"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



23/04/2024

Jurisprudência constitucional (226)


Direito ao recurso


1. TC 10/4/2024 (292/2024) decidiu o seguinte:

a) não conhecer do objeto do recurso relativamente à norma contida no artigo 629.º, n.º 1, do Código de Processo Civil;

b) não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 62.º, n.º 1, da Lei Organização, Competência e Funcionamento dos Julgados de Paz (Lei n.º 78/2001, de 13 de julho), na redação introduzida pela Lei n.º 54/2013, de 31 de julho, na interpretação segundo a qual não é admissível recurso para os tribunais da Relação das decisões dos tribunais de comarca que apreciem as impugnações de decisões dos julgados de paz; [...]

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"2. O recorrente indica, como objeto do recurso, (i) a norma contida no artigo 62.º, n.º 1, da LJP, na interpretação segundo a qual não é admissível recurso para os tribunais da Relação das decisões dos tribunais de comarca que apreciem as impugnações de decisões dos julgados de paz e (ii) a norma contida no artigo 629.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), na interpretação segundo a qual “[…] o recurso ordinário só é admissível, quando a causa tenha valor superior à alçada do Tribunal de que se recorre”.

Como resulta do despacho do relator referido em 1.2.3., supra, prefigura-se a questão prévia da admissibilidade do recurso relativamente à segunda questão.

2.1. O artigo 62.º da LJP tem a seguinte redação:

Artigo 62.º
Recursos

1 – As decisões proferidas nos processos cujo valor exceda metade do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância podem ser impugnadas por meio de recurso a interpor para a secção competente do tribunal de comarca em que esteja sediado o julgado de paz.

2 – O recurso tem efeito meramente devolutivo.


Por sua vez, o artigo 63.º da LJP prevê o seguinte:

Artigo 63.º
Direito subsidiário

É subsidiariamente aplicável, no que não seja incompatível com a presente lei e no respeito pelos princípios gerais do processo nos julgados de paz, o disposto no Código de Processo Civil, com exceção das normas respeitantes ao compromisso arbitral, bem como à reconvenção, à réplica e aos articulados supervenientes.

Por fim, o artigo 629.º, n.º 1, do CPC estabelece:

Artigo 629.º
Decisões que admitem recurso

1 – O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa. [...[

Como se afigura evidente, os critérios dos artigos 62.º da LJP e do artigo 629.º, n.º 1, do CPC são alternativos entre si, ou seja, para decidir acerca da recorribilidade de uma decisão do tribunal de comarca, o Tribunal da Relação aplicará o artigo 62.º da LJP (concluindo que nunca há lugar a recurso) ou o artigo 629.º do CPC (concluindo que há lugar a recurso ou não, conforme se verifiquem ou não os requisitos da alçada e da sucumbência).

Foi precisamente essa a conclusão do acórdão recorrido, que, ao aderir aos fundamentos da decisão singular do Senhor Juiz Desembargador relator conclui, sem qualquer ambiguidade, que “[…] mesmo que se admitisse – arguendo – que o recorrente pretende controverter a constitucionalidade da norma do art. 629.º do CPC, com o sentido de o valor da ação ser o único critério relevante para a recorribilidade de uma dada decisão, sempre seria de continuar a concluir pela inadmissibilidade do recurso, dado que tal norma é meramente hipotética ou virtual, não consubstanciando de modo algum a ratio decidendi na decisão recorrida […]”. É certo que, no segmento final do acórdão recorrido, se pode ler que “[…] a admissibilidade de recurso está condicionada, através de limites objetivos fixados na lei, derivados, nomeadamente, da natureza dos interesses envolvidos, da menor relevância das causas ou da repercussão económica para a parte vencida (cfr. art. 629.º/1 do CPC) […]”, mas trata-se, aqui, já de um obiter dictum, em que o tribunal recorrido afirma, em termos gerais, que a lei pode estabelecer a irrecorribilidade em função de certos critérios, dando como exemplo o artigo 629.º, n.º 1, do CPC, sem que este tenha constituído critério normativo da decisão concreta, como – insiste-se – foi expressamente afastado. Como se faz notar no despacho do relator transcrito em 1.2.3., supra, “[o] que se poderá dizer é que, eventualmente, caso o recurso venha a ser procedente relativamente à norma do artigo 62.º, n.º 1, da [LJP], o tribunal recorrido, quando proferir nova decisão nos termos do artigo 80.º, n.º 2, da LTC, poderá vir a aplicar o disposto no artigo 629.º, n.º 1, do CPC. Porém, não o fez na decisão recorrida”. Efetivamente, só se, por via de uma eventual procedência do presente recurso de constitucionalidade, o tribunal recorrido se visse vinculado a proferir nova decisão sem aplicar o disposto no artigo 62.º, n.º 1, da LJP é que poderia, então, equacionar a aplicabilidade do disposto no artigo 629.º, n.º 1, do CPC, por remissão do artigo 63.º da LJP.

Tanto basta para concluir que, relativamente à segunda questão de inconstitucionalidade referida em 2., supra, se mostra inútil o conhecimento do objeto do recurso, uma vez que uma decisão de procedência não teria como consequência a modificação da decisão recorrida, visto que esta não aplicou a norma enunciada pelo recorrente.

Consequentemente, não se tomará conhecimento do objeto do recurso relativamente a essa questão."

[MTS]