesmo sentido, Miguel Teixeira de Sousa, "O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material", estudo publicado no Boletim do Ministério da Justiça (BMJ), nº 325, pág. 167.]
Por outro lado, constitui jurisprudência assente que, «Nos limites objectivos do caso julgado material incluem-se todas as questões e excepções suscitadas e solucionadas, ainda que implicitamente, na sentença, que funcionam como pressupostos necessários e fundamentadores da decisão final.» [Acórdão do STJ de 05.05.2005(nº do Documento: SJ200505050006027). No mesmo sentido, e do mesmo STJ, acs. de 09.07.998 (Proc. 620/98), de 24.02.2002 (Proc. 671/02), de 15.01.2004 (Proc. 3992/03), de 25.11.2004 (Proc. 3703/04), e de 25.11.2004 (Proc. 04B3703), todos disponíveis em www.dgsi.pt, sítio a ter em conta nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem.]
No mesmo sentido, Miguel Teixeira de Sousa [In “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, LEX, Lisboa, 2.ª Edição, pág. 578-579.], «toda a decisão é a conclusão de certos pressupostos (de facto ou de direito) o respectivo caso julgado encontra-se sempre referenciado a certos fundamentos. Assim, reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha com esse valor, por si mesma e independentemente dos respectivos fundamentos. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão.»
No caso, trata-se da execução de uma sentença arbitral estrangeira.
Nos termos do nº 7 do art.º 42º da Lei de Arbitragem Voluntária (LAV), o caso julgado arbitral é equiparado ao formado por sentença judicial, A sentença arbitral de que não caiba recurso e que já não seja suscetível de alteração no termos do artigo 45.º tem o mesmo carácter obrigatório entre as partes que a sentença de um tribunal estadual transitada em julgado e a mesma força executiva que a sentença de um tribunal estadual.
Esta interpretação já foi sancionada pelo Tribunal Constitucional, «A expressa referência constitucional aos tribunais arbitrais impede que seja questionada a sua legitimidade, pelo menos no que toca aos tribunais arbitrais voluntários (e o artigo 1522º insere-se nas disposições que conformam este tipo de tribunais). Consequentemente, não pode também ser questionada a força de caso julgado atribuída às respectivas decisões.» [Acórdão nº 506/96, de 21/03/1996.]
Sobre a execução das sentenças arbitrais, a LAV contém também regras específicas: art.º 47º e 48º.
O mesmo acontece sobre o procedimento de revisão e reconhecimento de sentenças arbitrais estrangeiras, com vista a obter a sua executoriedade em Portugal: art.º 55º a 68º.
A fim de obter a executoriedade, a Exequente/Embargada suscitou o reconhecimento de decisão arbitral, que decorreu neste Tribunal da Relação sob o nº 20/21.1YRPRT. E a decisão nele proferida foi «decretando o reconhecimento, para efeitos de posterior execução, da sentença arbitral proferida a 11.03.2020 pelo Árbitro Único do Instituto de Arbitragem da Câmara de Comércio de Estocolmo – Suécia».
É certo que, como decorre do art.º 980º, em conjugação com o art.º 983º nº 1, ambos do CPC, e art.º 56º da LAV, ao Tribunal revisor apenas compete exercer uma sindicância de carácter formal e não proceder a um reexame de mérito da decisão revidenda, seja pela apreciação dos factos sujeitos a julgamento, seja pelas regras de direito material que foram aplicadas aos factos. A revisão de sentenças estrangeiras é, pois, de índole formal, por contraposição a um juízo de mérito.
Porém, não se pode confundir o mérito da decisão revidenda com as questões suscitadas e apreciadas na decisão revisora, no âmbito das questões que ao Tribunal de revisão é lícito conhecer, designadamente as elencadas no art.º 980º do CPC e no art.º 56º da LAV. [Como refere António Sampaio Caramelo, citando Louis Christophe Delanoy, in “O Reconhecimento e Execução de Sentenças Estrangeiras”, 2016, pág. 128-129: «Ao contrário, em sede de controlo da sentença, o juiz não se pronuncia sobre o litígio primário que foi objecto da sentença arbitral, mas apenas averigua a existência nesta de certas condições de regularidade que permitem a sua equiparação à sentença de um tribunal estadual; é exclusivamente sobre este litígio secundário que versa a apreciação do juiz de controlo.»]
Estas, as questões suscitadas e apreciadas na decisão revisora, naturalmente que já ficam sujeitas ao caso julgado e à autoridade de caso julgado.
Ora, como decorre da análise do processo nº 20/21.1YRPRT, transitado em julgado, o acórdão aí proferido não integrou uma decisão de preceito, no sentido de se ter bastado com a apreciação dos items referidos no art.º 980º do CPC de forma acrítica ou meramente formal.
É que, aí citada a ora Executada/Embargante, teve ela uma posição ativa e substancial nesse processo. Assim, para além da suspensão dos autos, ela deduziu oposição, na qual suscitou as seguintes questões: (i) a sentença arbitral não reúne as condições legais para ser reconhecida, em particular em face do preceituado no artigo 980º, do CPC; (ii) não resultar dos autos a menção ao trânsito em julgado da decisão revivenda; (iii) a sentença estrangeira provém de tribunal cuja competência foi provocada em fraude à lei; (iv) a falta de jurisdição do tribunal arbitral, por falta de um prévio e válido compromisso arbitral entre as partes; (v) não ter sido regularmente citada no processo arbitral, colocando em crise os seus direitos essenciais de defesa, designadamente do contraditório e da igualdade das partes; (vi) o pagamento da quantia peticionada.
Nesse processo foi ainda produzida prova complementar e produzidas alegações.
E no acórdão conheceu-se e decidiu-se as seguintes questões:
i. a sentença arbitral proferida transitou em julgado.ii. sobre a competência do tribunal arbitral sueco ter sido provocada em “fraude à lei” ─ «não existe qualquer violação do âmbito da competência internacional exclusiva dos tribunais portugueses, concorrendo a competência destes últimos com a competência internacional de qualquer outro Estado e face ao caracter plurilocalizado do litígio».iii. Sobre a falta de jurisdição do tribunal arbitral sueco por mor da inexistência de um prévio e válido compromisso arbitral (forma escrita e assinatura por ambas as partes) ─ «ao contrário do sustentado pela Ré, nas sobreditas circunstâncias, nenhum óbice existe quanto à questão da forma escrita da convenção de arbitragem (cláusula compromissória) e, ainda, quanto à sua subscrição/aceitação, ainda que o documento que incorpora os termos e condições e a dita convenção não se mostre assinado por qualquer uma das partes. Improcede, pois, também este outro fundamento de oposição ao reconhecimento invocado pela Ré.»iv. Sobre a falta e regularidade da citação, direitos essenciais de defesa, o princípio do contraditório e da igualdade das partes ─ «Ora, perante esta resenha da evolução do processo arbitral – que não foi minimamente posto em causa por alguma prova produzida ou oferecida pela Ré -, não se alcançam os fundamentos para a afirmação da Ré quanto à alegada violação do princípio do contraditório e da igualdade de armas processuais. De facto, em termos singelos e face às evidências antes expostas, dir-se-á que ao cumprimento do contraditório e da igualdade de armas basta-se a lei pela circunstância de ser concedida às partes, em termos efectivos, a possibilidade de exercerem os seus direitos ou faculdades processuais em pé de igualdade uma com a outra; se a própria parte, apesar de informada dos trâmites processuais e da possibilidade de exercer as faculdades que lhe são proporcionadas pela lei processual, como sucedeu com a aqui Ré, as não pretende usar, naturalmente, que inexiste qualquer violação daqueles princípios fundamentais, mas antes uma opção deliberada da parte, que, em tais circunstâncias, só lhe pode ser imputada. De facto, o que ressuma da intervenção da Ré no processo arbitral (e que a mesma acaba por reproduzir também neste processo) é a sua petição de princípio quanto à invalidade ou inexistência de uma convenção de arbitragem escrita e vinculativa, petição esta que, como já vimos, se mostra infundada.»v. Também se decidiu sobre o respeito pelos princípios fundamentais da ordem pública internacional, que se consideraram verificados.
Visto isto, temos de concluir que as questões em causa no processo de revisão e reconhecimento de sentença arbitral estrangeira ficaram cobertas pela autoridade de caso julgado. Daí que não possam voltar a ser apreciadas em sede de embargos de executado.
Nessa medida, estando o Tribunal sujeito a essa autoridade de caso julgado, não pode dizer-se que se incorreu em violação do dever de gestão processual ou do princípio da cooperação. Ao contrário, eles são a sua concretização e impunham-se-lhe."
[MTS]
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