"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



10/04/2024

Jurisprudência 2023 (147)


Transacção;
custas processuais


1. O sumário de RP 12/7/2023 (18017/21.0T8PRT.P2) é o seguinte:

I - Se o autor declara desistir do pedido, nada lhe sendo prometido ou prestado pela outra parte, não há transacção; mas haverá transacção, se o autor declara desistir do pedido em troca de uma prestação da outra parte.

II - No âmbito de transacção é lícito às partes acordar quanto à repartição do pagamento das custas, mesmo consignando-se nela a desistência do pedido, por parte do autor.

III - Ao homologar tal transacção, por aplicação do disposto no n.º 2 do artº 537º do Cód. Proc. Civil, o juiz deverá ter em conta a repartição das custas conforme o acordado pelas partes, sendo certo que caso uma das partes goze de dispensa ou isenção de pagamento, deverá averiguar e fixar a proporção em que, em seu entender, as custas devem ser pagas.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A questão em litígio, cinge-se em apreciar e decidir se, como defende o recorrente, o Sr. Juiz a quo terá violado o disposto no artigo 537º, n.º 2, do Código de Processo Civil, por não ter atendido ao acordado pelas partes no âmbito da repartição pelo pagamento das custas atribuindo, no segmento em causa, a responsabilidade pelo pagamento, apenas ao autor.

Como resulta do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20.09.2021, Proc. 2676/15.5T8PNF-C.P1, Relator: Nelson Fernandes, disponível em www.dgsi.pt:

“I- A transação exarada no processo, que põe termo ao litígio entre as partes, constitui um contrato processual, concretizando um negócio jurídico efetivamente celebrado pelas partes intervenientes na ação, correspondente àquilo que estas quiseram e conforme o conteúdo da declaração feita.
 
II- A decisão judicial corporizada na homologação da transação, constituindo um ato jurídico, deve interpretar-se segundo os princípios legalmente impostos e acomodados para os negócios jurídicos e, neste contexto, terá o intérprete de indagar qual a vontade das partes aí exteriorizada, de tal modo que, encontrada esta, todas as circunstâncias envolventes do processo possam ser clarificadas e tomem um sentido definitivamente exato.”

Ora, como transparece da “TRANSAÇÃO EXTRAJUDICIAL” de 17.08.2022 (cf. Cláusula Quarta, n.º 1), foi acordado entre Autor e 1.ª Ré que “as custas processuais do identificado processo declarativo (…) serão suportadas em partes iguais” pelos Outorgantes, não se restringindo tais custas àquelas relativas ao Autor e 1.ª Ré.

Assim, os intervenientes na transacção apenas limitaram os efeitos do acordo quanto a custas no que diz respeito às “custas de parte e procuradoria” (das quais prescindiram, aí sim, “reciprocamente”).

Nestas circunstâncias, não se questionando a validade da transacção efectuada, afigura-se-nos não fazer sentido sustentar que a mesma, concretamente, no que respeita à repartição das custas, tenha visado desresponsabilizar a 1.ª Ré do pagamento de custas relativamente aos restantes Réus.

De facto, o acordo levou em consideração a proporção do pedido e da vantagem patrimonial concretamente obtida pelo demandante.

Na realidade, foi peticionada na acção a declaração de ineficácia; subsidiariamente, de nulidade (por simulação); sempre e em todo o caso, de nulidade (por falta de forma), de uma variedade de negócios jurídicos, tendo por base um crédito do Autor sobre a 1.ª Ré, na quantia mínima de € 256.790,59 e judicialmente reconhecido por sentença de 15.10.2018, confirmado por Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 05.11.2020 e objecto de duas execuções (Proc. n.º 3687/21.7T8PRT, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Execução do Porto, Juiz 2; Proc. n.º 15684/21.8T8PRT, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Execução do Porto, J6), extintas apenas em virtude do acordo celebrado a 17.08.2022.

Na sequência da interposição da presente acção, a 1.ª Ré comprometeu-se com o pagamento, a pronto, da quantia de € 165.000,00, equivalente a aproximadamente 65% do montante peticionado pelo Autor nos presentes autos.

Consequentemente, atenta a transacção efectuada, no contexto em que foi efectuada, deve entender-se que a repartição das custas nos termos acordados não permite extrair a conclusão que esse acordo visou desresponsabilizar a 1.ª Ré pelo pagamento de metade das custas relativas aos outros Réus.

Pode-se, aliás, dizer que a fonte real da resolução do litígio, no presente caso, não é propriamente a sentença homologatória, mas sim o acto de vontade das partes, mais propriamente, a respectiva convergência no sentido de, mediante recíprocas concessões, terminarem um litígio.

Com efeito, a desistência do pedido da acção declarativa (vertida na Cláusula Terceira da “TRANSAÇÃO” de 17.08.2022) não é autónoma da transacção celebrada, uma vez que tal desistência é uma das condições/contrapartidas que compõem o acordo.

“Se o autor declara desistir do pedido, nada lhe sendo prometido ou prestado pela outra parte, não há transação; mas haverá transação, se o autor declara desistir do pedido em troca de uma prestação da outra parte” (Vaz Serra, RLJ, 100.º - 18).

Ou seja, não estamos perante uma situação de pura e simples desistência do pedido, apresentada pelo Apelante, mas sim perante um acordo (transacção) subscrito pelos respectivos mandatários das partes, munidos de procurações com poderes especiais para o efeito, não obstante uma das cláusulas do acordo faça referência à desistência do pedido por parte do Apelante.

De resto, se só esta cláusula relevasse, não haveria necessidade da outorga do documento por ambas as partes, mas tão só pelo Autor, já que a desistência do pedido é livre (artigos 283.º e 286.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).

Com efeito, a desistência dos pedidos foi uma contrapartida estabelecida em troca do pagamento (parcial) da dívida, ou seja, constituiu o culminar de esforços de cobrança de uma dívida, que se prolongaram durante mais de 15 anos, obrigando-o à interposição de 2 acções declarativas e de 2 acções executivas para ver o seu crédito.

Assim, estando-se perante uma transação, haverá que ter-se em atenção, no âmbito da responsabilização pelo pagamento das custas (e também no que concerne aos restantes Réus), o disposto no n.º 2 do artigo 537.º do Código de Processo Civil, e não o n.º 1, conforme se refere na sentença de 13.09.2022 e no despacho ora recorrido de 03.03.2023.

Na verdade, o normativo do artigo 537.º, n.º 1, inspira-se no princípio da causalidade, estruturado com base no critério da sucumbência. Por via dele, se a instância se extinguir por desistência do pedido ou da instância ou por confissão do pedido, a responsabilidade pelo pagamento das custas recai sobre o desistente ou o confitente, total ou parcialmente, isto é, na proporção do âmbito da desistência ou da confissão, ou seja, daquilo sobre que uma ou outra incidiu.

Por outro lado, o n.º 2, do artigo 537.º tem fundamento no princípio da igualdade, resultando do mesmo que as partes do lado activo e do lado passivo podem, em regra, acordar, no caso de transacção (como foi o presente), no quantum de responsabilidade pelo pagamento das custas de cada uma, sem prejuízo de o Sr. Juiz decidir fixar essa repartição de responsabilidades, ouvido previamente o Ministério Público, para evitar a transferência do custo total do processo para quem do mesmo está dispensado.

Ora, no caso vertente, da análise da “TRANSAÇÃO EXTRAJUDICIAL” (e requerimentos anexos) nada nos permite extrair a conclusão de que as Partes tenham querido responsabilizar exclusivamente o Autor pelas custas do processo.

Com efeito, no Requerimento de 17.08.2022, subscrito pelo Autor e pela 1.ª Ré as Partes declaram que põem termo ao litígio “por meio de transação extrajudicial”, o Autor afirma desistir dos pedidos “em cumprimento do aí [na “transação extrajudicial”] formulado”; as partes avisam que “as custas, conforme acordado, serão suportadas por Autor e 1.ª Ré em partes iguais” e prescindem apenas, reciprocamente, “de custas de parte e procuradoria”;

Ademais, na “TRANSAÇÃO EXTRAJUDICIAL” anexa a esse Requerimento, de 17.08.2022:

- No Considerando A), a 1.ª Ré (como o Autor) declara ter perfeito conhecimento dos termos, trâmites e estado processuais das 3 ações judiciais contra si intentadas (2 das quais execuções de dívidas certas, líquidas e exigíveis, decorrentes de condenações transitadas em julgado);

- Na CLÁUSULA PRIMEIRA, a 1.ª Ré declara pagar ao Autor o valor de €165.000,00, correspondente a cerca de 64,25% da quantia peticionada nos presentes autos;

- Na CLÁUSULA QUARTA, n.º 1, “Fica igualmente acordado que as custas processuais do identificado processo declarativo n.º 18017/21.0T8PRT serão suportadas em partes iguais” pelos Outorgantes;

- Só depois “prescindindo ambos os intervenientes, reciprocamente, de custas de parte e procuradoria” (renúncia esta restrita ao binómio Autor / 1.ª Ré);

- Na CLÁUSULA QUARTA, n.º 2, a SEGUNDA OUTORGANTE responsabiliza-se pela totalidade das custas dos 2 processos executivos, no que se englobam os avultados juros compulsórios devidos ao Estado (com exceção dos honorários / remunerações do Agente de Execução, da responsabilidade do Exequente);

- “prescindindo os intervenientes, reciprocamente, de custas de parte e procuradoria” (renúncia – apenas esta - restrita ao binómio Autor / 1.ª Ré);

Nos “ANEXO I” e “ANEXO II” da “TRANSAÇÃO EXTRAJUDICIAL”, estipula-se que ficam “a cargo da Executada as custas do processo executivo (incluindo eventuais juros compulsórios)”, à exceção dos honorários / remunerações do Agente de Execução - como não poderia deixar de ser, visto ter sido a 1.ª Ré condenada ao pagamento das suas dívidas por decisões transitadas em julgado e ter procedido ao pagamento de cerca de 64,25% do seu valor.

Assim, das circunstâncias de tempo, lugar e outras que precederam a sua celebração ou foram contemporâneas desta, das negociações respectivas, da finalidade prática visada pelas partes (denotando-se a vontade de se solver uma dívida e de se extinguirem 3 processos que se entendiam como certos e legítimos), do tipo negocial (transação, e não mera desistência de pedido) impõe-se concluir que as partes visaram a repartição, em partes iguais, entre o Autor e a 1.ª Ré, da totalidade das custas (relativas, também, aos restantes Réus).

De resto, ainda que se considerasse aplicável o n.º 1 do art.º. 537.º do Código de Processo Civil, nunca se poderia entender ter existido uma “total” desistência dos pedidos relativos aos 2.º a 29.º Réus, uma vez que os pedidos formulados pelo Autor contra os 2.º a 29.º Réus não são verdadeiramente cindíveis daqueles formulados contra a 1.ª Ré (o Autor pede que sejam todos os Réus judicialmente condenados a ver reconhecido o seu crédito exequendo, assim como a declaração de ineficácia de atos realizados entre os Réus que visavam a proteção do património da devedora) e foram pagos €165.000,00 ao Autor.

Ademais, não acompanhamos a argumentação do Tribunal a quo, quando defende que “homologar a sentença quanto a custas nos termos requeridos pelo A. e 1ª R. seria permitir defraudar o dispositivo legal estabelecido nos artº 537º, nº 1 e no art.º 528º, n.º 4, do Código de Processo Civil, segundo qual a responsabilidade por custas é determinada individualmente nos termos gerais fixados no nº 2 do artigo 527.º do CPC”.

Com efeito, o mencionado artigo 528.º, n.º 4, do Código de Processo Civil refere situações de “coligação de autores ou réus”.

Acontece, todavia, que estamos aqui perante um litisconsórcio passivo.

“Na ação de impugnação pauliana, a relação controvertida envolve três sujeitos: o credor, o devedor alienante e o terceiro adquirente e, no caso de transmissões posteriores, envolve ainda os subadquirentes, sendo necessária a intervenção de todos sob pena de se verificar a ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio necessário” (Ac. TRG, 28.05.2020, Proc. 4278/19.8T8GMR.G1, Relatora: Raquel Baptista Tavares, disponível em www.dgsi.pt, no mesmo sentido, cfr. Ac. do STJ, 25.05.1999, Proc. 99A382, Relator: Aragão Seia; Ac. do TRG, 28.05.2015, Proc. 3778/14.0T8GMR-B.G1, Relator: Manuel Bargado; Ac. do STJ, 02.12.2020, Proc. 4278/19.8T8GMR.G1.S1, Relator: Fernando Samões; disponíveis em www.dgsi.pt.).

Estando em causa uma situação de litisconsórcio passivo, que pressupõe uma única relação material controvertida, não faz sentido a imposição do pagamento de uma taxa de justiça por cada um dos sujeitos processuais que compõem a parte passiva da relação processual.

Neste caso, a fixação da (única) taxa de justiça a pagar faz-se de harmonia com a tabela I-A anexa ao R.C.P.

Havendo litisconsórcio, o consorte que figurar em 1.º lugar na Petição Inicial é responsável pelo pagamento da totalidade da taxa de justiça constante da Tabela respetiva, ficando com direito de regresso relativamente aos restantes litisconsortes (cfr. arts. 530.º, n.º 4, do Código de Processo Civil e 13.º, n.º 7, alínea b), do R.C.P).

Se o primeiro estiver isento ou dispensado, é devido o pagamento pelo litisconsorte que figurar em 2.º lugar, e assim sucessivamente.

Do que resulta que, da parte dos 29 Réus, apenas uma taxa de justiça era devida.

Em suma, no caso de transação judicial, a lide é composta por acordo das partes, não sendo a função da sentença homologatória decidir a controvérsia substancial, mas apenas fiscalizar a regularidade e validade do acordo (Ac. do TRE, 12.04.2018, Proc. 1017/17.1T8FAR.E1, Relatora: Maria João Sousa e Faro; Ac. do TRG, 16.05.2019, Proc. 6144/17.2T8BRG.G1, Relator: Joaquim Boavida; Ac. do TRG, 06.04.2022, Proc. 449/21.5T8VCT.G1, Relator: Alcides Rodrigues; disponíveis em www.dgsi.pt).

Não há dúvidas que no âmbito da desistência total, quer do pedido, quer da instância, as custas são, pagas pela parte que desistir, como o impõe o disposto pelo n.º 1 do artº 537º do Código de Processo Civil.

No entanto, no caso em apreço, não estamos perante uma situação de pura e simples desistência do pedido, apresentada pelo autor, mas sim, perante um acordo (transacção) subscrito pelos respectivos mandatários das partes, munidos de procuração com poderes especiais para o efeito, isto não obstante, uma das cláusulas do acordo fazer referência à desistência do pedido por parte do autor. Pois, se só esta cláusula relevasse, não haveria necessidade da outorga do documento por ambas as partes, mas tão só pelo autor, já que a desistência do pedido, no âmbito dos presentes autos, é livre - (artº 283º e 286º, n.º 2 do Código de Processo Civil).

Assim, estando-se perante uma transacção haverá que ter-se em atenção no âmbito da responsabilização pelo pagamento das custas o disposto no n.º 2 do artigo 537º do Código de Processo Civil e não o n.º 1.

Este comando legal estabelece como regime supletivo o pagamento de custas a meio, permitindo, no entanto que as partes possam acordar de modo diferente na repartição do pagamento das mesmas, concedendo-lhes, assim, total liberdade, com excepção, no entanto, no que concerne às situações em que uma das partes litiga com o benefício do apoio judiciário.

No caso dos autos, constatamos que à 1ª ré foi concedido o benefício do apoio judiciário na modalidade de dispensa total da taxa de justiça e demais encargos do processo, sendo certo que a proporção de repartição de custas em partes iguais, entre ambos os responsáveis, parece-nos correcta e adequada, apesar da posição assumida pelo MP no processo.

Assim sendo, impõe-se a procedência da apelação, passando a totalidade das custas processuais a ser suportadas em partes iguais (pelo Autor e pela 1.ª Ré) relativamente aos restantes (2.º a 29.º Réus) conforme acordado e consta da transacção."

[MTS]